Inclusão de verdade

As inglesas Laura Johnson e Zoe Proctor são as fundadoras da Zebedee Management, uma agência de modelos determinada a aumentar e melhorar a representatividade de pessoas com deficiência na moda, na beleza e no mundo todo.

Em março de 2017, uma assistente social e uma professora de artes que lecionava para pessoas com deficiência saíram para uma caminhada na praia, aproveitando o momento de passear com os cachorros para conversar. O assunto entre as britânicas era, na verdade, um desabafo sobre a falta de oportunidade para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, especialmente como modelos. As cunhadas, que tinham encontrado uma grande amizade uma na outra, estavam prestes a se tornarem parceiras de negócio. “Foi como um divisor de águas, mas a decisão foi tomada em meio segundo”, lembra Laura Johnson. “O momento foi perfeito porque nós duas tínhamos quatro ou cinco meses livres antes de voltar a trabalhar. Mesmo sem pesquisa e sem saber se iria dar certo, a gente sabia que precisava fazer alguma coisa, especialmente porque ninguém estava se mobilizando nesse sentido”, completa Zoe Proctor. As duas voltaram cada uma para sua casa, mas alguma coisa dentro delas havia mudado de lugar: era a hora de criar coragem para apostar todas as fichas no que se acredita.

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Zoe Proctor (esquerda) e Laura Johnson (direita) são as fundadoras da Zebedee ManagementFoto: Divulgação

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Quatro anos depois, a Zebedee Talent – uma agência que leva diversidade e inclusão realmente a sério e que está determinada a desfazer o estigma e o preconceito que recaem sobre as pessoas com deficiência – representa 5 mil modelos ao redor do mundo. Uma delas, inclusive, foi o rosto de uma campanha de beleza da Gucci: Ellie Goldstein é a primeira modelo internacional com síndrome de Down. Fizemos uma entrevista com ela na edição de janeiro da ELLE View. Zoe e Laura conhecem de verdade cada uma das profissionais que agenciam. Sabem das suas paixões, histórias, sonhos e habilidades. Hoje, Zoe diz que não consegue mais se lembrar de como era a vida antes da Zebedee. Laura, por sua vez, fala que não tem ideia do que faria se desistissem.

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Ellie Goldstein é a primeira modelo internacional com síndrome de Down.Foto: Darren Black

Quais foram os primeiros passos para abrir a agência?

Zoe: Colocamos alguns flyers em grupos de pessoas com deficiência e fizemos castings para assegurar que tínhamos rostos incríveis para nossos primeiros books. Depois disso, a gente começou a ligar para as pessoas e implorar para darem uma olhada nos nossos modelos. (risos) Realmente, a gente bateu muita perna, erramos muito. Foi difícil chegar às pessoas certas, mas isso fez a gente entender como a indústria funciona. Tínhamos um time de 15 modelos e acreditamos neles.

Laura: Os primeiros modelos eram alunos antigos da Zoe. Então, a ideia era basicamente conseguir trabalhos para eles e colocar o nosso site no ar! Tem sido muito trabalho, não se pode subestimar a quantidade de persuasão, educação e encorajamento que precisamos fazer para qualquer cliente considerar trabalhar com modelos com deficiência ou uma diferença visível, até hoje. Ainda existe muito preconceito na indústria.

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Bernadette Hagans faz parte do casting da Zebedee Management.Foto: Darren Black

A Zebedee foi criada em 2017. Como vocês descreveriam o mercado de agenciamento de modelos que encontraram nessa época?

Zoe: Como a gente era muito nova nesse ramo, foi uma luta. Acho que as pessoas pensavam: “Quem são essas mulheres malucas? Espera, o que você quer? Não seja ridícula”. Foi um trabalho incessante: bater em portas e continuar conversando com as cabeças do mercado sobre o drástico impacto que as escolhas delas têm.

Laura: Antes de a gente existir, acontecia uma dinâmica de transferência de culpa, sabe? Agentes diziam que clientes não queriam ver modelos com deficiência, então por que tê-los nos books? Por outro lado, clientes diziam que não eram apresentados a modelos com deficiência, então não tinham a opção de serem inclusivos porque não tinham sugestões. Então, nós rompemos com isso porque tornamos mais fácil para clientes serem inclusivos. A forma que trabalhamos consiste em enviar nossos modelos para qualquer briefing, independentemente da menção ou não à deficiência ou visível diferença. Então, se recebemos um briefing procurando por uma mulher tamanho 10, nós vamos enviar todas as mulheres que tenham tamanho 10, independente da deficiência ou visível diferença. Não é sobre participar de castings que previamente já se pensam inclusivos. É sobre acreditar que todo mundo deveria ter oportunidades iguais. Trabalhar com briefing direcionado não funciona conosco. Até este ano, a maior parte dos nossos contratos foram para comerciais de televisão. Então, as áreas de produtos e serviços são bem mais abertas do que moda e beleza. Mas certamente isso mudou no ano passado. Estamos recebendo bem mais propostas de moda.

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Da esquerda para a direita: Nancy Harris, Johanna Sangster e Angela SelvarajahFoto: Darren Black

De lá para cá, o que mudou?

Zoe: Grandes marcas ainda estão paradas no tempo ou não conseguem pensar no que o público quer ver. Acho que o movimento Black Lives Matter teve um forte impacto no nosso trabalho porque as pessoas estão mais conscientes e preocupadas se estão fazendo a coisa certa – o que envolve tanto raça quanto deficiência. É uma mistura de muitos fatores, mas as pessoas no geral estão mais críticas. O look perfeito do Instagram está chegando ao seu fim porque não é real e acaba sendo tedioso. As pessoas estão mais interessadas em encontrar rostos reais. Toda campanha que fazemos para grandes marcas acaba tendo um impacto imenso, os números de engajamento são enormes e essa resposta aponta alguma coisa.

