A voz (e a vez) da experiência

A volta de modelos icônicas dos anos 1990 às passarelas se soma ao hype dos cabelos grisalhos do pós-pandemia, sugerindo o apreço da moda pela beleza de mulheres mais velhas. O corpo que não é liso insiste em ser feliz.

 

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A série Diários de Andy Warhol, em exibição no Netflix, começa entregando que o artista tinha crises de ansiedade com sua idade e anorexia. Inventor dos 15 minutos de fama (e outras cositas más), ele mesmo um personagem, não se conformava com o fato de que estava… envelhecendo. Logo ele!

Pois, quando Kristen McMenamy começou sua conta no Instagram, ela detonou uma febre em torno de si que colocou a modelo estadunidense de volta na centralidade da imagem de moda, 30 anos depois de seu surgimento. Era abril de 2021, a pandemia bombando. Para ela, a máxima toda-montada-sem-ter-onde-ir não poderia fazer mais sentido. Podendo, em muitas formas, bancar suas extravagâncias, ela começou a postar suas muitas poses e muitos looks. Todas e todos incríveis.

Em setembro daquele mesmo interminável ano, ela estrelava a campanha de inverno 2021 da Gucci e abria o Fendace, desfile mash-up da Fendi pela Versace, e vice-versa, que teve também Kate Moss, Amber Valetta, Naomi Campbell, Kirsten Owens e Maria Carla Boscono. Em comum, o fato de serem mulheres, modelos, com mais de ou beirando os 50 anos, todas icônicas na década de 1990.

Kristen McMenamy (desde sempre uma favorita desta que vos escreve) abriu também a alta-costura de verão 2022 de Pierpaolo Piccioli na Valentino, em janeiro último. É a mesma temporada em que, com 76 anos, a romancista Susanna Moore, que em seus 20 e poucos chegou a trabalhar como modelo (e chegou a ser estuprada pelo estilista Oleg Cassini!) mostra a bolsa Amazona na campanha da Loewe de Jonathan Anderson, fotografada por Juergen Teller. Jerry Hall, 65 anos, modela para a campanha de verão 2022 da Saint Laurent de Anthony Vaccarello. Aqui, temos uma aula de storytelling: em seu primeiro desfile da vida, Jerry Hall desfilou justamente um tuxedo para Yves Saint Laurent, o próprio. Diferente de quando, no verão 2015, ainda sob a direção criativa de Phoebe Philo, a escritora Joan Didion parou a moda e a internet com a publicidade em que ela aparecia com os imensos óculos escuros, aos 80 anos.

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Fendace.Foto: Divulgação

“Movida pela urgência de repensar os rituais e processos (da alta-costura), para criar um cânone que reflete a ideia de riqueza e diversidade do mundo contemporâneo e promovendo uma ideia de beleza que não seja absoluta, Piccioli imaginou a coleção não em uma única e idealizada modelo, mas uma variedade de mulheres de diferentes tipos físicos e idades”, explica oficialmente a Valentino. Bonita fala. Será que a Moda nos convence?

As marcas vêm, aos trancos e barrancos, tentando melhorar “na questão” da representatividade, como elas entenderam falar. Para ficar aqui na pauta do etarismo, seria mais ou menos assim: “Olha, estamos colocando essas modelos mais velhas para dizer que nossas roupas são para todas as pessoas. Que não é porque você envelheceu que não pode mais desejar o que temos para vender. Que não pode mais vestir as peças que produzimos. Desde que você caiba nelas, pode usar o que quiser. Queremos seu dinheiro”.

A estética contemporânea do belo começaria justamente com a “estética do liso”, no século 18, acionando as ideias do irlandês Edmund Burke (1729-1797). “Se é evidente que o liso é a principal causa de prazer do tato, do gosto, do cheiro e da escuta, então também é preciso reconhecê-lo como a base fundamental da beleza visual – especialmente após termos mostrado que essa qualidade pode ser encontrada quase sem exceção em todos os corpos que são tidos por unanimidade como belos.”

A tese é do sul-coreano Byung-Chui Han, o autor de A sociedade do cansaço, radicado na Alemanha. O corpo é “gracioso” então quando consiste de “partes lisas” que “não apresentam qualquer aspereza ou que confundam os olhos”, escreve no livro A salvação do belo (editora Vozes, 2019). E assim, “just like that”, passamos a rejeitar rugas, dobras, volumes.

Na real, o ideal de mulher continua o da mulher jovem. Ser jovem = ser desejada. A chave está no desejo. Daí a obsessão da moda com a juventude. “O self cuja consistência é a lascividade sexual é um produto do capitalismo do consumo”, explica o filósofo. “A indústria explora o corpo na medida em que o torna sexualizado e consumível. Consumo e ser sexy condicionam-se mutuamente”, prossegue Byung-Chui Han. Daí a máxima: “Sex sells”. Sexo vende. E continua vendendo.

