“O rosto de milhões” existe?

A resposta ao meme acima, em elogio a um rosto belo, jovem e perfeito, provavelmente é não. Mas a sociedade é cruel: cobra das mulheres a eterna juventude ao mesmo tempo que julga as que recorrem a cirurgias plásticas e procedimentos não invasivos.

Nem mesmo um dos maiores símbolos sexuais dos anos 1980 e 90, a atriz estadunidense Jamie Lee Curtis, saiu impune da violenta pressão estética imposta às celebridades. Quando estava na casa dos 20 anos, ela ouviu de uma operadora de câmera do filme em que atuava que seus olhos eram muito inchados. “Fiquei mortificada e tão constrangida que fui fazer uma cirurgia plástica de rotina para remover o inchaço”, um traço natural do seu rosto, visível inclusive em suas fotos de criança, como contou a atriz em entrevista à Variety, em 2019. Após o procedimento, seu médico receitou a ela Vicodin, um analgésico opioide. A partir de então, durante os dez anos seguintes, Jamie manteve um vício no medicamento.

Aos 63 anos de idade, ela se orgulha por estar sóbria há mais de duas décadas. E mais: a atriz tornou-se uma porta-voz do direito de ficar velho. Com seus cabelos grisalhos à mostra, ela fala abertamente sobre o processo de envelhecimento e a recusa de novas intervenções estéticas. “Foi um erro. Não ficou bom. Odiei tudo aquilo. Só me senti pior do que eu já me sentia”, disse na mesma entrevista.

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Quem não titubeia em falar sobre o lado perverso das cirurgias plásticas e de tratamentos dermatológicos é a também atriz Courteney Cox. Quando Friends estreou, em 1994, ela estava no auge de sua juventude. Em 2004, no fim desse que foi um dos maiores sitcons da história da televisão estadunidense, o mundo todo a pressionava para ter o mesmo rosto de quando tudo começou. “Tentei buscar essa pele por anos como se isso fosse possível”, revelou ao jornal The Sunday Times. O que começou com algumas injeções de preenchimento facial acabou somente quando Courteney já se sentia descaracterizada. “Vi que estava estranha. Foi quando eu entendi que precisava parar. Se pudesse voltar atrás, não faria novamente.”

Mas nem sempre os efeitos indesejados são facilmente reversíveis, como no caso do preenchimento facial com ácido hialurônico contemporâneo. Em fevereiro deste ano, a supermodel canadense Linda Evangelista, 56 anos, contou que tem lidado, desde 2016, com os danos colaterais de um procedimento chamado CoolSculpting, tecnologia tida como alternativa não invasiva à lipoaspiração e que congela e mata as células de gordura. Em entrevista à revista People, a top disse que o procedimento a deixou “permanentemente deformada” e “brutalmente desfigurada”.

Ela se submeteu a sete sessões de CoolSculpting entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016. Três meses depois, surgiram protuberâncias nas costas, nas coxas e na papada, regiões do corpo onde ela buscava exatamente o oposto: perder gordura. As protuberâncias aumentaram e endureceram – o que em termos médicos significa que Linda teve hiperplasia adiposa paradoxal (HAP), um efeito colateral raro do CoolSculpting. Nesses casos, em vez de sumir, o tecido gorduroso aumenta de volume. A modelo então começou a fazer dieta e mais exercícios, mas não funcionou. Por fim, ela entrou com um processo contra a Zeltiq, empresa responsável pela tecnologia. “Eu não me reconheço fisicamente e também não me reconheço mais como pessoa”, declarou a supermodelo, referindo-se a si própria, Linda Evangelista, como outra pessoa: “Ela meio que se foi”.

Jamie, Courteney e Linda são mulheres que ficaram famosas muito jovens e em uma época em que rosto e corpo eram considerados pela indústria hollywoodiana e fashionista como parte de seus talentos. Naquele período, o discurso feminista não tinha o espaço que ocupa hoje na cultura pop, e não havia limites no grau de humilhação exercido pela imprensa de tabloides. Uma saída da celebridade até o supermercado com os culotes à mostra era motivo para estampar a capa de uma revista e representar até mesmo o fim da carreira da profissional.

