Odeia publicidade? Você pode estar vestindo uma

Durante muito tempo restrito aos fãs de artistas e grupos musicais, o merchandising – ou merch – cresceu e se tornou um negócio potencialmente lucrativo para a moda e outros setores.

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A lojinha de Harry Styles tem camiseta e moletom para a divulgação de seu mais recente álbum, o
Fine line, bem como toalhas de praia para o single “Watermelon sugar”, velas com a foto do artista em alusão ao hit “Adore You” e uma sacola dourada para a faixa “Golden”. Alguns dos produtos contam ainda com assinatura de Alessandro Michele, diretor criativo da Gucci.

Já Lady Gaga vende galochas de chuva, jockstrap, sabonete e até biscoitos (uma parceria com a Oreo) sob o guarda-chuva de seu álbum,
Chromatica. Billie Eilish tem maiô, vinil, boné e espelho de mão vintage, além de um lenço de cetim, colarzinho de pérolas e outras bugigangas para seus admiradores. O sucesso que ela gera, principalmente entre consumidores mais jovens, influenciou a rede de fast fashion H&M a produzir itens com o nome e foto da cantora GenZ.

Com os BTS foi a rede de fast food McDonald’s que aproveitou o toque de Midas do grupo com o lançamento de algumas roupas inspiradas na canção “Butter”. São camisetas, pijamas e outros acessórios. Mas se engana quem acha que os sete integrantes emprestam o rosto apenas para junkie food – ,
recentemente eles se tornaram os mais novos garotos-propaganda da Louis Vuitton.

Travis Scott é outro exemplo de quem gera muito dinheiro ao dar o nome (e rosto) a objetos. O moletom do músico, chamado Astroworld, já esteve na lista de desejo de muita gente. O rapper vende até bebida (a Cacti), com a sua identidade visual inspirada no deserto, e o seu poder comercial chama a atenção também de grifes de luxo há algum tempo. A última a firmar parceria com o músico foi a Dior Men. A convite do diretor de criação Kim Jones, Scott desenvolveu a linha de verão 2022 ao lado do estilista britânico.

Todos os casos citados são exemplos recentes de uma ação de marketing cada vez mais presente no mercado de moda e em nossos guarda-roupas: o merchandising ou merch, para os íntimos.

Um pouco de história

Ainda que não restrito à indústria musical, foi por meio dela que a prática ganhou fama – e rendeu lucros. Ao longo dos anos, o merch foi de suvenir de um show especial a um símbolo de resistência, principalmente no caso de fãs que apoiavam músicos e gêneros musicais marginalizados. E, se existe um produto extremamente importante nessa história, ele, sem dúvida, é a camiseta.

Mas foi necessário percorrer um longo caminho para que uma peça tão simples, quanto a boa e velha T-shirt, virasse uma tela em branco para a publicidade, servindo como plataforma para mensagens de apoio a artistas, recado político e até frases de humor.

O modelo de camiseta mais parecido com o que conhecemos hoje nasceu com os uniformes da marinha estadunidense, lá no início do século 20. Sua inserção na cultura popular veio só nas décadas de 1950 e 60, com Marlon Brando e James Dean vestindo o item em filmes clássicos.

Uma das primeiras vezes que foi estampada com a figura de um artista foi com Elvis Presley. Depois, veio uma série de outros empresários interessados em fazer grana com suas estrelas. Afinal, a venda era certeira, tinha groupie demais para comprar. Ao longo da década de 1960, isso foi o que os The Monkees fizeram, bem como os Beatles, que também venderam de docinhos e lancheiras a relógios e despertadores.

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Na ordem de aparição: Marlon Brando; groupie com camiseta em referência a Elvis Presley; e Malcolm McLaren, ao lado de Vivienne Westwood, vestindo camiseta dos Sex Pistols.Foto: Getty Images

Esse movimento se intensifica na década de 1970, quando a camiseta deixa de ser vista como uma roupa da classe trabalhadora e vira um acessório comum, usado externamente por homens e mulheres de várias classes (nos primórdios, a camiseta era roupa de baixo). O avanço da tecnologia de impressão em tecidos é outro responsável pela popularização da peça.

Com o rock’n’roll, a cultura do merch explodiu. As camisetas dos Ramones, projetadas pelo diretor de arte Arturo Vega, foram confeccionadas como pastel de feira, vendidas a um valor tão baixo que rodou os Estados Unidos inteiro em tempo recorde. Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, do outro lado do oceano, por sua vez, foram os padrinhos do punk e grandes marqueteiros dos Sex Pistols por meio de camisetas. E aí vem uma porrada de T-shirts que, até hoje, você vê passeando por aí, como as com estampa do CBGB, dos Rolling Stones e do Metallica.

Nos anos 1980, Prince e Madonna fizeram rios de dinheiro com as suas fotos em roupas. E, nos anos 1990, foi a vez de rappers e produtores musicais, DJS e boates de música eletrônica criarem as suas versões. A jaqueta bomber do selo Ministry of Sound é um bom exemplo disso.

