Novas leis da natureza

A regulamentação para a entrada de cosméticos internacionais na China foi alterada: não são mais exigidos testes em animais. Mas por que eles foram necessários em algum momento? ELLE investiga a história por trás dessa prática cruel e apresenta novos caminhos para um futuro mais sustentável e menos especista para a indústria da beleza.

Neste ano, o movimento pela diminuição de uso de animais em testes clínicos de produtos de beleza ganhou mais uma batalha. Desde maio, a China, um dos países mais resistentes ao uso de testes alternativos, passou a permitir que “cosméticos comuns”, como maquiagem, esmaltes e produtos para cabelos, fabricados fora do país sejam vendidos sem a obrigatoriedade de testes em animais.

Apesar de excluir “cosméticos não comuns”, como protetores solares, antimanchas na pele e produtos com novos ingredientes, a decisão é um passo importante, visto que o mercado chinês é um dos maiores e mais desejados pelas marcas ao redor do globo. Até então, apenas produtos fabricados localmente podiam se esquivar da rodada de experimentações. Se uma marca estrangeira que fosse cruelty-free em seu país de origem quisesse entrar na China, teria que assinar um acordo com o governo, além de pagar taxas para que testes clínicos fossem feitos antes de seus produtos serem comercializados no país.

Agora, a China reconhece métodos alternativos às experiências com animais, já usados na Europa e em outras partes do mundo. O diretor internacional do órgão de proteção aos direitos dos animais do Reino Unido (RPSCA), Paul Littlefair, disse, em entrevista à Dazed, que o passo é importante. “É um sinal de que as autoridades chinesas estão, cada vez mais, enxergando o bem-estar animal como uma parte importante para o desenvolvimento do país”, declarou. Mas, na realidade, esse foi só mais um passo de uma caminhada que começou há muito tempo, mas que ainda está longe de acabar.

“O uso de animais para o desenvolvimento científico é de longa data”, pontua Maria José Giannini, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp (Universidade do Estado de São Paulo), de Araraquara (SP). Tudo começou com a humanidade usando a carne dos animais para se alimentar. Com o tempo, não se sabe exatamente quando, eles também se tornaram cobaias. Há registros, por volta de 300 anos antes de Cristo, de que pesquisadores gregos como Aristóteles e Erasístrato realizaram experimentos em bichos vivos. O cientista grego Galeno, que viveu por volta de 100 anos depois de Cristo, é considerado o “pai da vivissecção” por ter avançado na compreensão da anatomia, fisiologia, patologia e farmacologia ao dissecar porcos e cabras.

Por mais triste que seja encarar esse dado, é impossível negar os avanços na medicina e na farmacologia moderna que só se deram devido à possibilidade dos testes em animais. Em 1700, por exemplo, procedimentos cirúrgicos eram experimentados em animais antes de serem aplicados em pacientes humanos. Em 1800, Louis Pasteur infectou ovelhas para provar a teoria de germes. Já em 1922, a insulina foi isolada a partir de experiências com cachorros. Até mesmo hoje, bichos como camundongos, cujos genes são 99% compatíveis aos dos humanos, são usados para prever os efeitos de substâncias nas pessoas.

O combate ao uso extensivo de testes em animais, no entanto, começou a entrar em discussão na Inglaterra logo no século 19. “Foram criadas regras para que eles não sofressem nessas experimentações”, explica Maria José Giannini. A primeira lei de proteção animal passou pelo parlamento inglês em 1822, seguida pela Lei da Crueldade Animal, de 1876, que regularizou os testes. “Já havia a ideia de que não era necessário o uso indiscriminado de animais e que havia uma mortalidade imensa deles que poderia ser evitada.”

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Mas o movimento se consolidou e ganhou suas fundações em 1959, quando o zoologista William Russell e o microbiologista Rex Burch criaram, em seu livro The principles of humane experimental techniques, o princípio dos três “r’s”. No conceito apresentado pelos cientistas, o uso de animais em experimentos é permitido, mas deve ser reduzido (“reduce”, em inglês) ao mínimo; refinado (“refine”, no original), ou seja, usado de maneira eficiente; ou substituído (“replace”) sempre que possível por técnicas alternativas. “Essa é uma bíblia que usamos até hoje quando se diz respeito a testes em animais”, destaca Maria José.

Ainda assim, apesar do avanço de leis contra crueldade, as experimentações em bichos ainda eram consideradas primordiais para algumas áreas. Era o caso da indústria de cosméticos. Nos anos 1930, foi criada, nos Estados Unidos, uma lei de padrões de segurança para esse tipo de produção. Foi quando os testes em animais começaram a ser usados no mercado de beleza. Criado na década de 1940, o teste Draize é o mais conhecido deles e também o mais condenado pelos ativistas do bem-estar animal. Na metodologia, bichos como coelhos, cachorros e outros roedores são colocados em fileira, com clipes mantendo seus olhos abertos. São aplicadas, então, diretamente em suas córneas, sem anestesia, substâncias presentes em cosméticos para averiguar o potencial de irritação ocular do elemento. Até os anos 1990, a metodologia era a principal forma de garantir a segurança de itens como máscaras para cílios e sombras.

