It’s beyond me, help me mommy!

O clássico The rocky horror picture show e sua eterna influência na moda e na cultura pop.

“Disse o macho-branco-hétero ao se ver de lingerie, maquiado com estola de penas e o tradicional falo feminino, o escarpim preto, e sua inseparável meia arrastão.” Essa é uma das falas mais memoráveis de The rocky horror show, peça musical britânica de 1973, que só ganhou o “picture” no título quando virou filme, em 1975. Flopado em seu lançamento – até cair nas sessões da meia-noite –, alçou um voo de onde nunca aterrisou: em bilheteria, cultos, rituais, citações e influência.

Virou um clássico cult, só que pop.

Lota salas de cinema com admiradores vestidos a caráter, consta na coleção de DVDs de qualquer cinéfilo e salta de um streaming para o outro com a fluidez de seus temas (você pode assistir no Amazon Prime Video, por enquanto).

A peça, escrita por Richard O’Brien, que interpreta o mordomo Riff Raff, e dirigida por Jim Sharman, teve ninguém menos que David Bowie em sua noite de estreia (interagindo com o elenco inclusive), para que o personagem de O’Brien não neutralizasse a heroína controversa Doutora Frank’n’Furter, no clímax da trama, que não vamos revelar. Sem spoilers.

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Reprodução

Em sua transição para o cinema está o pulo do gato. Os estúdios da Fox liberaram um orçamento robusto, mas exigiram um casting de estrelas estadunidenses. No entanto, autor e diretor optaram por um budget de guerrilha para manter o elenco original.

Perrengues à parte, o plot é rocambolesco, as performances, arrebatadoramente camp, e o gore é pulp purinho.

Inspirado em filmes B de terror e ficção científica dos anos 1930 e 70, o longa se desdobra em uma ópera rock pré-punk-pós-tudo, referenciando e virando referência. É uma colagem de hiperlinks, de sua abertura aos créditos finais, citando de Flash Gordon a King Kong.

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À esq., Riff Raff e Magenta e, à dir., Riff Raff, Frank N. Furter e Magenta, personagens de “The rocky horror picture show”.Reprodução

Uma odisseia queer que coloca em debate uma série de pontos sobre nossas psiques, pulsões e repressões, algumas em plena ebulição até hoje. Tem dominador e dominado, perversos polimorfos ou reprimidos convictos lidando com gêneros inclassificáveis, entre terráqueos e alienígenas. Um prato cheio para a equipe de figurino, comandada por Sue Blane, cujo conjunto dessa obra merece uma reparação histórica, pois precede Vivienne Westwood e os Sex Pistols.

O filme é uma matriz, uma gênese de ideias que atravessaram o tempo, e também consciências, já que a linguagem tem dessas armadilhas.

Pode ser encontrado de maneira direta ou indireta.

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À esq., cena de “Hedwig and the angry inch” e, à dir., cena de “Party monster”.Reprodução

Temos Hedwig and the angry inch, de John Cameron Mitchel, e até mesmo seu segundo longa, Shortbus. Podemos ouvir o clássico brinde aos amigos ausentes na voz de Roisin Murphy, em seu álbum Things to make and do, ainda no Moloko. Ou lembrar a cena em que Michael Alig implora para que James St. James o ensine como ser fabuloso, em Party monster, só para ouvir um quote do William Blake seguido de um um sincero “não sonhe, seja!”.

De maneira indireta, me permita a audácia, arrisco dizer que está muito claro o impacto desse filme sobre o legado de Jean Paul Gaultier, passando por John Galliano e chegando até em Nicolas Ghesquière. E vou além: como não remeter a Dama da noite, de Caio Fernando de Abreu, ao personagem de Tim Curry? E Claudia Wonder não é a própria travesti alienígena? Alexandre Herchcovitch e Johnny Luxo transpiram a mesma energia desde os idos anos do Fotolog, nas montações para Alelux (festa no saudoso Clube Gloria) ou revelando o backstage de uma ponta que fizeram em Encarnação do demônio, de Zé do Caixão. E Rocky, oh Rocky! Não seria a proto-barbie, o Everest que a comunidade gay contemporânea inteira subiu, sem pistas, afinal o médico e o monstro não ficam bem definidos?

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O personagem Frank N. Furter, em “The rocky horror picture show”.Reprodução

Sei que não precisamos ir tão longe, ou elaborar demais, isso pode tirar todo o encanto. Mas sabe o macho hétero branco, waspzinho? Hoje em dia, pode pintar as unhas sem o medo de ser atirado na caixinha do terceiro sexo graças a esse filme, porque graças a esse filme o terceiro sexo não tem caixinha.