Muito além da “make de bonita”

Difundidas pela Geração Z, as últimas tendências de beleza incorporam elementos não tradicionalmente belos e questionam o papel social da maquiagem.


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Vermelhidão, sardas, olheiras, descoloração, manchinhas e até monocelhas: há alguns anos seria improvável (e por que não impossível?) associar qualquer um desses elementos – tão inteiramente humanos e frequentes – ao conceito de beleza. Nos anos 2000 e 2010, que parecem já tão distantes de nós, a maquiagem era sinônimo de correção, e o ritual default de embelezamento contava rigorosamente com a aplicação de camadas e mais camadas de base e corretivo matte, máscara de cílios à prova d’água e sobrancelhas cuidadosamente desenhadas a lápis ou preenchidas com sombra, sem nenhum fio fora do lugar.

“Existia quase que uma receita de como se maquiar: a ordem de aplicação, técnicas, cores e regras do que fazer ou não”, conta Tiago Zani (21), criador de conteúdo de beleza baseado em São Paulo, que desenvolve um trabalho nas redes sociais relacionando a maquiagem a narrativas e novos imaginários do masculino. “Até pouco tempo, a maquiagem era usada estritamente para corrigir imperfeições e te dar um ‘novo rosto'”, acrescenta.

 

Corta para era do TikTok e o cenário é completamente outro: “Com o tempo, começamos a perceber pequenos passos em direção a um uso [de maquiagem] que de fato expressa a personalidade e singularidade das pessoas”, diz Tiago – e o ano de 2020 parece ter sido o catalisador ideal para a fertilização e materialização desses novos estudos de beleza.

Não era para menos: em um ano totalmente atípico, em que tivemos que conviver não apenas com nossas personalidades, mas também com a nossa autoimagem – compartilhando dias e noites ininterruptos com nossas câmeras frontais, telas, webcams e eventuais espelhos (no mínimo, na hora de escovar os dentes) – era de se esperar que surgissem alguns questionamentos sobre autopercepção e o verdadeiro significado do que acredita-se ser belo.

Da mistura bombástica de noites mal dormidas, explosões de hormônios e espinhas, a impossibilidade de fazer a sobrancelha e o bigode e muito, muito tempo disponível para comprar e testar novos produtos de maquiagem, surge uma curiosa reação estética que experimenta e subverte elementos tradicionalmente “condenáveis” em novas formas de se perceber e se maquiar.

Para nossa sorte, essas tendências têm sido vastamente documentadas e compartilhadas por pessoas ao redor do mundo em selfies, TikToks e tutoriais no Youtube. Com um mega impulso da geração nativa digital, os Gen Z, essas novas formas de expressão e autopercepção dominam a internet enquanto refletem, direta ou indiretamente, o nosso zeitgeist.

As novas makes também espelham valores extremamente importantes para os Zs como inclusão, diversidade, humanidade, irreverência e autenticidade: “A geração Z tem uma mentalidade muito mais aberta e esclarecida sobre autoaceitação e empoderamento. A escolha dessa abordagem nas maquiagens se deve principalmente a isso: os jovens discutem e refletem mais sobre padrões de beleza, e o resultado é uma geração de pessoas muito mais plurais e expressivas”, conta Tiago.

Põe na conta do algoritmo

Por fazerem parte de um movimento estampado e difundido pela geração Z, as novas modalidades de maquiagem encontram seu ápice de força criativa na rede que eles chamam de casa: o TikTok. Em 2020, o gigante chinês se tornou o aplicativo mais baixado no mundo, superando, inclusive, Facebook e Instagram, segundo relatório da agência de rastreamento de marketing App Annie.

Sobre a importância da presença do app em sua rotina, Tiago relata que tem consumido muito o TikTok e que, graças ao algoritmo certeiro, ele é bombardeado de conteúdos de maquiagem com esses elementos. “Sinto que minha relação com a maquiagem mudou muito também, porque tenho mais coragem de fazer um delineado que vai além do clássico gatinho, exagerar no blush ou deixar a ponta do nariz mais vermelha – e por que não desenhar umas sardinhas? É bom e revigorante se ver de uma outra forma além da convencional às vezes”, ele conclui.