“Sempre existiu uma pressão estética porque o capitalismo sabe explorar muito bem a beleza da mulher. No decorrer da história, ela se tornou um produto muito rentável”, diz Yuri Busin, psicólogo especialista em neurociência do comportamento. “Sempre houve a procura por cosméticos, até mesmo em épocas de crises severas, como guerras. Temos medo da velhice porque a juventude é tida como sinônimo de beleza”, continua Yuri. Ou seja, nos anos 1990, auge da pressão estética sendo impulsionada pela mídia, as famosas sentiam pavor das rugas não só por vaidade, mas por medo de perderem sua relevância, sua trajetória, sua autonomia. Foi nesse contexto que as cirurgias plásticas e os procedimentos estéticos conseguiram alcançar tanta popularidade. A promessa de uma solução mágica para driblar as marcas do envelhecimento era tentadora demais para ser ignorada.

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Da época dos papiros

“A cirurgia plástica existe desde sempre”, diz Renata Vidal, médica cirurgiã plástica. A especialidade é uma das mais antigas: há registros de cirurgia reconstrutiva de um nariz quebrado no papiro egípcio Edwin Smith, de 1600 a.C. Em 800 a.C., Sushruta, considerado o pai da cirurgia plástica, usava técnicas de operações reconstrutivas na Índia. Suas descobertas foram registradas no livro Sushruta Samhita. Porém a cirurgia plástica como conhecemos hoje começou a ser desenvolvida após a Primeira Guerra Mundial, quando o médico Harold Gillies, neozelandês radicado na Inglaterra, criou técnicas de reparo facial para tratar soldados sobreviventes do conflito, colaborando também na divulgação do impacto emocional do reparo estético.

Até os anos 1980, a cirurgia era a única opção para quem quisesse realizar qualquer mudança na aparência. Pouco depois, começaram a surgir técnicas e produtos que permitiam obter determinados efeitos sem ir para a faca. Foi aí que o jogo virou.

Um dos primeiros procedimentos não invasivos e também o mais famoso é o botox, nome fantasia para a toxina botulínica. De acordo com levantamento de 2018 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, a aplicação da substância corresponde a 38% dos tratamentos estéticos não invasivos realizados em todo o mundo. “Inicialmente, ela foi utilizada para fins terapêuticos, entre os anos 1950 e 60, pelo oftalmologista Alan Scott, que buscava terapias alternativas para o estrabismo e percebeu a melhora nas rugas”, conta Renata. “Em 1989, o nome botox foi registrado pela Allegran, empresa estadunidense baseada na Irlanda. O medicamento chegou no Brasil em 1992, inicialmente para tratamentos de problemas neurológicos e, posteriormente, para fins estéticos.”

De acordo com a médica, o que levou as pessoas a terem mais acesso a procedimentos estéticos, principalmente os não invasivos, nos anos 1990 e 2000, foi a quebra de patente e a globalização. “Antes não havia concorrência, e o produto tinha um valor muito elevado. Quando outros fabricantes puderam disponibilizar a tecnologia, ela se tornou mais acessível. Além disso, os fabricantes abriram centros de distribuição no Brasil”, conta Renata. Hoje, o mercado oferece vários tipos de toxina botulínica, com diferentes origens e produtores.

Outro procedimento que ficou muito popular nos anos 2000 foi a bioplastia, preenchimento com PMMA (sigla para polimetilmetacrilato), material derivado do petróleo. “As pessoas ficavam encantadas porque ele não é absorvido pelo corpo e, assim, tem efeito duradouro.” Mas com o tempo caiu em desuso ao se mostrar perigoso por causa de seus danos colaterais, como a necrose.

Difícil esquecer o caso da personalidade televisiva brasileira Andressa Urach, que quase morreu, em 2014, em consequência de uma bioplastia do corpo realizada com a técnica. “Hoje, ainda há quem use o PMMA porque é um produto mais barato, mas já não é tão recomendado.”

