O suco de fruta que vitaminou a luta LGBTQIA+

Há 45 anos, a comunidade gay de San Francisco declarou guerra à laranja da Flórida. Entenda por que e como esse protesto elevou o movimento anti-homofobia a outro patamar.

Hoje você entra em qualquer bar do mundo e, numa boa, pede um coquetel com suco de laranja. Pode ser o malicioso Tequila Sunrise (que por uns tempos foi o preferido de Mick Jagger), o básico Screwdriver (laranja com vodca), o gostosinho Garibaldi (com Campari). Nos Estados Unidos de 1977, porém, pedir uma dessas receitas em um bar gay (ou friendly) poderia ser o começo de uma boa treta. O suco de laranja da Flórida, mais especificamente, foi boicotado por ativistas e pela comunidade homossexual engajada na luta contra o preconceito. O movimento buscava atingir em cheio a figura de Anita Bryant, uma das mais ferozes inimigas dos direitos gays àquela altura, quando havia muito o que conquistar (e ainda há).

“Café da manhã sem suco de laranja é como um dia sem sol”, dizia Anita, ex-miss Oklahoma, cantora pop e namoradinha da América num dos muitos comerciais de televisão que gravou para a Florida Citrus Comission, consórcio que reunia (ainda reúne) os maiores produtores de laranja do estado sulista. Em 1969, com histórico de alguns sucessos nas paradas, Anita foi considerada pela comissão de agricultores e industriais o perfeito avatar para uma longa e exitosa campanha sobre os benefícios de consumir, logo cedo ou ao longo do dia, o suco de laranja concentrado produzido na região e distribuído em todos os Estados Unidos. Era bonita, desembaraçada, elegante, cativante, representava o ideal da dona de casa estadunidense. Não por acaso, também já havia propagandeado os plásticos Tupperware, símbolo da moça prendada, prestimosa e arrumadinha. Ainda permitia que os filhos pequenos aparecessem em algumas peças publicitárias, referendando com mais ênfase o atributo de “família feliz” do produto.

Anita seguia pimpona, cantando em dueto com o Orange Bird, personagem de animação que habitava laranjais ensolarados. Gravou um disco infantil em ode à laranja da Flórida, em parceria com a Disney. Mas o caldo entornou quando foram apresentadas em vários estados do país emendas antidiscriminatórias a leis que permitiam que pessoas fossem demitidas, despejadas ou tivessem serviços negados por causa de sua orientação sexual. Anita foi uma das mais notórias opositoras dos direitos dos homossexuais. Liderou uma organização batizada de Save Our Children (Salvem Nossas Crianças) não para amparar crianças que precisassem de ajuda, mas para, “com Deus do nosso lado”, impedir a aprovação das leis pró-gays na sua querida Flórida, onde não havia nascido, mas onde fazia fortuna como Rainha do Laranjal.

“A semente da doença sexual que germinou no condado de Dade (um dos 67 condados da Flórida) já foi transplantada para liberais desviados do Congresso”, disse Anita em um de seus discursos. Não raramente, ela se referia a homossexuais como “lixo humano”. Em outra ocasião, declarou: “Se gays receberem seus direitos, em seguida vamos ter de dar direitos a prostitutas, a pessoas que dormem com cães são-bernardo e a quem rói as unhas”.

Os ativistas estadunidenses pelos direitos civis dos homossexuais, luta que já era realidade antes mesmo dos famosos confrontos com a polícia em frente ao bar Stonewall, na Nova York de 1969, não estavam dispostos a deixar que se fritassem bolinho com eles. Ou que lhes azedassem o coquetel. Na impossibilidade de dialogar com a turma dos intransigentes, alguém teve a ideia de se focar no que poderia se tornar mais vulnerável naquele momento: o bolso dos produtores de laranja da Flórida. E, por tabela, o de Anita.

O Tabern Guild, primeira associação de estabelecimentos gays de San Francisco, organizou com proprietários, funcionários e clientes um grande despejo de suco de laranja nos bueiros, ato que foi copiado em outras cidades do país, em bares gays ou não. Se o cliente quisesse beber um Screwdriver ou qualquer outro coquetel com laranjas, tinha de trazê-las de casa. E que fossem californianas – ai de quem aparecesse com frutas da Flórida na bolsa. Havia espremedores disponíveis para as pessoas – o bartender nem sujava a mão com laranja. O Apple Martini e o Greyhound (vodca com grapefruit) foram hits na temporada. Havia piquetes em supermercados e mercearias, com ativistas explicando aos compradores a importância da não-opção pela laranja da Flórida.

