Brincadeira de adulto

Como a maquiagem ganhou ares lúdicos para enfrentar tempos difíceis.

Nos últimos meses, foram lançadas coleções de maquiagem que passam longe daquele visual ultraprofissional que todo mundo desejava no começo dos anos 2010. São paletas de sombras em formatos inusitados, colaborações com franquias famosas de desenhos animados, com embalagens charmosas e divertidas. Com o sucesso do longa-metragem Cruella (2021), por exemplo, a MAC deu as mãos com a Disney para criar uma linha de make para a icônica vilã fashionista interpretada por Emma Stone no cinema. No ano passado, era a bilionária Kylie Jenner que estava de olho nessa movimentação e, para não perder a chance de surfar na onda, logo disparou uma coleção toda inspirada pelo Grinch, o vilão verde e rabugento do Natal.

Acontece que essa megatrend já tem até nome: trata-se do kidcore, uma vontade de retomar a inocência da infância vivida nos anos 1990 e 2000, que, de quebra, também estão mais na moda do que nunca. É por causa disso que surgem linhas como a da independente estadunidense Colourpop, com a mascote japonesa Hello Kitty, e a da Hipdot, inspirada na estética do clássico filme As Patricinhas de Beverly Hills (1995). Essas iniciativas estão dando tão certo que conquistam inclusive algumas marcas mais tradicionais. É o caso da Coach que, ao lado da Sephora, criou kits com formatos de tubarão, unicórnio e dinossauro que são embrulhados com papel de presente, como antigamente. A gigante NYX Cosmetics lançou também uma coleção toda intitulada Tetris. O joguinho digital virou uma paleta de sombras com 80 cores.

“Essa demanda aumenta graças às consumidoras que buscam conforto no familiar e no passado”, comenta Luiza Loyola, expert em tendências do WGSN. É claro que a pandemia ajudou a trend a ganhar mais corpo, mas o movimento já vinha crescendo antes de 2020. A Glamlite, marca fundada em 2018 pela caribenha Gisselle Hernandez, é a maior prova disso. Desde o começo, a empresa aposta em paletas com shapes engraçados: donuts, pizzas e sorvetes já inspiraram alguns de seus maiores hits. Ela os concebeu como resposta à gordofobia que sofreu durante toda a vida. Ou seja, a ideia é pensar na comida por um viés divertido e não penalizante. O mesmo vale para a maquiagem.

 

“Eles esperam produtos e experiências fantásticas das marcas que consomem, mas também querem que elas ecoem suas identidades e valores, como se posicionar contra códigos binários e celebrar imperfeições.” Luiza Loyola, expert em tendências do WGSN

 

Especialista em beauté, a ex-jornalista de moda Jana Rosa (hoje à frente do perfil @bonitadepele e do serviço de assinatura de beleza Boni Club) conta que já se deixou seduzir pelas makes nostálgicas e divertidas. “Quase comprei uma paleta da Barbie essa semana e nem dela eu gosto – mas as cores eram lindas. As marcas precisam criar novos apelos e essas paletas temáticas enlouquecem a gente. Tudo lindo e parece tão apetitoso.”

Aliás, foi unindo humor à maquiagem que outra criadora de conteúdo se fez nas redes sociais. Também ex-jornalista de moda, Flávia Akemi criou, já em 2019, o @aqueleglow: uma página para falar de beleza do seu jeitinho. “Sou o alívio cômico da galera, estou sempre fazendo piada. Gosto de trazer leveza e acho que é isso que tento trazer para o meu conteúdo”, explica sobre o projeto. Para ela, a maquiagem também serviu de válvula de escape no último ano: “Sinto que todo mundo está tentando trazer algo lúdico para si. São maneiras de fugir dessa realidade tão dura que a gente está vivendo. Estou usando mais coisas coloridas, por exemplo”.

É esse o apelo da geração Z, que, no lugar de entender a maquiagem como uma obrigação, busca nela uma forma de autoexpressão. “Como as pessoas estão cansadas de tentar alcançar os antigos padrões de beleza, a geração Z está apontando para novos caminhos muito mais interessantes para ninguém mais passar por isso”, argumenta a maquiadora e empresária Júlia Tartari, nome por trás da MoNA, marca de cosméticos conhecida por sua abordagem colorida e brincalhona.

A ascensão dos challenges de beleza e transformação do TikTok coincide com o tempo de quarentena em casa. “Dentro dos seus quartos, os Gen Zs conseguiram se jogar na maquiagem com mais liberdade”, aponta Luiza Loyola. “Eles esperam produtos e experiências fantásticas das marcas que consomem, mas também querem que elas ecoem suas identidades e valores, como se posicionar contra códigos binários e celebrar imperfeições”, explica. Não à toa, a maquiagem da série Euphoria, da HBO, faz tanto sucesso com eles. Foi explorando texturas, brilhos e cores pela perspectiva da brincadeira que a maquiadora responsável pelo programa Doniella Davy criou os visuais de Zendaya e Hunter Schaeffer que inspiraram o mundo todo.

É provável que a pandemia tenha finalizado um processo de transformação no eixo do mercado de beleza que já vinha acontecendo há tempos. Primeiro, a geração millennial começou a questionar as camadas e mais camadas de base ao propor uma nova relação com a pele via skincare e práticas de autoamor. Agora, a geração Z está provando que a tal da “make de bonita” não tem mais vez no novo mundo e, em contexto pandêmico, por que não aproveitar a maquiagem para brincar e se divertir? “Seja beleza, humor, música, exercício físico, tudo ajuda neste período tão difícil. Porque não vivemos só a pandemia, vivemos uma pandemia no Brasil”, arremata Jana Rosa.