Laura: Diversidade é uma palavra que está na ponta da língua e todos dizem que é importante, ao fazer uma campanha, garantir um elenco inclusivo e diverso em termos de etnicidade e manequim para sua marca não ser cancelada na internet. Mas, por alguma razão, a deficiência não tem sido pautada nesse debate. A iniciativa The Valuable 500 (uma organização britânica que luta por espaço no mercado de trabalho para pessoas com deficiência) chama isso de comportamento “divers-ish“. Ou seja, se você está pensando de forma mais ou menos diversa, você não coloca em prática a inclusão de todas as pessoas. A inclusão real, a diversidade real, significa manequim, etnia, gênero, deficiência, idade, passado socioeconômico… Eu vou te dar algumas estatísticas: segundo uma pesquisa do Lloyd Banking Group, apenas 0,06% das pessoas em publicidade do Reino Unido têm deficiência. Quando olhamos para moda e beleza, esse número despenca ainda mais. Para ter uma ideia, a proporção é algo por volta de dois modelos com deficiência a cada dez mil contratados. Na população mundial, no entanto, 15% das pessoas têm alguma deficiência. Como pode existir esse descompasso? Todo mundo precisa olhar para isso. As pessoas começaram a se dar conta de que os seus consumidores querem ver inclusão. Se você, enquanto marca, não está fazendo, vai ser deixado para trás – podemos não estar nesse momento ainda, mas ele vai chegar.

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Mollie Pierce e Dan Richards por Elise DumonetFoto: Elise Dumonet

O que é a política de “não há perguntas bobas” dentro da Zebedee?

Zoe: Nós não somos especialistas, nem nossos clientes. Mas nós temos uma relação bem aberta com nossos modelos. Então, sempre reforçamos para nossos clientes que sabemos que muitos deles têm medo de falar sobre deficiência, mas nosso conselho é: vai fundo, pergunte. Se você não perguntar, nunca vai saber. Nós vamos falar com nossos modelos e repassar a informação. E, na verdade, não são tantas as coisas que precisam ser mudadas em um set para o seu shooting ser bem-sucedido.

Laura: Seja por não conhecer pessoas com deficiência, seja pela falta de exposição na mídia, as pessoas não têm muito conhecimento no que tange a deficiências. Geralmente, não precisam ser feitas muitas mudanças no seu set quando se contratam modelos com deficiência. É claro que existe uma linguagem ultrapassada que você certamente não quer usar, mas as pessoas com deficiência, em geral, preferem que o cliente erre tentando ser inclusivo do que excluir por medo de errar. Essas pessoas estão lutando por inclusão. E o único caminho para aprender sobre inclusão é conversando e trabalhando com pessoas com deficiência. Não precisa haver essas barreiras – e nós fazemos tudo que podemos para que esse processo seja o mais fácil possível.

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O catálogo da Zebedee também conta com crianças: esta é Ella ChadwickFoto: Brian Ohanlon

Qual é o maior objetivo da Zebedee hoje?

Laura: Meu objetivo é que a Zebedee esteja entre as melhores e mais reconhecidas agências do mundo, independente de deficiência. Eu quero que a gente esteja no hall de contato das marcas mais importantes. Quando um cliente pensar em uma agência de modelos, nós queremos estar nessa lista. Vai tomar muito tempo, mas nós temos modelos brilhantes, que agregam tanto às campanhas, que eu não vejo por que isso não aconteceria. Então, é um sonho pequeno. (risos)

Zoe: Dominação mundial, apenas o básico. (risos) Mas a ideia é normalizar o que a gente está fazendo e não ser uma agência de exceção, sabe?

Laura: Voltando para as estatísticas: 15% da população mundial tem deficiência, eu quero que 15% das pessoas em campanhas sejam pessoas com deficiência para que a gente possa chamar isso verdadeiramente de representatividade.

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Da esquerda para a direita: Reneé Valentine, Bernadette Hagans e Mollie PierceFoto: Darren Black

Como tais iniciativas podem ser replicadas ao redor do mundo?

Laura: Bom, pessoas em posições de poder, em quaisquer empresas, precisam pensar em pessoas com deficiência em todas as suas políticas. O problema é que pessoas com deficiências têm sido excluídas de tantos espaços – áreas da vida e da sociedade – por tanto tempo, incluindo o mundo do trabalho, que muitas pessoas nem conhecem pessoas com deficiência. Isso posto, encorajar marcas a serem inclusivas é quase algo fora de alcance para elas, uma vez que nem esse primeiro contato existe, entende? Pessoas com deficiência precisam estar em todas as áreas de uma empresa – não somente na tela, como um comercial, mas também nas contratações e políticas da companhia. Uma vez que isso estiver fluindo dentro das empresas – e ao redor do mundo –, a representatividade vai rolar naturalmente.

Zoe: Exato! Uma coisa legal que está acontecendo aqui, no Reino Unido, é que a BBC está com uma campanha de inclusão em todas as áreas em que a empresa atua, inclusive na televisão. Isso é nítido. Eu acho que tudo tem que começar em algum lugar e esse me parece o começo. Temos uma jornada longa pela frente, mas quanto mais pessoas fazem isso, mais pessoas enxergarão que isso pode ser alcançado.