Modelos e influencers de cabelos grisalhos ganharam mais espaço depois da pandemia. Contam-se ainda nos dedos, entretanto, quantas elas são. No Brasil, podemos citar Sheila O’Callaghan, Rosa Saito, Valeria Rossati. Internacionalmente temos Yasmina Rossi, Roxanne Gould, Dian Griesel, Linda Rodin, Annika von Holdt. São ainda poucas as mulheres negras, nesse rol – destacam-se Thenille Murphy e Keisha. Os corpos dissidentes são menos ainda. O modismo, portanto, não representa – ainda – uma completa mudança de pensamento e de cultura.

Paula Raia, Sauer e Farm são marcas que parecem genuinamente respeitar e valorizar mulheres mais velhas. Em grande medida, a moda continua a promover o pacto sinistro de que a beleza está na pele lisa, branca e sem rugas, no corpo magro, dentro dos padrões. Isso pode estar mudando.

A mulher-mais-velha só não é (mais) invisível porque são consumidoras mais velhas as que mais compram. Ao vermos uma mulher jovem vestindo uma roupa, pensamos em como aquela roupa nos vestiria. Mais que isso: que se vestirmos aquela roupa vamos nos parecer como a mulher que está vestindo aquela roupa. Daí as modelos. E o sucesso de algumas delas.

Vestir-se de acordo com a idade é outro conceito carregado de preconceito. A moda como marcador de tempo, de vida. O que define “jovem”? Hoje, adolescentes acham “velha” quem tem 20. Na indústria da moda, por sua vez, jovens que começaram a trabalhar ainda adolescentes, aos 30 já são consideradas “veteranas”, aos 40 se aposentam, profissionalmente. Ou se aposentavam.

Katia Miranda, musa clubber raiz, desfilou para Walério Araújo na última São Paulo Fashion Week. Raica Oliveira, Daiane Conterato, Barbara Berger, Barbara Fialho e Gianne Albertoni estiveram na passarela da Lenny, no Rio de Janeiro, em novembro de 2021. “Na Lenny, houve a preocupação, até por estarmos falando dos 30 anos da marca, queríamos mostrar que todas as mulheres devem se sentir poderosas e confortáveis independentemente da idade e do corpo”, diz Bill McIntyre, diretor de casting e do desfile da Lenny, que de fato encantou com sua apresentação de aniversário.

Quando estamos falando do marco zero da volta das supermodels dos anos 1990, voltamos para 2017, quando Donatella Versace colocou Cindy Crawford, Claudia Schiffer, Helena Christensen, Carla Bruni e Naomi Campbell para celebrar os 20 anos da icônica grife iniciada por seu irmão, Gianni. “De certa forma, existe um saudosismo de um tempo de glamour que não existe mais da forma como era antes”, prossegue Bill.

Que momento para o Instagram aquele reencontro. Faltou Linda Evangelista, e hoje a gente sabe o motivo: o procedimento que deu errado e que fez com que a icônica modelo saísse de cena, no ápice do body-shaming. Essa história triste ilustra o nível de pressão sobre as mulheres. E não só aquelas consideradas bonitas, mas… quase todas nós.

Na era do algoritmo, do #tbt, do filtros e dos apps, somos cobradas sobre como aparecemos, como envelhecemos, quantos e quais procedimentos fizemos, se passou do ponto, quanto eles duram, quanto custaram.

“Ainda bem que consegui manter minha sanidade por quatro décadas de censura, sexismo, etarismo e misoginia”, sintetizou outro dia desses Madonna, 63 anos. Ela, que já fez de um tudo, talvez esteja cometendo aos olhos dos caretas a sua maior infração ou disruptura: envelhecer fazendo o que bem entende como uma mulher bem-sucedida, poderosa, influente, mãe, sexualizada, livre na vida real e na internet.

Por aqui, Marina Lima, aos 66, faz shows, canta, compõe, fotografa campanhas de moda e segue sendo ícone, diva e inspiração para essa e outras gerações.

“Em termos de modelos, é fato que cada vez mais as agências estão abrindo frentes para mulheres mais velhas. Tem um monte de mulheres que estão começando já maduras, até mesmo em campanhas comerciais temos percebido isso”, comemora Bill.

É o caso da irlandesa Sheila O’Callaghan, 52 anos, que trabalhou até os 49 como jornalista, viajando o mundo, até ficar com vontade de mudar de área de atuação, o que queria fazer antes dos 50. “Estava no momento certo, porque o mundo estava mudando, e estávamos percebendo que já não havia mais espaço para um só tipo ou uma só idade. A beleza não vem em determinados tamanhos ou pacotes, peles e cores”, resume ela.

Se, como diz a máxima, envelhecer é uma questão de tempo e dinheiro, poderíamos acrescentar a aceitação a essa fórmula mágica e seríamos bem mais felizes. “A perfeição não existe. Tenho psoríases, nos pés e nas mãos. É parte do que eu sou, e não fico constrangida por isso. A idade nos ensina a estar OK com quem você é.”