Ponto de interrogação

O que acontece quando duas musas cantam a dor de cotovelo?

Quando eu era criança, aprendi a expressão “dor de cotovelo”. E descobri que essa dor tão estranha tinha até música específica. Fossa. Sofrência. Ela tá sempre aí, essa dor.

Com o tempo fui entendendo que tinha a ver com ciúme, frustração, inveja, decepção. As coisas que todo mundo sente em alguma medida, mas só os corajosos admitem, lidam, enfrentam.

Maysa, Angela Roro, Marilia Mendonça. São muitas e muito diferentes em tudo as musas da dor de cotovelo. O cotovelo dói será por quê? De apoiar na mesa e olhar pro infinito. De tanto cotovelar a amiga e dizer, alá, olha aquela peste. De dar cotoveladas mundo afora na rodinha punk que chamamos de amor. Cafonas, exagerados. É isso aí.

Mas, pra mim, entre muitas outras joias e recortes possíveis para o seu repertório sensacional, a musa maior dessa dor é Alcione. Não é só um gosto. Vou deixar aqui um trio matador como base do meu argumento.

Meu vício é você. Estranha loucura. Você me vira a cabeça.

“Jogo apenas o jogo do amor

Eu não vou lhe dizer

Que não tenho defeitos

Mas com eles me arrumo

Me acerto, me ajeito

Meu problema é um segredo

Guardado no peito

Que se chama paixão

Meu vício é você!

Meu cigarro é você!

Eu te bebo, eu te fumo

Meu erro maior

Eu aceito, eu assumo

Por mais que eu não queira

Eu só quero você

Meu vício é você!

Meu dadinho, meu jogo

De cartas marcadas

Essa droga de sonho

Não vai dar em nada

Vim rolando na vida

E parei em você”.

A pessoa, quando ela chega a esse ponto, a análise pessoal decola. Ou não. Mas olha que lugar maravilhoso pra começar a virar esse jogo de cartas marcadas. Ou abraçar de vez, mas de outro lugar. Segura a próxima:

“Minha estranha loucura

É tentar desculpar o que não tem desculpa

É fazer dos teus erros

Num motivo qualquer a razão da minha culpa

Minha estranha loucura

É correr pros teus braços quando acaba uma briga

Te dar sempre razão

E assumir o papel de culpada bandida

Ver você me humilhar

E eu num canto qualquer

Dependente total do teu jeito de ser

Minha estranha loucura

É tentar descobrir que o melhor é você

Eu acho que paguei um preço por te amar demais

Enquanto pra você foi tanto fez ou tanto faz

Magoando pouco a pouco

Me perdendo sem saber

E quando eu for embora o que será que vai fazer?

Vai sentir falta de mim

Sentir falta de mim

Vai tentar se esconder

Coração vai doer

Sentir falta de mim”.

Que parte é mais estranha dessa loucura descrita com tanta lucidez? Entregar tudo, notar a indiferença e ainda assim imaginar que, quando tudo acabar, nossa falta será muito sentida? Seria esse o objetivo? Quantas perguntas. Mas é música, então não basta a letra, é preciso ouvir. A parte entre amar demais e a questão sobre o que vai acontecer depois parece a mais doída.

E, enfim, o choque maior de realidade. Cabeças virando por todo lado:

“Você me vira a cabeça

Me tira do sério

Destrói os planos que um dia eu fiz pra mim

Me faz pensar porque que a vida é assim

Eu sempre vou e volto pros teus braços

Você não me quer de verdade

No fundo eu sou tua vaidade

Eu vivo seguindo teus passos

Eu sempre estou presa em teus laços

É só você chamar que eu vou

(Por que você não vai embora de vez?

Por que não me liberta dessa paixão?)

Por quê?

(Por que você não diz que não me quer mais?

Por que não deixa livre o meu coração?)

Mas tem que me prender (tem!)

Tem que seduzir (tem!)

Só pra me deixar

Louca por você

Só pra ter alguém

Que vive sempre ao seu dispor

Por um segundo de amor”.

Depois dessa, quem fica não pode mais chamar o zap da inocência. Tá tudo aí. Fim de sessão. Mas e o dia seguinte? E a paixão pelo drama, o que faz com isso? O eco do “tem”, o jogo de vozes. É ponto de virada, na melhor das hipóteses. Alcione, que maravilha.

A coisa atravessa gerações. Não à toa, Ludmilla, musa mais recente, foi revisitar Alcione. Escolheu a icônica
Faz uma loucura por mim. Eu, particularmente, amo essa. Ela é uma sequência interessante das anteriores. Tipo, tá, eu curto drama, mas, meu bem, quero sentir o drama pro meu lado. Você também tem que me dar exagero. Pode ser que funcione, faz aí, quero ver.

“Faz uma loucura por mim

Sai gritando por aí bebendo e chora

Toma um porre, picha um muro que me adora

Faz uma loucura por mim

Fica até de madrugada, perde a hora

Sai comigo pra gandaia noite afora

Só assim eu acredito nessa história

Que você sentiu saudades de me ter

Põe na prática besteiras da memória

Pensa menos, faz de tudo, manda ver

Vem pra dentro, tenta ser da mesma escória

Como já fiz mil loucuras por você.”

Vai que. Não é romantizar perrengue, muito menos abuso. Mas é saber que há complexidades nesse jogo. Consideradas todas as razões, há outras coisas atuando. É bom poder falar delas. E, se for o caso, tem aquela: “Não posso mais alimentar a esse amor tão louco, que sufoco”. Esse “a” extra é um mistério.

A Ludmilla tem uma ótima pra hora em que a paciência acaba. O jogo unilateral, o dar seu melhor pra ser um eterno contatinho de uma daquelas pessoas que fala “eu te amo” mais do que “bom dia”.

“Tá, entendi

Três da manhã, me chamando

Sei, fala aí

Só não precisa falar eu te amo

Quando a gente ‘tava junto

Você só vacilava, ah

E agora ‘tá ligando essa hora

Pra dizer que me amava

Amava porra nenhuma, deixa de onda

Para com isso, não vai me enganar

Amava porra nenhuma, pode falar

Tu só lembra de mim quando tu quer transar”.

E fim de papo.

Mas acho que ela tem uma mais Alcione, com o jeito e talento próprios, evidente. Gosto porque traz a coisa pro terreno da implicação pessoal, ou seja, verifiquei que meu parceiro é um embuste, brincou, enganou, foi desleal. E eu nisso tudo, como foi que eu agi? O que se passou?

Às vezes, a gente se engana porque quer. Porque precisa, porque quer viver uma ilusão bonita. E, às vezes, é ótimo. Longe de mim dar conselho, mas, quando a onda bater na cara, é bom saber a hora de parar e fazer um balanço. Quem mandou, né, Ludmilla? Boa pergunta.

“Se era isso que você queria

Uma noite apenas

Você vai ter o que quer de mim

Um lance sem compromisso e fim

Se era isso que você queria

Uma noite só

Sem sentimento vai ser assim

Você vai ter o que quer de mim

E a boba fui eu

Que quis acreditar que era amor

Você não mereceu

Mas o meu coração se entregou

Quem mandou eu me apaixonar

Quem mandou eu não me controlar

Quem mandou eu me entregar

Quem mandou eu me apegar

A boba fui eu

A boba fui eu

Quem mandou ficar na tua mão

Quem mandou te dar meu coração

Quem mandou eu me entregar

Quem mandou eu me apegar

A boba fui eu.”