Carecas de saber

Conversamos com seis mulheres que já rasparam a cabeça e que nos contaram tudo das dores e delícias de encarar a maior mudança de visual de suas vidas.

Certa vez, a cantora e compositora irlandesa Sinéad O’Connor deu uma entrevista forte à lendária apresentadora de TV e empresária estadunidense Oprah Winfrey: “Eu fui criada de uma maneira com a qual tenho certeza que outras mulheres poderão se relacionar. Era perigoso ser mulher. Então, sempre tive certeza de que preciso me proteger. Ir contra o que os homens, em geral, consideram sensual, era uma estratégia”, disse, na tentativa de justificar a escolha de ter raspado os fios na década de 1980, indo na direção exatamente oposta do conselho de seus produtores, que a queriam de cabelos longos e minissaia.

A cantora Aline Wirley, a artista plástica Renata Vernareccia, a assessora de imprensa e designer de acessórios Michelle Kaloussieh, a estilista Marcela Saravy, a repórter Ísis Vergílio e a pesquisadora Hanayrá Negreiros são mulheres que trouxeram esse debate para a sua vida pessoal e para o contexto do novo milênio. O que significa ficar careca hoje? O que leva uma mulher a esse corte? Como o mundo enxerga as mulheres que dizem não às madeixas? São perguntas que atravessam narrativas pessoais de autoamor, autoconhecimento, fortalecimento interior, coragem, mas também estilo, individualidade, criatividade… Abaixo, cada uma dessas personagens relata a sua experiência. De repente, depois dessa, você também adota os curtíssimos!

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Michelle Kaloussieh

“Eu usava o meu cabelo na cintura. Chegava a chorar no salão de beleza se a cabeleireira cortasse um dedinho a mais do que o que eu tinha pedido. Quando eu recebi o diagnóstico do câncer, a possibilidade de ficar careca era o que mais me assombrava. E isso é surpreendente porque, frente a uma doença muito séria, o primeiro pensamento que me ocorreu foi este: ‘Como vai ser se eu tiver que ficar careca?’ Foi muito difícil para mim entender que esse momento chegaria. No entanto, uma vez que a quimioterapia começou, eu consegui, finalmente, assimilar a informação. Acontece que, logo depois da primeira sessão, a minha imunidade baixou muito. Eu fiquei internada por causa de uma gripe e foi aí que o cabelo começou a cair e logo perguntei para a minha mãe: ‘Será que tem alguém que possa raspar minha cabeça aqui, no hospital?’ E rolou. No primeiro momento, a primeira coisa que eu senti foi alívio. O cabelo caindo me dava muita aflição. E daí, eu olhei no espelho e gostei do que vi. Depois, mesmo o cabelo curtinho caiu, fiquei na zero. Mas o interessante foi perceber que o fato de a sobrancelha cair fazia muito mais diferença do que o cabelo em si. Então, uma vez que usava maquiagem para preencher a sobrancelha, passei a me divertir com ela. A careca me abriu para usar acessórios maiores e mais chamativos, usar maquiagens mais coloridas… Eu sinto que eu redescobri meu rosto. Quando acabou o tratamento, eu continuei com o cabelo baixinho e fui brincando muito com isso. Até descolori! Depois da doença, eu senti que tinha renascido e, em certa medida, o cabelo me ajudou a viver essa transição.”