O teste Draize começou a ser malvisto nos anos 1980, quando o ativista Henry Spira fez uma bem-sucedida campanha contra o uso de animais pela marca Revlon. Em abril daquele ano, ele colocou uma propaganda de página inteira no jornal The New York Times com a frase: “Quantos coelhos são cegados pela Revlon pelo bem da beleza?” Após um ano, a Revlon doou mais de 750 mil dólares para um fundo de pesquisa de alternativas aos testes em animais, ato que foi seguido por outras grandes empresas, como Avon, Estée Lauder e Chanel. As doações deram origem ao Centro de Alternativas aos Testes em Animais, que trabalha até hoje em pesquisas nesse campo de atuação.

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Felizmente, a pressão na indústria da beleza acabou sendo importante para a ciência como um todo. Em 1996, foi criado o selo Leaping Bunny, feito pela Coalition for Consumer Information on Cosmetics, para certificar produtos livres de crueldade animal. Dois anos depois, o Reino Unido baniu o uso de animais em testes de produtos e ingredientes da indústria cosmética. A partir de 2019, a União Europeia proibiu experimentos de itens de beleza em seres vivos e deixou de importar produtos que tenham sido aplicados em bichos desde 2013.

Em uma tentativa de substituir coelhos e roedores, foram criadas alternativas, como o uso de peles “reproduzidas” em laboratório a partir de sobras de cirurgias plásticas. Córneas bovinas de animais recém-abatidos também são usados nos experimentos de irritabilidade. Fora isso, tivemos grandes avanços na biotecnologia, como os human-on-a-chip (humano em um chip), capazes de simular o comportamento de diversos órgãos do corpo humano. Quando esses métodos não substituem completamente os testes em animais, eles podem ser usados como uma etapa anterior. “Ainda temos alguns problemas, mas, por justamente entender-se que não se pode usar animais para a beleza, isso de alguma maneira fez com que todas as pesquisas por métodos alternativos avançassem muito”, comenta a professora Maria José Giannini.

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E no Brasil?

Demorou para o Brasil ter uma regulamentação sobre testes em animais. Foi somente em 1995 que o sanitarista e ex-deputado federal Sérgio Arouca apresentou um projeto de lei propondo mecanismos para assegurar “o uso ético e racional” de animais no Brasil. O projeto foi aprovado em 2008 – cinco anos depois da morte de seu autor. A lei de número 11.794, conhecida como Lei Arouca, não proibiu os testes em animais, mas regulamentou o seu uso. Além disso, a lei também criou uma rede de laboratórios focada na validação de métodos alternativos e deu origem ao Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) e às Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas). Uma das exigências da lei é de que, sempre que houver a necessidade de uso de bichos ou seres vivos em alguma pesquisa, os responsáveis devem apresentar projeto e argumentos que justifiquem a decisão.

Em agosto deste ano, chega ao fim o uso de animais por métodos alternativos em testes de potencial de irritação e corrosão ocular, de toxicidade de substâncias no sistema reprodutivo humano e de controle de qualidade de produtos injetáveis por universidades, empresas e institutos públicos e privados de pesquisa. Caso as exigências não sejam seguidas, serão aplicadas multas. “Há uma rigidez muito forte, tanto que os centros de pesquisas que não cumprirem as determinações podem ter suas atividades suspensas”, alerta Maria José. “Esse cenário fez com que tivéssemos avanços significativos. O teste no olho do coelho, por exemplo, foi banido. Criaram-se, ainda, 24 métodos alternativos a ele.”

Além da Lei Arouca, no Brasil há oito estados que contam com leis que proíbem o uso de animais em determinadas indústrias: Amazonas, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

A indústria de cosméticos foi a que mais avançou ao se adequar às exigências do Concea e, assim, melhorar a imagem criada nos anos 1980 com a campanha de Spira. O Grupo Boticário não usa bichos para testar seus produtos desde 2000, enquanto a Natura decidiu seguir o mesmo caminho em 2006. “O grande problema da indústria da beleza brasileira é que temos grandes empresas que usam métodos alternativos, mas as pequenas continuam a usar animais”, aponta a professora da Unesp. “Desde 2014, está no Congresso uma discussão sobre a proibição de uso de testes em animais na cosmética”, lembra.

Voltando para a China, a situação do outro lado do mundo também não é a ideal: a não-exigência de uso de animais se dá em relação aos testes pré-comercialização, em que é verificada a segurança de um produto, e aos testes de pós-comercialização rotineiros, nos quais há a retirada aleatória de produtos de prateleiras para verificar sua autenticidade. Os testes pós-comercialização não rotineiros, feitos quando há reclamação de um consumidor ou quando há suspeita de um problema de segurança ou saúde pública, poderão ser feitos em animais – mesmo que raramente sejam executados, já que são mais caros e demorados.

Além disso, os testes em animais continuam sendo permitidos em território chinês. A China apenas atualizou a lista de métodos reconhecidos pelo órgão de segurança sanitária. E, para as marcas conseguirem vender no país, elas deverão ter certificações internacionais que ainda não estão completamente claras.

Ainda assim, Maria José Giannini acredita que, com o andar da carruagem da ciência, os testes em animais até podem não cair em desuso tão cedo, mas devem ser diminuídos significativamente. “No ensino, já não se usam animais vivos. Há uma série de estruturas, modelos, que avançaram bastante”, diz a professora. A pressão dos órgãos regulatórios é importante para que o trem do progresso não perca o ritmo. A biotecnologia, que ajuda a criar simulacros do corpo humano, deve ganhar mais força conforme a indústria vá se adaptando às novas regras. “É preciso fazer os testes dentro do arcabouço legal e é isso que faz os grupos pesquisarem, cada vez mais, novos métodos que podem futuramente ser aceitos por esses institutos.”