Bem para quem?

Sobre a Kat de Euphoria e a horda das influenciadoras "love yourself".


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Deprimida e ansiosa diante do enigma da sua falta de amor por seu namorado e de seu ódio por si mesma, a personagem Kat da série Euphoria é visitada em seu quarto por espectros assustadores. Não são monstros, mas as imagens das influenciadoras do momento e suas frases motivacionais.

Kat não se sente bem com ela mesma, diz que se odeia. Kat mal quer sair da cama. Mas as blogueiras insistem: ela pode! Ela tem de se cuidar mais porque ela é maravilhosa e deve encontrar sua guerreira interior. Ela precisa quebrar os padrões de beleza e não permitir que o patriarcado a afete. Ela precisa, ela tem que. Love yourself! Love yourself, elas exigem.

Estão todas lá no quarto, as imagens de sucesso do Instagram/Youtube/TikTok. Não fica claro se é exatamente um delírio, mas a cena é construída como se essas vozes das redes viessem responder os dilemas de Kat em tom de cobrança quando ela está sozinha. Blogueiras fitness, bundas inspiracionais, incansáveis militantes, fadas sensatas, cristais, sábias sem fígado, palestrantes cheias de revolta, didáticas, instrutivas, boas vendedoras, compreensivas. Estão lá inclusive as imagens de um fracasso de sucesso, aquelas sempre cheias de energia para contar que estão exaustas.

Kat não consegue. E se odeia mais.

O bem-estar, não é de hoje, virou commodity. Corpo-commodity. Vocês acham que estamos longe disso?

Kat não conseguiu seguir os nobres conselhos. Não reagiu de top cropped nem nada. Ela está em dívida com sua guerreira interior, não está se cuidando. Estamos sempre devendo feito servos feudais. Todo mundo cobra. Boleto, bedel, blogueira. Tome aqui a quinta parte da energia que me falta, afinal, é para o meu bem. Pegue aqui o dízimo da minha força de vontade, eu ia usar pra me sentir miserável com mais uma insônia sem posts na madrugada, mas pode ficar.

Corre a impressão de que se você está na merda e não consegue disfarçar, deve ao menos mostrar sua miséria. O show tem que continuar. Se junte aos demais. Mas nunca pode ser uma coisa assim sem nenhum filtro. O filtro não é só esse que você aplica ou a mudança que você faz na foto. O filtro é o que você escolhe dizer, como diz, a roupa ou a nudez que você seleciona, o filtro é você estar ou não estar em uma rede, o filtro é como você vai se definir no jogo. E há menos liberdade nesse conjunto do que talvez fosse bom, do que deveríamos aceitar.

A experiência da tristeza hoje é muito difícil. Não pela tristeza em si, mas pela falta de espaço pra ela.

Como Kat em seu quarto superpovoado, seu pensamento barbaramente invadido. Ela é os gregos, os troianos, o cavalo de Troia, a bomba atômica, difícil escapar. Você não pode se odiar, se ame, dizem. Se você se odeia já temos a resposta, é o patriarcado, é a sociedade. Não que não sejam em grande parte, pelo contrário.

Mas espera. Quer dizer, se existe uma estrutura que trabalha para que eu me odeie e ela está aí em tudo é tão fácil assim que eu escape? Basta fazer posts autobiográficos e pagar a terapia? Basta que eu saiba? Ler um livro, fechar uma fórmula, criar uma nova rotina, um lifestyle, isso funciona?

A experiência da tristeza hoje é muito difícil. Não pela tristeza em si, mas pela falta de espaço pra ela.

Se eu pudesse dizer de um jeito certamente não-rigoroso, mas talvez útil aqui: não seria essa mesma estrutura capaz de produzir as duas coisas, tanto esse ódio que uma pessoa pode sentir por ela mesma quanto essa voz da “razão” que convoca a estar bem apesar de tudo? Será papel de um terapeuta fazer com que você se sinta bem a qualquer custo no mundo como ele está? Não se trata de invalidar a dor de ninguém, nem mesmo a menor das dores, nem de cair na armadilha de que pega mal ser alegre, de que temos de nos unir num único choro desgraçado eterno, mas de se perguntar se não estamos tentando fazer da dor sistematicamente imposta a milhões de pessoas algo normalizado.

Quer dizer, para estar bem nesse mundo sou obrigada a passar por cima disso? Estão nos dizendo que o melhor é ignorar tudo e “ser feliz”? É sobre isso e está tudo bem? Bem para quem? Cobrar que os mais oprimidos pela desigualdade social “se cuidem”? O que acontece com alguém que se torna ” imune” ao sofrimento do outro?

