O mito da “pele perfeita”

Rotinas com 20 passos, arsenal de produtos, horas de dedicação: autocuidado ou obsessão? A discussão em torno do skincare tem muito mais camadas do que faz supor aquele belo efeito glossy no rosto.


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Foto: Getty Images



“Como sua pele está linda” não é um elogio qualquer. Não em 2020. Mais do que a simples constatação a respeito de uma boa hidratação ou de poros quase invisíveis, “como sua pele está linda” passou a significar nesses últimos anos que você se cuida, se ama, dedica tempo a si mesmo, e, em certa medida, que você merece esse brilho e esse tônus como resultado dos seus esforços. É a consagração para quem segue uma rotina de skincare, ritual de beleza que tem conquistado cada vez mais adeptos e estimulado um boom de lançamentos de produtos e influencers – além de uma profusão de memes sobre o assunto. Esse novo status do autocuidado evidencia como nossa relação com pele e maquiagem mudou desde a década passada. Mas será que a pressão para atingir certos padrões de beleza está menos nociva a quem se aventura por esse universo.

Maquiagem ou Skincare

Para entender a revolução que o skincare representou no mercado de beleza, é preciso voltar a 2014, quando a blogueira e empresária norte-americana Emily Weiss anunciou o lançamento de sua marca, Glossier. Naquele momento, qualquer maquiagem que fugisse da ideia de longa-duração e alta cobertura estava fadada a receber as vaias da comunidade virtual de beleza nas redes sociais: o mundo girava em torno da técnica do contorno, impulsionado pela estética do clã Kardashian. Não à toa, as primeiras resenhas que surgiram no YouTube a respeito das geleias limpantes para o rosto e de blushes líquidos ultradelicados da Glossier não foram as mais positivas.

Mas o estranhamento inicial logo foi vencido. Nesse sentido, vale a pena assistir às reações da guru californiana Jackie Aina conforme ela aplica os produtos criados por Emily Weiss em seu rosto. Se no começo Jackie duvida da diferença que uma maquiagem tão leve possa garantir ao seu visual, ao final do vídeo ela se impressiona com o look alcançado. “Definitivamente, não tem o meu estilo, mas sinto que estou linda e não estou olhando para a minha maquiagem, estou olhando para a minha pele.

Quatro anos depois de a Glossier ser apresentada como “uma nova forma de entender a beleza”, a empresa já era classificada como um “unicórnio”, termo usado para descrever negócios que valem mais de US$ 1 bilhão. E a ideologia resumida no slogan da marca se espalhava mundo afora: “pele primeiro, maquiagem depois, sorrisos sempre”.

No entanto, à medida que a pele e os cuidados com ela ganharam mais espaço no repertório das aficionadas por beleza, uma série de questões começou a ser levantada. Por trás desse visual brilhante e viçoso defendido pela Glossier, está embutida uma ideia de autoaceitação que varia brutalmente de pessoa para pessoa. Quem tem uma pele livre de manchas, cicatrizes, espinhas ou qualquer outro “problema” facilmente se adapta a esse novo método. Em contrapartida, quem tem qualquer insegurança com a própria pele ficou em uma situação complexa. E a indústria da beleza rapidamente se aproveitou disso.

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Se antes uma base de alta cobertura era a resposta para tudo, agora entram em cena longas rotinas de cuidados que podem chegar a ter 20 passos, durar mais de uma hora e demandar um arsenal de mais (ou muito mais) de R$ 1000 – tudo para conquistar a tal “pele perfeita”. Ou seja, em certa medida, sobra para o skincare a missão de alcançar ao vivo o que antes pintávamos sobre o rosto.

A pele perfeita existe?

No papel, a proposta de aceitar a própria pele é muito positiva, mas ela é muito mais radical do que está representado nas imagens usadas por marcas como a Glossier ou a Milk Makeup – majoritariamente protagonizadas por meninas em torno dos 20 anos de idade, com maçãs elevadas e nem um sinal de acne. Em uma sociedade com um sistema de valores fundamentado em padrões de beleza, o que significa não esconder uma espinha? Ou mais, o que significa ter orgulho de uma pele “imperfeita”, com manchas, cicatrizes, poros visíveis e até rugas?

Então, o skincare é uma farsa?