Muito além da música

Em outubro de 2015, na primeira grande apresentação da Vetements, o primeiro look desfilado era composto de calça de couro, camisa de botão preta, botas Doctor Martens e uma camiseta amarela com a estampa da DHL. Isso mesmo, a empresa de correios estadunidense. A imagem parecia estupidamente banal, como a de um indivíduo prestes a pegar o metrô, mas teria um impacto e tanto na indústria.

Demna Gvasalia, então diretor criativo da marca, é esse designer que puxa uma ou outra banalidade do cotidiano para a passarela e enche os fashionistas de vontade. Uma delas foi o logo de empresas com pouco (ou nenhum) apelo fashion. Com isso, ele se tornou um dos principais responsáveis por colocar o merchandising mais uma vez dentro de um contexto cool – e muito além da música.

A partir de então, abriu-se as portas para que grifes colaborassem com artistas, marcas de outros segmentos e até instituições mais inusitadas. Só para citar alguns exemplos que sucederam o sucesso das estampas da DHL, temos a coleção cápsula da Opening Ceremony com a Kodak e a Sacai levando o jornal
The New York Times para a semana de moda de Paris em camisetas.

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Na ordem de aparição: Look DHL do desfile de verão 2016 da Vetements; e merch de Kanye West.Foto: Getty Images

Outro responsável por um baita empurrão no movimento do merch foi Kanye West. Vale dizer que o mundo da moda nunca foi o mesmo desde que ele convidou o artista visual Cali Thornhill De Witt (também colaborador de Virgil Abloh) para fazer camisetas estampadas com letras góticas, em celebração ao seu álbum
The life of Pablo, de 2016.

West estava prestes a soltar o disco em uma apresentação casada com o desfile da Yeezy Season 3, coleção de sua marca de moda própria, num megaevento na semana de moda de Nova York, em pleno Madison Square Garden. O que seria apenas um suvenir, gerou filas quilométricas minutos depois de ser lançado.

No mesmo ano, Justin Bieber convidou o designer Jerry Lorenzo, da marca de streetwear Fear of God, para assinar o merchandising da turnê do álbum
Purpose. Os itens foram tão desejados que pararam nas araras da Barneys, famosa loja de departamento de Nova York.

Essas duas últimas ações de Kanye e Justin encorajaram outros cantores e cantoras a explorar o universo da moda, a ponto de expandir o merch para uma marca própria. É o caso da Golf Wang, de Tyler The Creator, da Fenty, de Rihanna, e da Drew House, do próprio Bieber.

No entanto, o merch não ficou isolado ao universo musical. Em 2018, foi uma marca de beleza que deu pistas do que estaria por vir. A Glossier, queridinha da geração millennial, aproveitou o engajamento com uma comunidade inteira de garotas apaixonadas por suas características e seus produtos, para desenvolver um moletom com o seu nome. A peça chegou a ter uma lista de espera de 10 mil pessoas.

Hoje, esse furor pela marca pode ser considerado cringe, mas o case Glossier evidenciou que a moda caminhava cada vez mais para uma relação com a roupa que contém uma informação. Explicamos: não basta um design rebuscado, um logo bem grande no peito com o nome da marca mais bacana. Às vezes, é preciso ser literal no código para revelar o seu estilo de vida – e isso o merch entrega muito bem. Ao usar um moletom da marca, a garota Glossier comunica qual é a sua visão de beleza: não curte base, adora skincare e é diferente das outras meninas. O merchandising, nesses casos, gera uma ideia de pertencimento.

Não à toa, ele passa a bombar também na política. O site do presidente dos EUA, Joe Biden, chegou a vender moletons desenhados por Vera Wang, com os dizeres “Vote Joe”, durante a campanha eleitoral. Houve ainda colaboração com Prabal Gurung e Joseph Altuzarra. E, antes mesmo que Biden fosse presidenciável, lá em 2017, a Balenciaga já havia feito algumas peças com estampas que lembravam a identidade visual usada pelo então candidato Bernie Sanders.

Com a pandemia, o merch só cresceu

A pandemia de Covid-19 fez negócios interromperem as suas atividades, e quem pôde se trancou dentro de casa. O resultado: queda vertiginosa no consumo e, por consequência, impacto severo em empreendedores e prestadores de serviços, principalmente os autônomos e independentes, como músicos e artistas de uma maneira geral.

Com as pessoas isoladas em maior ou menor grau, surgiu toda uma nova leva de questionamentos, além de outra maneira de entender o que é necessário na rotina e na vida até. As roupas, por exemplo, não tinham muita função, além de cobrir o corpo e ser confortável. Para que comprar uma camiseta agora? Talvez, para apoiar algo ou alguém.

No caso dos músicos, o merch foi uma possibilidade de salvação, um dinheiro extra para o momento de shows interrompidos. Há evidências de que a venda específica de música por streaming não chega nem um pouco perto dos lucros obtidos com uma apresentação. Com atrações canceladas, ficam os objetos. A cantora carioca Letrux já havia assinado uma colaboração com a Ahlma, marca do grupo Reserva, em 2018. Agora, ela tem um site próprio, o Lojinha Letrux, onde vende licenciados, como meias, pin e cangas, além de seu livro, o
Zaralha.