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Aline Wirley

“Não estava no roteiro tirar os apliques. Tudo aconteceu de um jeito muito inesperado e rápido. Eu estava imersa no processo do meu disco, o Indômita (2020), que, inclusive, fala muito sobre isto: qual é o meu lugar no mundo? Quem sou eu? Eu sou uma mulher preta. O que eu quero deixar para o meu filho cujo cabelo tem a mesma textura do meu? Não julgo e inclusive apoio muito quem continua nas perucas, apliques e tudo mais. Foi muito importante por um longo período da minha vida poder contar com isso tudo. Mas eu precisava dar a mim a chance de me conhecer. A maternidade, inclusive, me trouxe esse aprofundamento interno. Estava com 35 anos naquele momento e não sabia qual era o formato do meu cabelo. Vivia com ele escondido porque acreditei no que a sociedade dizia sobre ele: que não era bom. Então, raspei tudo. E esse foi um momento muito difícil para mim. Só que o sofrimento vinha não pela falta de cabelo, mas por perceber o quanto eu me escondia atrás de todos aqueles artifícios. O cabelo era tudo o que eu tinha. Fiquei muito vulnerável. Então, obviamente, me olhava no espelho e não me achava bonita. Fora que as pessoas não entendiam, perguntavam se eu estava doente etc. Mas, aos poucos, fui me adaptando. Meu marido me ajudou muito nesse sentido. Me apoiou quando eu tomei a decisão de, finalmente, deixá-lo crescer. E, dia após dia, eu tenho me encontrado mais linda, mais feliz no meu próprio cabelo. A gente passa muito tempo da vida acreditando que cabelo bonito é leve, sedoso, liso, balança com o vento. Pode até ser, mas o meu amigo Ícaro Silva um dia me disse uma coisa muito preciosa: ‘A beleza do nosso cabelo preto é a forma, é a arquitetura, a geometria’. É isso. Somos únicos e precisamos de coragem para enfrentar a nossa própria beleza. O medo vai estar ali, é claro. Para sempre. Mas ele não pode mais me paralisar.”

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Renata Vernareccia

“Eu estava entregando o meu Trabalho de Conclusão de Curso, tinha acabado de sair de uma briga feia na família e, de quebra, tentei viver uma dieta vegetariana sem acompanhamento médico. E, evidentemente, meu cabelo começou a cair muito como resultado de um mix de estresse com falta de vitaminas, proteínas etc. Aproveitei o momento e comecei a cortar o cabelo. Já tinha o undercut, deixei mais curto, tentei o joãozinho e, por fim, raspei o cabelo. Fiquei oito meses mantendo ele raspado e ficava alternando entre o descolorido e a minha cor natural. Se por um lado meus amigos amaram a ideia, minha família estranhou muito. Perguntavam se eu estava usando drogas, se eu estava ficando louca. E, na verdade, eu não estava louca. Eu estava cansada. Tirei o cabelo para, com isso, me livrar de todas as energias ruins acumuladas durante um ano em que eu trabalhei muito, me desgastei demais. Foi uma libertação. Reaprendi a viver sem meu cabelo, sem esse artifício de beleza, sedução e encarei o meu rosto. Nessas, fui usando brincões, me aventurei mais na maquiagem. Agora, no dia a dia, era engraçado ver as crianças no metrô olhando para mim sem entender. Será que ela é menina ou menino? E é legal porque, agora que eu tenho cabelo de novo, ele não toma mais o espaço que tinha na minha vida anteriormente. Aprendi a me satisfazer com a minha essência. Trouxe um desprendimento que não para só na careca. Vai para roupa, para o estilo, para vida, para tudo!”

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Hanayrá Negreiros

“Desde muito pequena, a minha mãe cuidava do meu cabelo. Até os 18 anos, ela fazia tudo. Tive todo tipo de tranças que você pode imaginar. Diferentes comprimentos, diferentes cores, texturas. Quando eu entrei na faculdade de moda, eu tinha um black power. Foi quando eu estava lá que decidi cortar. Falei com minha mãe (que, aliás, já foi careca na juventude) e pedi para que ela mesma raspasse. Como a máquina do meu pai estava quebrada, minha mãe cortou com a tesoura. Foi um longo processo até chegar no couro cabeludo. O que eu queria, na minha vida, com esse corte, era dar uma grande virada: um renascimento. E, nas religiões de matriz africana, no candomblé, por exemplo, você precisa raspar a cabeça para ser iniciado. Não quero ser piegas ao fazer esse paralelo entre vida pessoal e vida religiosa, mas a verdade é que eu mudei completamente depois disso. Principalmente porque comecei a me tornar mais independente do olhar do outro. No limite, todo mundo achou muito estranho. No começo, às vezes me confundiam com menino e eu chorava, ficava mal, pedia colo para minha mãe, um drama. Mas, isso passou. Com 28 anos, eu respondo a quem me confunde e logo desfaço a confusão. Hoje a careca é minha marca registrada e, né, o shampoo dura um ano. (risos) Entre uma careca e outra, até tive um momento com os dreads. Era um sonho antigo tê-los. Mas não conseguia dar a eles o cuidado que mereciam. A praticidade do raspado me ganhou para sempre.”