Em 2018 (ironicamente, no mesmo ano em que a Glossier se tornou uma empresa “unicórnio”), a premiada jornalista norte-americana Krithika Varagur publicou um artigo no portal The Outline que chacoalhou a internet. Intitulado “A farsa do skincare”, o texto defende que a perseguição da “pele perfeita” é um desperdício de tempo e dinheiro. Principalmente para as mulheres que, de maneira desproporcional, são cobradas para atingir esse ideal. Segundo a autora, essa tendência (que ela chama de “new skincare”) ainda está 100% calcada na ideia de comprar mais e mais produtos para provar que você trabalhou muito para conseguir aquele resultado – ainda que, muitas vezes, a genética tenha mais responsabilidade sobre isso do que o combo de séruns e hidratantes aplicados diariamente. Além disso, Krithika acusa o “new skincare” de, em sua essência, não passar de uma violência química autoaplicada, citando casos de pessoas que acabaram se machucando ao investir em ativos mais agressivos como ácidos retinóicos ou glicólicos e esfoliantes químicos.

A publicação gerou polêmica nas redes sociais e rendeu uma série de artigos-respostas em outros veículos. Era o início das “guerras do skincare”, emprestando a descrição da jornalista Constance Grady ao fenômeno em seu texto para a Vox. Para o time pró-skincare, entretanto, não se trata apenas de defender a sua prateleira de produtos: o que está em jogo é a valorização do ritual envolvido no processo dos cuidados com a pele.

Massagem facial no skincare

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A beauty artist brasileira Carla Biriba teve seu primeiro contato com os conceitos da massagem facial em 2006, durante uma viagem para Londres. No Instagram, ela é a fundadora do #SPAdaBiriba, uma hashtag para apoiar o autocuidado de seus seguidores, que contam sempre com dicas para aprimorarem sua rotina de skincare. “Cuidar da minha pele, tonificar, hidratar, fazer o #SPAdaBiriba, a massagem facial que pratico há 14 anos, me ajudam não só pela questão estética, mas principalmente na percepção de mim mesma e da importância de conseguir parar tudo e me cuidar, me amar, me conhecer e me encarar todos os dias na frente do espelho acompanhando minhas mudanças. Até aqui, aos 38 anos, tem sido um lindo processo.”

Jude Chao, autora do blog Fifty Shades of Snail, foi além quando contou ao Fashionista que sua rotina de skincare feita aos moldes coreanos (com dez passos divididos entre manhã e noite) teve um papel crucial na sua luta contra a depressão. Segundo ela, que vê uma natureza meditativa no ritual, tocar o próprio rosto acalma e amacia não só a pele, mas também o pensamento. “Em linhas gerais, isso me devolve para a minha própria pele, meu próprio corpo e, sem querer ser muito ‘moderninha’, me devolve também ao presente. E é isso que a depressão tenta tirar de mim: o presente”, escreveu. Para Jude, cuidar da pele foi o primeiro passo para uma autovalorização que culminou em seu esforço para sair de casa, ir ao médico e fazer terapia.

Dilemas de pele no consultório dermatológico

Entre os depoimentos emocionados das entusiastas do skincare e o ceticismo indignado de textos espalhados pela internet, há espaço também para o meio termo. “A tal da pele ‘perfeita’, sedosa, perolada, não é inatingível, mas tem muita coisa em jogo para conseguir alcançá-la: dinheiro, tempo, disciplina, determinação, genética… Será que a gente precisa de tudo isso?”, questiona a médica Carla Nakanishi, que trabalha há 20 anos com dermatologia estética. Segundo a especialista, a melhor maneira de se relacionar com os cuidados com a pele é pensar de forma “bioindividual”. Ou seja, cada caso é um caso. “O básico do básico é o uso do protetor solar e a limpeza. Mesmo a hidratação, considerada por muitos tão importante, dependendo do contexto, pode até ser deixada de lado”, pondera. “Acontece muito de pacientes virem até aqui e descobrirem que metade dos produtos que têm em casa não são fundamentais e, às vezes, até desnecessários.” Para explicar o conceito, a dermatologista faz um paralelo com a nutrologia: “Há tempos a gente ouve falar: ‘carne vermelha é ruim’, ‘ovo é bom’… Mas as perguntas importantes são ‘para quem?’, ‘por qual motivo?’, ’em que situação?'” O mesmo, diz Carla, vale para o skincare: “Existem milhares de peptídios, nanomoléculas, alfa hidroxiácidos, mas para quem realmente vale a pena sacar essas informações?”