O cuidado começa no social. A família que pode receber uma criança. Dar de comer bons alimentos, ter algum tempo livre para cuidar, brincar. Acesso à moradia, uma casa boa, saneamento básico, transporte público realmente acessível com gratuidade ampliada. Acesso a um cuidado médico digno. Renda. Acesso a um modelo de segurança pública que não seja baseado na geografia casa grande/senzala. Escolas bem estruturadas em todos os sentidos, lugares de lazer públicos. Arte. Sabe, um lugar que você vai ouvir música, pode tomar um sorvete com quem você gosta. Trabalho, direitos trabalhistas, poder de compra do salário. Férias remuneradas. Direito ao ócio, sim. Informação de qualidade, diálogo público aberto.

Gestão pública comprometida com um novo modelo de organização social, porque não há bem-estar possível diante da brutalidade da desigualdade social (de classe, raça, gênero), há apenas uma gestão de privilégios. Sua influenciadora wellness favorita fala sobre isso? Se não fala, é um embuste aroma baunilha orgânica.

Isso aqui não é nenhuma ode à infelicidade. Mas talvez seja uma aposta de que nosso bem-estar, dado esse contexto, deve estar conectado de alguma forma a laços sociais de luta efetiva para que haja transformação. Pode ser com festa, sim, é bom inclusive que seja, mas não só. A terapia pode ajudar muito, sim, mas não só.

Kat não pode ter com seu ódio. O ódio é mau, feio, é proibido, ela não pode deitar na cama com o ódio que sente. Ele não pode achar lugar na bagunça dela. Como pode uma menina tão linda se odiar assim? Essa pergunta é muito feita mas poucos querem ouvir algo que possa se articular como resposta. Uma resposta que pode ser lenta, fragmentada, mal resolvida. Uma resposta que muda, que se contradiz, que busca, que rejeita, que não se enxerga nem se ouve, que se aliena, que delira, projeta, que tropeça na pedra, no ar, no vazio. Mil coisas.

Isso aqui não é nenhuma ode à infelicidade. Mas talvez seja uma aposta de que nosso bem-estar, dado esse contexto, deve estar conectado de alguma forma a laços sociais de luta efetiva para que haja transformação.

Falar ajuda. Conversar ajuda. Ser ouvido ajuda. E dá pra fazer isso com redes sociais mundiais tentando resolver seu problema com frases de efeito, cards, coaches, lives, profissionais apontando palavras no ar com músicas de fundo? Dá pra fazer isso se encararmos a terapia como algo que pagamos com a promessa de compra/venda de que vamos nos sentir bem, mais adaptados? Adaptados a que exatamente?

Sobre saúde mental sobram cascatas de pitacos e fórmulas mas discutir saúde pública e desigualdade social, elementos essenciais nesse debate, sem os quais ele sequer existe, aí já foge da paleta de cores, aí complica muito. Melhor despolitizar, apelar para um “humanismo” genérico, canibal.

No consultório, seja qual for, não tem um artefato mágico que faz a estrutura parar de funcionar. Então mesmo quando falamos de ajuda profissional, a coisa não funciona como uma pastelaria. Tem um trabalho em parceria, na melhor das hipóteses. Envolve perguntas difíceis. Há relações de poder envolvidas, e é por essas e outras que a formação dos profissionais de saúde mental e suas possibilidades de viver desse trabalho devem ser bastante discutidas, que as responsabilidades que se apresentam não podem ser levadas na base da conveniência de poucos nem a toque de caixa.

O poder nos afeta a tods. O poder e sua organização social gerenciam nossas formas de sofrer e lucram com isso. O poder, o que é isso? Como isso afetou você? Como o poder afetou Kat? Deve sim ter a ver com esse ódio que ela sente de si mesma, mas de que jeito? Como ela articularia seu problema, suas questões, suas seguranças desconfortáveis?

Nenhuma das blogueiras no quarto de Kat pergunta ou chega perto de ouvir de fato por que ela está dizendo que se odeia. Suas palavras são ignoradas. Ninguém quer deixar Kat montar sua versão do que se passa, o que importa é encaixar seu sofrimento em uma das respostas já existentes e lá acomodá-lo para que o barco siga.

Kat certamente pode dizer muito sobre si mesma, é capaz de pensar seu lugar no mundo sem a obrigação de se amar por decreto. Amor compulsório não é a resposta, não é amor e, arrisco aqui dizer, pode ser pior que ódio.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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