O facelifting, que “levanta” olhos, boca e maçãs do rosto, também é um dos mais requisitados nos consultórios estéticos. Até o fim dos anos 1990, só se conseguia o efeito com cirurgia plástica, porém os fios de tração se tornaram uma alternativa de procedimento não invasivo. Inicialmente, eram utilizados os fios russos e de ouro, mas se tornaram obsoletos também em função dos danos colaterais – os fios podiam necrosar ou ficar aparentes. “Agora, são usadas versões absorvíveis pelo corpo, que têm uma durabilidade menor, mas são mais seguras”, diz Renata.

A cirurgiã ressalta que todos os procedimentos, mesmo os não invasivos, têm seus riscos. O que mudou dos anos 2000 para os 2020 foi o avanço tecnológico e técnico. “Mal sabíamos utilizar o produto, estávamos aprendendo. Hoje, para fazermos um preenchimento ou aplicação de toxina botulínica, precisamos ter um conhecimento amplo da anatomia da face. Não é como receita de bolo, em que seguimos os mesmos passos no rosto de todos os pacientes.” Assim, ficou mais fácil evitar a chamada “cara de botox”.

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Cara de botox

Em 2008, o programa humorístico Zorra total, da TV Globo, estreava as personagens Leonina Borges e Madame Klimeck, de Samantha Schmutz e Carine Klimeck, respectivamente. São duas mulheres ricas, viciadas em cirurgia plástica. Uma tem um dos olhos semicerrados, por causa de uma intervenção malsucedida. A outra tem as mãos grudadas nas laterais do rosto de tanto alisá-lo para disfarçar as rugas. Elas eram caricaturas do que Renata Vidal chama de “cara de botox”. “Tem uma sobrancelha superelevada, a testa é paralisada, há perda da mímica (movimento) da face”, descreve.

Muitas foram as famosas que caíram nessa cilada nos anos 2000. E, nesses casos, a sociedade não tem constrangimento em apontar os dedos. “Virou um estigma”, diz Renata. Para Yuri Busin, fazemos julgamentos por esporte e porque temos dificuldade em entender o que os outros estão passando. Não é fácil envelhecer sob os holofotes e lidar com a pressão social para ter o rosto perfeito. Para completar, a popularização dos procedimentos estéticos tornou os padrões de beleza ainda mais rigorosos.

Fala-se bastante em vício em cirurgia plástica. Segundo a psicóloga Amanda Moraes, não há um diagnóstico para tal, porém a busca desenfreada por procedimentos pode estar relacionada, em certo grau, a uma dismorfia corporal, distúrbio psicológico em que a pessoa se vê de forma diferente da realidade. “Ela se olha no espelho e se vê mais gorda ou mais feia, por exemplo”, fala Yuri Busin. A pressão social e a farta exposição de imagens de pessoas “perfeitas” na mídia e nas redes sociais induzem a uma visão idealizada do que é belo. Uma simples ruga aparece no rosto e a pessoa passa a ficar obcecada por aquele sinal. Convive com a certeza de que todos reparam naquela marca, que a fez envelhecer dez anos. Se “corrige” a ruga com botox no dermatologista, logo fica obcecada com a nova ruga que aparece.

Courteney Cox disse em entrevista à Allure, em 2017, que passou por algo semelhante. “Fui a um médico, que fez algumas correções, e gostei do resultado. Mas logo um amigo me falou de outro especialista que era ótimo. Decidi consultá-lo e ele fez mais algumas aplicações. Quando percebi, havia feito várias alterações. Até que uma amiga me disse que já era o bastante.”

Uma boa notícia é que, sim, pode-se ter uma relação saudável com procedimentos estéticos. “Não sou contra eles. Há pessoas que têm um bom ganho psicológico ao fazê-los. A questão é manter o equilíbrio”, afirma Amanda. “É preciso fazer com cuidado, gradativamente. Há limites e eles ficam muito claros quando você não para de pensar no assunto, quando a sua vida gira em volta do próximo procedimento estético. Daí é importante reavaliar se aquilo é realmente necessário”, complementa Yuri Busin.

Aos 57 anos, Courteney disse que já não está mais tão ansiosa em relação ao envelhecimento. “Não há dúvida de que estou mais segura. Aprendi muito em minha vida – sobre o que apreciar, o que experimentar mais e o que deixar para lá.”