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Carla entende que as pessoas se encantem com tratamentos que utilizam ativos mais agressivos (aqueles que Krithika chama de uma violência química disfarçada), porque eles, de fato, trazem resultados mais visíveis do que os cuidados básicos, que agem a longo prazo para retardar o envelhecimento da pele. O uso dessas substâncias, entretanto, deve ser criterioso. “Esfoliantes químicos e ácidos promovem um rejuvenescimento quando aplicados em processos bem orientados. Quem faz um peeling em casa, totalmente sozinho, arrisca se perder na hora de conduzir a pele para uma revitalização”, avisa a dermatologista.

Carla lembra ainda que existem muitos fatores para além de uma rotina de produtos que contribuem para a saúde da pele, como genética, alimentação, ambiente e contexto social. Isso posto, há ainda uma questão de maturidade ao se olhar no espelho: “Muitas meninas chegam ao meu consultório com várias reclamações. No entanto, quando olho para elas com mais atenção, percebo que a noção que elas têm delas mesmas está muito distorcida e, vez ou outra, cabe a mim explicar que ‘é normal estar com as olheiras mais fundas se você chorou bastante no dia anterior'”. Nem tudo precisa ser tratado, diz a dermatologista. E complementa: “Ao mesmo tempo, existem as pessoas que, de fato, têm buraquinhos na pele por causa da acne, têm melasmas crônicos que são tratáveis, mas não têm cura, e isso afeta a autoestima delas. Então, por que não ajudar? Nesse sentido, até a maquiagem é bem-vinda. Estudos mostram que ela ajuda na segurança das mulheres, principalmente dentro do ambiente de trabalho.”

Enfrentando o paradoxo

No ensaio The Double Standard of Aging, de 1979, a filósofa norte-americana Susan Sontag argumenta que, uma vez que as mulheres são mais julgadas por sua aparência do que os homens, elas perdem muito mais ao envelhecer. Ela descreve o processo como uma “humilhação atrelada à gradual desqualificação da mulher como objeto sexual”. Ou seja, conforme os indicadores de juventude vão desaparecendo, desaparece também a mulher enquanto sujeito, uma vez que seu valor na sociedade está profundamente atrelado à sua beleza.

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Por outro lado, em 1988, a escritora também norte-americana Audre Lorde escreveu que “cuidar de si mesma não é um egoísmo, é autopreservação e isso é um ato político”. Em 2014, a ativista Angela Davis endossou a proposta: “O autocuidado precisa estar incorporado em todos os nossos esforços. E isso é novo. Essa abordagem holística à nossa organização, acredito eu, vai nos levar eventualmente a avanços nas nossas trajetórias e a novas vitórias”.

Neste cenário, como fica o skincare? Aliado ou vilão? Em uma troca de e-mails entre a jornalista Arabelle Sicardi e escritora Jia Tolentino, publicada em um artigo da The New Yorker, Arabelle propõe uma interpretação menos dicotômica do assunto. Para ela, se o skincare pode fazer parte de benéficos processos de autocuidado, cabe às adeptas um novo entendimento da beleza como um meio para chegar a algo e não como um objetivo final. “Muito sobre o que se percebe a respeito de beleza é a ideia de que ela é um indicativo de sucesso. De certa forma, ela encobre os nossos sofrimentos e funciona como uma ferramenta para quem está no poder. No entanto, ao mesmo tempo, a beleza fundamentalmente envolve atos de testemunho do próprio corpo e de manutenção da nossa integridade.”

Assim, talvez a resposta para a questão aliado/vilão seja que o skincare é um pouco dos dois. Todos os dias, olhando para o espelho, é preciso fazer uma investigação interna e constante a respeito das motivações que nos levam a aplicar tais produtos no rosto. Em vista desse paradoxo recai sobre cada um a responsabilidade do desenho da fronteira entre autocuidado e obsessão. No limite, a conversa é sobre autoconhecimento e, como sempre, é preciso ter coragem para desbravá-la.

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