O que você quer dizer com “cabelo profissional”?

"Olha, você é muito boa, mas o seu cabelo não condiz com a posição que você ocupa". ELLE investiga como e por que frases como essas ainda passam impunes.


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Certa tarde, Heather Chelan sentou no sofá e começou a pensar em um conteúdo para postar no TikTok. Tanto nas suas músicas autorais como na sua conta (@hebontheweb), que acumula 289 mil seguidores, o ponto de partida para os vídeos da cantora estadunidense são situações corriqueiras – e, para uma mulher negra que tinge as madeixas há sete anos, a discriminação do cabelo infelizmente faz parte desse cenário cotidiano. “Quando eu estava no colegial, comecei com uma mecha loira, que começou a ficar cada vez maior”, relembra do primeiro contato com as tinturas. Aos 18 anos, Heather decidiu pintar todo seu black power de roxo, o qual ela manteve por três anos. Depois disso, vieram mais e mais cores.

Se por um lado a cantora estava cercada por amigos igualmente criativos que jamais a julgariam por suas escolhas capilares, as entrevistas de emprego não levavam essa questão com leveza. De acordo com ela, havia sempre um constrangimento, algo propositalmente embaraçoso nessas circunstâncias. “As pessoas não dizem necessariamente ‘olha, você precisa tingir o seu cabelo de castanho’, mas falavam como se meu cabelo não fosse roxo. Algo do tipo ‘claro, você tem muita experiência, que legal… E obviamente nós precisamos que todos nossos funcionários tenham a cor natural do cabelo'”, exemplifica. “Com isso eu aprendi que o que se chama de ‘cabelo profissional’ é o cabelo castanho liso”.

@hebontheweb

I will die on this hill and you absolutely cannot tell me otherwise

Naquela tarde, juntando ideias para uma de suas publicações nas redes, Heather retomou essas experiências e cantou que ter cabelo colorido não te faz menos profissional (vídeo acima). “Eu postei o vídeo e ele viralizou muito rápido! Fui, então, dar uma olhada nas DMs do Instagram e vi que a Sally Beauty tinha me mandado uma mensagem, perguntando se podiam postar meu vídeo na página deles. Óbvio que sim!”, relembra. Dois dias depois, um email da marca especializada em produtos para os cabelos convidaria Heather para uma reunião de criação, o que levaria a artista a desenvolver uma versão extendida da música “Colored Hair” (disponível no Spotify), estrelar uma campanha oficial da Sally Beauty e tornar-se embaixadora da empresa por um ano.

Ainda assim, fica a questão: por que alguns cabelos são considerados profissionais e outros não? E como isso acontece no Brasil?

“A estética não é uma discussão qualquer, pois ela tem uma relação direta com a política, com as projeções que a gente faz do outro através de ideais culturais”, dispara Rosane Borges, de 47 anos, jornalista, professora, doutora em Ciências da Comunicação e autora de Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016). “O que a gente chama de arquétipos são definições que se alimentam de ideias imemoriais que cristalizam sentidos sobre coisas, pessoas e objetos – o que, por sua vez, serve às hierarquias sociais, raciais, etárias, de gênero, pertencimento geográfico, entre outras. É preciso que a gente rompa com esses arquétipos envelhecidos.” A jornalista ludovicense entende que há, hoje, no Brasil, uma disputa de narrativas que tenta combater as imagens reducionistas projetadas sobre pessoas negras, de pobreza, feiúra e desorganização, as quais reafirmam erroneamente a ideia de que a negritude em si não inspira confiança, é frágil e faltante.

“Quando houve a primeira grande reforma urbana do Rio de Janeiro, que na época era capital federal, o objetivo era deixar o Rio com uma cara moderna: nascia a ‘cidade-maravilhosa'”, quem dá o contexto histórico é Evandro Gomes, de 36 anos, jornalista especialista em recursos humanos e mestrando em Relações Étnico-raciais. “Foi estimulada a vinda de muitas pessoas brancas, estrangeiras, para ocupar os melhores cargos de trabalho do país – e todos os pretos que estavam na rua sem trabalho e sem habitação precisavam sumir. O perfil profissional é branco porque, na comparação entre pessoas brancas e pretas, dentro dessa construção racial ainda fortemente escravocrata, o preto não seria inteligente ou capaz, e além disso estaria muito mais propenso ao trabalho braçal em vez do intelectual.” E completa: “O profissional ideal dentro desse nosso processo histórico é o homem branco, a mulher branca vem na sequência, com algumas lutas e particularidades, com forte presença do feminismo. Mas, o funcionário ideal na perspectiva racista [ainda que se reproduza o racismo sem ter consciência dele] é o homem branco, com seu cabelo liso ou ondulado, bem cortado e com a barba feita – isso sem falar que, há pouco tempo, nem a barba era aceita!”

O pesquisador e comunicador de Paty dos Alferes, no Rio de Janeiro, trabalha hoje como analista de treinamentos e ações afirmativas no Instituto Identidades do Brasil, organização sem fins lucrativos idealizada por Luana Génot e comprometida em promover a igualdade racial para o mercado de trabalho ou, como Evandro diz, com a missão de entrar em uma empresa – pequena, média, grande ou multinacional – e fazer uma revolução. O Instituto permite que empresas possam aderir ao Selo Sim à Igualdade Racial, o qual possui três estágios: Compromisso, Engajamento e Influência. É a partir disso que se inicia uma jornada prática de promoção da igualdade racial dentro da empresa. Desde o letramento, que envolve palestras, revisão da comunicação e marketing, treinamento para a equipe de recursos humanos, até a realização de censos para proposição de ações afirmativas. “Eu quero que o mercado de trabalho tenha caras, jeitos, vozes e corpos diferentes. E não basta só ter diversidade, tem que ter inclusão”, diz Evandro. “A gente vive em um mundo muito áspero e é preciso pensar coletiva e empaticamente porque o grande desafio é criar cenários confortáveis para todos.”