De acordo com uma pesquisa anual a respeito de licenciamentos, feita pela Licensing International, a indústria global de merchandising musical rendeu mais de 3,6 bilhões de dólares, em 2019. Esse é também um mercado rentável para fãs. Hoje, são vários os criadores que homenageiam os seus ídolos com produtos, quase sempre versões menos literais de merchs. Essas peças não só revelam que você é um seguidor assíduo de um artista como também burlam as restrições de direitos autorais. O time jurídico de Harry Styles, por exemplo, é um dos grandes conhecidos dos internautas por caçar lojinhas online que usam o nome ou a imagem do cantor inglês para vender.

O esquema também não desafogou apenas artistas e fãs. Nos Estados Unidos, rolou inclusive uma movimentação, encabeçada pela ONG Merch4Relief, com bares, restaurantes e outros estabelecimentos fechados. A ideia foi rodar o caixa desses pequenos negócios vendendo merch para os seus clientes preferidos. No Brasil, mais especificamente no centro da cidade de São Paulo, o bar Caracol foi um exemplo que recorreu à tática, com a comercialização de camisetas e moletons para não ficar no vermelho.

Esse movimento já começa a ser visto como uma importante tendência no mercado de moda. É que o guarda-roupa de suvenir que temos criado está muito conectado à valorização da hiperlocalidade, o bom e velho bairrismo, além de outras pequenas relações afetivas com instituições que nós apreciamos, gostamos. Algo como usar a camiseta do seu podcast preferido ou o boné do café local.

E, acredite se quiser, este apoio com merch se estende até mesmo ao setor de serviço público. Além de suporte, a camiseta estampada com o logo de uma biblioteca, museu ou empresa estatal também comunica um posicionamento. Nos EUA, rolou uma procura desenfreada por produtos com o logo do serviço postal de lá, o USPS. Essa foi uma maneira de pessoas contrárias à privatização da estatal fazerem um statement. Por aqui, a moda de vestir azul e amarelo, em apoio aos Correios, ainda não pegou, infelizmente.

O mesmo aconteceu com o NHS, o serviço público de saúde inglês, que também recebeu suporte com camisetas e outros acessórios. É algo similar com o que vemos no Brasil com pessoas vestindo o lema “Viva o SUS”, em camisetas. A ideia é celebrar o Sistema Único de Saúde Pública, principalmente em função de seu trabalho importantíssimo no combate à pandemia no país.

A moda como outdoor

O avanço do merch também foi o sinal verde para empresas de outros setores reforçarem branding e, possivelmente, a receita. A Netflix sacou que tem uma comunidade engajada e não perdeu tempo em fornecer uma gama variada de produtos para os seus clientes. Você pode comprar um moletom com imagens da sua série preferida ou uma mesa de centro, em referência à cena no Louvre, da série
Lupin, para decorar a sua casa.

A Ferrari, querendo abocanhar melhor o lifestyle que gera com os seus carros de luxo, tratou de criar uma linha de roupas. Para tanto, a marca italiana fez um desfile em 13 de junho, na sede da empresa. A marca já trabalhava com licenciamentos de perfumes, xampus e computadores, mas, agora, investiu no designer Rocco Iannone, ex-Armani, para ser diretor criativo de uma linha de roupas de alto padrão. Se um carro da empresa está na casa dos milhões, uma jaqueta bomber pode ser adquirida por um pouco mais de mil dólares.

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Na ordem de aparição: Coleção de verão 2022 de Isaac Silva em parceria com as Havaianas; look da ÀLG com estampa do filme “Space jam, um novo Legado”; e o primeiro desfile da Ferrari.Fotos: Getty Images

Por outro lado, a ascensão do merch também foi a luz no fim do túnel para uma parcela da própria indústria de moda mais afetada pela pandemia. Na última São Paulo Fashion Week, três marcas apresentaram colaborações com empresas. A ÀLG, de Fabio Souza e Alexandre Herchcovitch, se juntou a Warner Bros, Consumer Products e fez uma propaganda do filme
Space jam, um novo legado (2021), com camisetas e moletons.

Já Isaac Silva fez par com a empresa de calçados Havaianas. Enquanto a Another Place foi patrocinada pela Becks, cervejaria alemã que se esforça há algum tempo em conquistar a juventude descolada brasileira. Essas três colaborações, é importante dizer, têm propósitos e desdobramentos diferentes, mas todas elas aproveitam a ideia de que vestir um suvenir já não é mais cafona, coisa de tiozão ou turista. Pelo contrário, pode ser bastante cool. A deixa casou perfeitamente com o momento, uma vez que investimentos são muito bem-vindos nos tempos mais bicudos. E aí fica a destreza de cada estilista assimilar tudo isso com o seu próprio DNA ou apenas emprestar a sua roupa, como um outdoor.