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Manifestantes em Chicago: o protesto contra o suco de laranja e Anita Bryant foi além da Califórnia.Foto: Getty Images

O movimento também ganhou força com a voz do ativista Harvey Milk, na época mandando brasa na área da Castro Street, em San Francisco, e convocando todos os defensores dos direitos humanos a beber qualquer outra coisa no café da manhã. Milk sugeriu o abacaxi como substituto em sua coluna no jornal Bay Area Reporter. Os protestos ganharam cartazes, buttons, camisetas (“Anita sucks oranges”, ou seja, “Anita chupa laranjas”, era o slogan mais singelo). Aderiram ao boicote celebridades peso-pesado, como Jane Fonda, Barbra Streisand, Vincent Price, Bette Midler, Mary Tyler Moore e Charles Schulz (o genial criador de Charlie Brown e sua turma).

Anita chiou, fez-se de mártir. Dizia que o movimento atacava sua fonte de renda (como se não fosse exatamente esse o objetivo de um boicote), mas que triunfaria, sempre “com Deus a seu lado”. No tocante à legislação do condado de Dade, de fato saiu vitoriosa: os votantes conversadores derrubaram a emenda antidiscriminatória. A comunidade gay de San Francisco saiu em marcha, carregando velas até o prédio da prefeitura, sem medo de se denominarem “faggots” (bichas) e “dykes” (sapatões), cena reconstituída no filme
Milk (2008), de Gus Van Sant. Harvey Milk discursou e escreveu textos em que pregava a união na luta contra a discriminação, agora mais do que nunca. Naquele mesmo 1977, ele seria o primeiro político abertamente homossexual a ser eleito para um cargo público em San Francisco e na América, como supervisor (posição equivalente à de vereador nas cidades brasileiras).

O ataque ao suco de laranja de 45 anos atrás impulsionou uma longa série de boicotes a empresas, instituições e pessoas que costumam azedar e fiscalizar a vida social e sexual alheia. Já a presença de Anita desmoronou em pouco tempo. E não há revisionismo que a levante. Ainda em 1977, recebeu uma negativa da Singer Corporation (a das máquinas de costura) para patrocinar um programa de variedades que seria comandado por ela na televisão. Foi demitida do cargo de Embaixadora do Suco de Laranja em 1980, ano em que também acaba seu casamento, considerado perfeito, com Bob Green, disc jockey e companheiro de ativismo contra os direitos gays.

Anita continuou advogando pela discriminação de homossexuais até quando e onde pôde, tentando interferir com sua influência, já bastante abalada, na legislação de outros condados e estados. A carreira de cantora evaporou, houve algumas tentativas “póstumas” de ressurgimento no campo da música gospel. Declarou falência pelo menos duas vezes. Hoje, de volta ao Oklahoma natal, aos 82 anos, mantém uma organização de caridade batizada de Anita Bryant Ministries International, que mantém um
site pouco ativo.

O movimento pelos direitos civis dos homossexuais, por sua vez, só cresceu com o boicote ao suco que sacudiu a nação. Bob Kunst, ativista de Miami que peitou Anita na Flórida, resumiu certa vez: “Ela nos deu todos os acessos à mídia. Reunimos um clipping com 50 mil recortes sobre o caso. Foi o momento em que a palavra ‘gay’ se tornou familiar e em que abrimos todo um debate sobre a sexualidade humana”.

O impacto do movimento nas vendas de suco de laranja parece não ter sido preocupante para os produtores, de acordo com alguns historiadores do marketing, como Terrence H. Witkowski, autor de A history of american consumption: threads of meaning, gender, and resistance (A história do consumo na América: tópicos de significado, gênero e resistência). O estudioso ressalta, no entanto, a importância desse tipo de movimento nos anos 1970 como um presságio da grande mudança de percepção cultural sobre a comunidade LGBTQIA+ no século 21.

Um dos retratos de Anita mais caros aos seus oponentes é sua imagem levando uma torta de creme na cara, aplicada pelo ativista Thom Higgins, de Minnesota, durante uma entrevista coletiva em 1977, auge do arranca-rabo. Há vários links do vídeo da tortada à disposição nas redes. “Se há um momento na história que nunca falha em me trazer felicidade é aquele em que Anita Bryant leva a torta na cara”, escreveu a jornalista Harron Walker na abertura de um artigo para a revista eletrônica de cultura pop Jezebel.

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Ano passado, Anita voltou a ser notícia quando sua neta, Sarah Green, anunciou em um podcast seu noivado com uma mulher. “Mais uma torta na cara de Anita Bryant”, titulou a versão online da revista Advocate, a mais tradicional publicação de defesa dos direitos homossexuais nos Estados Unidos. Sarah fez o coming out por telefone, em seu aniversário de 21 anos, quando ouviu da avó que, se tivesse fé, o homem certo apareceria. “Espero que não, vovó, porque sou gay e não quero que nenhum homem apareça.”

 

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