O dono do Carnaval

Orixá do movimento e da alegria, Exu abre caminho para a folia dos blocos e escolas de samba, maracatus e afoxés e abençoa com seu axé todos aqueles que brincam na maior festa popular do mundo.

 

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Ilustração: Jesus Credo (@credo.jesus)

Exu é o dono da festa, o dono da rua, o dono do Carnaval. O senhor das encruzilhadas, dos becos e vielas, das avenidas e sambódromos abre alas, abre caminhos e pede passagem. “Laroiê!”, saúdam seus devotos. Gente simples da comunidade, das quebradas, dos morros, vilas e favelas. Gente que traz no corpo a ginga, no pé, o samba, na alma, a negritude. Eles não brincam sem pedir licença. “Agô, mojubá”, permissão e respeito, porque a rua é de Exu, a rua é do povo.

Carnaval é festa de rua, é festa do povo, é festa de Exu. Laroiê, mensageiro do orun, guardião dos portais e porteiras, senhor do primeiro dia, que renasce das cinzas de uma quarta-feira e recomeça o sonho. A festa é sua, só sua, toda sua e de quem mais chegar. Qual a graça de brincar sozinho? Exu gosta de gente, muita gente, mais gente, uma multidão. As encruzilhadas forradas de farofa e cachaça, de farra e gargalhadas, de samba e agitação. Corpos e bocas se misturam, línguas e sotaques convergem, cores e cheiros se fundem. Exu gosta.

Na curva da ladeira estreita, escura, a chama das velas pretas e vermelhas lançava sombras e disputava com a lua quem revelaria o mistério daquele fevereiro incerto. Naquela esquina ergueu-se um altar: cravos e rosas vermelhas, cigarros e charutos, perfume adocicado, gim, champanhe. De onde vinham as oferendas? Dizem que Exu joga nos dois times sem nenhum constrangimento. Na mesma noite, outras tantas encruzilhadas receberam ebós de todo tipo: galos e bodes, uísque barato, uísque importado, frutas e flores. Exu aceitou cada uma delas e deixou sobre a cidade uma aura de felicidade e regozijo. Sem alegria, não tem festa.

Quem quer brincar em paz faz o ebó de Exu. Quem quer voltar em paz também faz. Um cotovelo que esbarra, um pé que pisa no outro, um tropeço que vira empurrão e o coro come. Do nada, a briga. “Arerê” é festa, mas também é confusão. A rua tem dono. Peça licença. “Laroiê”, saúdam seus devotos, e tudo se acalma. Sua fama gira o mundo, num espiral interminável, num vaivém constante. Exu gosta de brincar, mas não brinque com Ele, não.

Universal, pluriversal, em cada um e em todos, Exu é aquele que fala todas as línguas e não se cala diante de nenhuma injustiça. Fiscal no mercado da vida, Exu gosta da troca, mas abomina a barganha. Gratidão é sua moeda, reciprocidade é seu critério, dádiva, o seu retorno. A boca diz o que quer, mas Exu verá seu coração, ainda que você o esconda. Ele não é santo, ele é humano, generoso e sincero. Se você chorar, Exu vai chorar lágrimas de sangue, mas não queira ver sua ira, sua guerra. Seu melhor amigo ou seu pior inimigo? Você escolhe.

Bom pra quem é bom, ruim pra quem é ruim. “Agô, mojubá”, perdão, permissão e respeito. Quem quer ganhar chama por Exu, quem não quer perder também chama. O afoxé arria o “padê” e pede licença. A escola de samba faz o “orô” e pede licença. Defumando a passarela, lavando o chão da Sapucaí, jogando farofa nas ladeiras do Pelourinho. Carnaval é coisa séria, Carnaval é revolução, Carnaval é sagrado. Quem é maluco de ir pra festa sem despachar a rua? Quem sai pra brincar sem saudar Exu? Somente Ele subverte a ordem pra restaurar a vida. Laroiê!

Um incerto fevereiro, depois de um ano incerto. Os desenganos de um Carnaval que chegou, mas não veio. Na encruzilhada, eles se encontraram. O linho impecável do terno branco e o sapato bicolor brilhando em verniz, o vestido preto tomara que caia e os babados da saia rodada e a nesga revelando uma das pernas. Queriam festa, farra, folia. Queriam viver. O despacho luzia no lusco-fusco. Ele pousou o cravo na lapela e ela colocou uma rosa entre os seios e outra nos cabelos. Brindaram com gim e champanhe enquanto se perdiam entre as sombras da noite, com seus passos de cabrocha e mestre-sala, na magia de um tempo que nem começou.

É, senhores e senhoras, este ano não tem Carnaval, mas que importa? A rua é do povo e a revolução se faz com o povo na rua. Todos os dias são de Exu e toda ordem injusta deve ser subvertida. E, por fim, que venha o Carnaval de 2022, porque o melhor da festa é esperar por ela.

Rodney William é babalorixá, doutor em ciências sociais pela PUC-SP e autor do livro Apropriação cultural, da coleção Feminismos Plurais (ed. Jandaíra).

Esta reportagem foi publicada originalmente em fevereiro de 2021, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.