“O funcionário ideal na perspectiva racista [ainda que se reproduza o racismo sem ter consciência dele] é o homem branco, com seu cabelo liso ou ondulado, bem cortado e com a barba feita”, Evandro Gomes, jornalista especialista em recursos humanos e mestrando em Relações Étnico-raciais

De um ponto de vista macro, as transformações que estamos observando no mercado de trabalho são produto de dois processos sociais e estéticos distintos que, combinados, tornam o requisito de “boa aparência”, presente até os anos 2000 nos anúncios de vagas de emprego, absolutamente obsoleto e inaceitável. “Do ponto de vista dos grupos raciais hegemônicos, a tecnologia mudou o jogo. Ora, os meninos do vale do silício não usam terno, todo mundo veste camiseta e calça jeans. Do ponto de vista de quem é hegemônico, ou seja, os brancos e bem nascidos, há uma mudança pelos novos códigos dos jovens”, analisa Rosane. “Do lado dos grupos raciais não hegemônicos, você tem uma disputa ao dizer que é preciso que a estética e os corpos sejam aceitos. Ainda mais, é preciso que o mercado de trabalho pense no cabelo e no corpo como uma outra possibilidade de se colocar no mundo – e isso deve ser acolhido e respeitado em todo ambiente de trabalho”, completa.

Das exigências ilógicas que Evandro já acompanhou estudando e trabalhando imerso na discussão sobre raça e mercado de trabalho, ele destaca “boa aparência” e “universidade de primeira linha”. Sinceramente, quem nunca viu isso em algum anúncio por aí? “Muita gente ainda ouve: ‘olha, você é muito boa, mas o seu cabelo não condiz com a posição que você ocupa'”, denuncia. “Para as mulheres, esta boa aparência ainda é associada a ter os cabelos lisos, uma vez que os crespos são considerados não padronizados para o espaço de trabalho. Esta é uma discussão séria: a estética de uma pessoa faz parte da construção de sua identidade. Quando pedem pra você raspar, cortar ou alisar seu cabelo, estão também desconstruindo um pouco de quem você é, do seu orgulho.”


Versão final da campanha da Sally Beauty sobre cabelos coloridos.
Divulgação: Sally Beauty

“Para além de uma estética embranquecida, mudar seu cabelo também pode ser uma questão de sobrevivência”, continua. Segundo ele, vivemos em um mundo capitalista no qual, se você não se enquadra, não arruma um emprego, isso vai impactar diretamente a sua sobrevivência. “O emprego é o que chancela a nossa identidade nesse contexto. Não sei se você já reparou, mas quando a gente vê uma matéria de jornal sobre alguma incursão policial em uma comunidade, em que se matam pessoas; se as vítimas não têm ligação com poder paralelo, o que a família quase sempre faz é ir pra frente das câmeras e falar: ‘meu filho era trabalhador, está aqui a carteira de trabalho dele’ Percebe? A partir do momento em que o mercado de trabalho separa um tipo ideal e tipo não-ideal e exclui determinadas pessoas, ele tira também a dignidade dessas pessoas, o poder de existir, sonhar.”

“Trata-se de pensar em outras estéticas: indígenas, negras, de gêneros e orientações sexuais não hegemônicas. Imagens decoloniais ou descolonizadoras têm o propósito de pensar diversidade no sentido mais radical”, Rosane Borges, professora, doutora em Ciências da Comunicação.

De acordo com Evandro, o mercado de trabalho começou a acordar para questões de diversidade e inclusão mais efetivamente depois de 2017 e 2018, quando aparecem investidas efetivas e ações afirmativas na esfera privada. “O que é fundamental, pois é um dever tanto do governo quanto da sociedade civil equalizar nossas vivências, nossa vida”, pontua antes de dizer que as redes sociais trouxeram abertura para a discussão e fizeram pressão por resultados. “Assim, de uma forma muito rápida, conceitos teóricos foram caindo nas discussões cotidianas, como lugar de fala e racismo estrutural, o que tem sido muito importante.”

Rosane Borges também vislumbra um futuro que, uma vez conquistado, será irreversivelmente próspero. “Eu acho que a gente está vendo um movimento interessante. Por exemplo, tem CEOs negras com cabelo crespo, coisa que não se via há 30 anos. Veja a importância da Maju Coutinho e como crianças negras querem ter o cabelo como o dela! Essas mudanças são cada vez mais decisivas para a consolidação de outras estéticas, que estão circulando, mas precisam decantar nos nossos imaginários – e esse é um caminho que será sem volta.”

Além das fundamentais políticas públicas e ações afirmativas da esfera privada, falar sobre esse percurso rumo à pluralidade envolve pensar, produzir e consumir imagens decoloniais, que, de acordo com Borges, são imagens que não tomam o ocidente e a branquitude como um espelho invariável. “Trata-se de pensar em outras estéticas: indígenas, negras, de gêneros e orientações sexuais não hegemônicas. Imagens decoloniais ou descolonizadoras têm o propósito de pensar diversidade no sentido mais radical”, provoca. Com essas múltiplas possibilidades criadas também sobre o que é profissionalismo, seria óbvio afirmar que ter cabelo colorido não te faz menos profissional. Tampouco seu cabelo black power, em tranças, dreads ou natural. Lembre-se disso.

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