 

É fácil identificar que a rede de vídeos se tornou um grande escape durante a quarentena e que, conforme os meses foram passando, a imagem que as pessoas viam em suas câmeras frontais ia se transformando. Em uma tentativa de refletir e até realçar sentimentos e humores muito presentes nos últimos meses como cansaço, fragmentação e inclusive tristeza, a maquiagem deixa de ser um hábito cotidiano de embelezamento para o mundo lá fora para admitir um papel muito mais expressivo e íntimo, quase como um descobrimento estético do que podemos ser – e somos – além de “bonitos”, “saudáveis” e “felizes”.

Carinha de saudável? Minha filha, tá todo mundo cansado

No app (e também na vida), as pessoas parecem estar menos preocupadas em parecer convencionalmente bonitas, e mais interessadas na ideia de desafiar padrões de beleza e quebrar regras. Acentuar olheiras, colocar um blush mais pesado no nariz e até mesmo deixar sombras e glitters escorrerem em formato de lágrimas ou borrões expressam, em alguma medida, como essas pessoas têm se sentido.

É, também, sobre o direito de estarmos cansados. Sobretudo diante de uma pandemia global. E apesar de o cansaço, o estresse e a tristeza serem nuances que a beleza convencional queira corrigir, é importante lembrar que a aparência também é um grande campo de enfrentamento das mulheres contra o machismo. É comum mulheres que não usam maquiagem receberem insultos ou críticas dizendo que elas parecem “cansadas” ou “acabadas”. Portanto, como forma de desafiar essas normas, por que não criar looks “cansados” incrivelmente bonitos, que comuniquem nosso direito ao desgaste?

 

Em entrevista ao Refinery 29, o maquiador sênior global da MAC Cosmetics, Dominic Skinner, revela ainda mais um palpite sobre a causa raiz dessas tendências e inclusive da popularidade das e-girls, meninas e mulheres que incorporam muitos desses elementos. Em uma análise das últimas décadas, ele traça um paralelo entre o atual movimento contra o perfeccionismo na maquiagem e as revoltas de beleza que os anos 1980 e 1990 presenciaram, como, por exemplo, os looks punk desleixados e sombras coloridas oitentistas e, logo depois, o visual “heroin chic” quase doentio das supermodelos da década de 1990.

Da mesma forma, Dominic pensa que a atual negação das normas de beleza em favor de olhos cansados e nariz vermelho é uma espécie de resistência contracultural dos jovens, que tornam ainda mais proeminentes as características que muitos considerariam cobrir com uma espessa camada de corretivo.

Kim Kardashian, corre aqui!

Colocadas uma ao lado da outra, a cultura da selfie perfeita no Instagram – muito bem representada por Kim Kardashian e o seu clã – e a honestidade da geração Z no TikTok parecem se chocar drasticamente em alguns pontos de tensão. A exposição extrema na Internet ainda existe, mas, enquanto uma preza por luz e sombra perfeitas para construir uma narrativa de saúde, sucesso e aspiração, a outra protagoniza os vícios, as “imperfeições” e os efeitos do que é ser humano, não com transparência e realidade, mas com excesso, exagero.

Após alguns anos convivendo com tutoriais e lançamentos de produtos para obter o contorno perfeito, sobrancelhas cheias e desenhadas com medidas geométricas, poros inexistentes e pêlos invisíveis, o sopro da nova beleza vem do lugar do contra-contorno, da pele com textura de pele, das manchas, espinhas, sardas, monocelhas e bigodes que não apenas fazem parte do que é ser humano mas também são celebrados, incorporados e acentuados como elementos que podem, sim, ser bonitos.

“Assim que marcas e grandes nomes do mundo da beleza notarem que a nova geração desvirtuou padrões e minou a linearidade da maquiagem, transformando-a em algo muito mais expressivo e vivo, veremos uma propagação muito maior dessas tendências”, comenta Tiago. “Torço muito pelo fim dos padrões de beleza irreais que demandam uma pele lisa, perfeita, corada, cílios cheios, boca grande e tantos outros “requisitos” para se encaixar nesses parâmetros”, ele termina. Afinal, já basta a pressão de suportar nos ombros o peso do mundo, como escreveu Drummond.

Certos de que a moda e a beleza são cíclicas e constantemente mutáveis, refletindo comportamentos e momentos históricos, é interessante pensar que estamos, de fato, vivendo e presenciando um movimento estético que traduz o ano em que o mundo parou por conta de uma pandemia global. E é ainda mais interessante pensar que tudo está sendo, como nunca antes, registrado pelas câmeras e smartphones da primeira geração nativa digital da história da humanidade que, curiosamente, não tem muito interesse em ser lembrada com uma tradicional “make de bonita”.

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