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Marcela Saravy

“Olha, eu vou ser muito sincera com você. Não tenho uma história de grande transformação para contar. Na verdade, eu já tive todo tipo de cabelo. Adoro mudar. Até permanente eu já fiz. Mas ainda faltava dar o check no cabelo raspado. Eu sempre soube que queria raspar, então fui me preparando para isso. Fui cortando aos poucos até ele ficar bem curtinho. Estava na cidade em que nasci, Arapongas, no Paraná, com meu namorado e meu cabelo estava meio esquisito (uma parte com permanente e outra lisa). E aí eu pedi para o meu namorado e para a minha irmã rasparem com a máquina do meu pai. Na verdade, na hora que eles terminaram, não gostei muito do resultado. Demorou um tempo para eu me acostumar. Mas o que acontece é que esse era o último passo de um longo processo de abandono de certos costumes ligados à manutenção da feminilidade. Já tinha parado de usar maquiagem no dia a dia e queria, dessa vez, encarar o meu rosto como ele é. Acho que tem um mito de que você tem que ter o rosto simétrico para poder raspar a cabeça e isso não tem nada a ver. Você precisa é conseguir olhar para você e se aceitar. O meu cabelo, por exemplo, escondia as minhas sobrancelhas, que são bem grossas e eu evito ficar tirando. As pessoas reparam, sabe? Mas, ao mesmo tempo, é isto: eu precisava conseguir me achar linda mesmo sem cabelo. Não foi fácil, mas dia após dia eu fui melhorando isso. Foi uma experiência incrível. Inclusive, estou louca para repetir!”

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Ísis Vergílio

“Eu vivi uma ruptura muito profunda na minha vida que foi o término de um casamento de muito tempo. E, naquele momento, eu me vi tendo que travar uma série de confrontos sem ter as ferramentas que hoje eu tenho. Estou falando de feminismo, de empoderamento. Sempre andei muito perto da militância preta, mas preciso confessar que, na época, esse repertório me faltava. Então, acabou que eu saí muito machucada desse divórcio. Para você ter uma noção, eu olhava no espelho e não me reconhecia. Evitava o espelho. Tenho poucas lembranças dessa época. Então, para sair daquele lugar, eu sabia que precisava mudar dos pés à cabeça. Precisava estudar, precisava me mexer e precisava conseguir me enxergar de novo. Não só na imagem, mas nas ideias que eu tinha a respeito de mim, da vida, do mundo. Eu raspei, assim, a metade do meu cabelo. E a minha irmã, na mesma época, teve que fazer um corte químico depois de uma descoloração malsucedida. Quando eu a vi careca, fiquei abismada. Ela estava linda e tudo aquilo fazia muito sentido para mim. E foi assim que eu adotei o mesmo corte. Mas vale dizer que eu comecei a ler Blogueiras Negras, Geledés, e mulheres negras que estavam vivendo ou já viveram coisas parecidas com as que eu vivi. Até porque não é só raspar a cabeça que tudo na vida muda do nada. O cabelo é um reflexo de uma mudança interna. Então, eu tomei a decisão de me transformar. O primeiro banho depois da cabeça raspada foi inesquecível. Nunca tinha sentido a água bater direto no couro cabeludo! Foi mágico. E, sim, é um penteado que confronta os padrões de beleza. Quando eu e minha irmã andávamos juntas na rua, éramos muito agredidas. Tínhamos que armar estratégias (se maquiar mais, usar roupas mais ‘femininas’, tentar sair sempre juntas etc.) para nos desviar dos ataques. A sociedade não consegue entender alguém fora do padrão. Você vira um ET, ou está doente, ou é maluca… Mas eu decidi isso ativamente. E, na boa, acho que não volto para o longo tão cedo.”