Bye bye Brasil

Sobre racismo, resistência e dois passarinhos que trazem esperança.


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São Paulo, junho de 2020

Bye bye Brasil,

A última ficha caiu, ou ao menos deveria. Você me desculpe porque a carta vai assim um pouco atrasada. O envelope pode ser que chegue grudado de raiva, talvez de ódio. Mas segue também um desejo genuíno pela mudança que põe tudo em movimento.

As notícias são um massacre. Desde sempre, eu sei, mas ainda piores. Na rotina confinada fica tudo preso entre as paredes, o elefante passa mais tempo no sofá da sala incomodando muita gente, insistindo em ser visto. Já não tenho a menor empatia pelos entediados. A doença não só evidencia como é usada para ampliar abismos sociais. Todos os limites foram reultrapassados, e somos chamados à responsabilidade, não a sair passeando em shoppings.

Aqui o contato foi violento desde que chegaram os ocupantes das primeiras caravelas, representantes de um projeto fundamentado no racismo. Desde então há batalha, mas o mito da cordialidade segue entre nós como essa fake news consolidada da forma mais violenta. O contrário do inferno racista é a vida, o direito de viver sem que a cor da pele determine quem é mais ou menos “matável”, descartável.

Não tem colonialismo, imperialismo, fascismo, neonazismo, necropolítica que não dependa do racismo em suas mais variadas formas. O que pra você não deve ser novidade, mas repito porque vejo gente muito empenhada em desviar do assunto.

A luta antirracista no Brasil, sim, se levanta contra o extermínio sistemático, tanto literal quanto simbólico e cultural, de pessoas negras e indígenas. Mas a cada vitória dessa luta toda a sociedade sai ganhando, e me junto aos que defendem que só assim o mundo se torna mais habitável. Mas sabemos que há quem defenda as coisas como estão. Não são maioria, mas em geral seguem patrocinados.

Entre brancos surge também uma grande pressa de ser lido como aliado, talvez porque no fundo muitos enxerguem o antirracismo como projeto de vingança. Muitos têm medo de cair nos tribunais de cancelamento midiático, cujas dinâmicas podem de fato ser bastante nocivas. Mas me vem à cabeça que há uma grande diferença entre cancelamento e discussão pública de questões urgentes e históricas, há diferença entre o cancelamento e uma exigência social de que pessoas brancas se responsabilizem por práticas que perpetuam a exclusão. Por outro lado, nem mesmo a Justiça oficial, com provas, testemunhas e julgamentos teoricamente dentro da lei, parece atingir os brancos, sobretudo os brancos ricos. Esse quadro só tem mudado graças aos questionamentos sobre direito de defesa, sobre a ação da polícia e também sobre a conivência de juízes com o racismo e o encarceramento em massa. Nada disso seria possível sem pressão social e midiática.

Então esse argumento do “movimento vingativo” me parece mais defesa de quem não quer sofrer as consequências de seus atos e também projeção, temor de estar no lugar do outro, de sofrer o que ele sofre, de ser tratado como ele é tratado, de enfrentar as injustiças que ele enfrenta, de morrer nas condições em que ele morre. Isso vai longe.

Considerando que há uma grande variedade de visões, teorias e propostas de ação, os objetivos da luta, das lutas antirracistas, ao menos que eu saiba, jamais foram postulados no nível da vingança por nenhum de seus maiores pensadores. A vingança aparece sim, como não haveria de aparecer no meio de tanta injustiça, mas de outras formas, como quando Conceição Evaristo diz que se afirmar escritora representou pra ela uma forma de vingança, de insubmissão.

“Nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da Casa Grande e sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”, registra Conceição nessa frase que recebi de uma amiga do coração. Melhor nem tentar dormir com esse barulho, melhor despertar e se mexer, não pense que viemos aplacar ou aplaudir sua culpa, é o que escuto das duas. Eu agradeço muito por ouvir isso. Romper com a lógica da Casa Grande é um processo de libertação. A culpa é só uma fuga.

De resto, a ideia da luta antirracista como dispositivo de vingança costuma vir de seus próprios inimigos. A realidade das propostas é bem outra, muito mais sofisticada, com complexidades à altura do problema. Um exemplo. Frantz Fanon diz que é preciso superar o que chama da “ambiência de opressão” racista. O que passa não só por garantir direitos, mas por redesenhar todas as relações, os afetos, por criar um outro tecido social. Como isso se daria é uma questão e tanto, que passa pelo nascimento do que vejo como outro projeto de mundo. Tanto como filósofo quanto como psiquiatra o que já li de sua obra é bastante impressionante, e as novas traduções para o português chegam em boa hora.

Penso também em Lélia Gonzalez, cuja perspectiva brilhante identifica um país que denega a centralidade da cultura afroameríndia em sua formação enquanto persegue e tenta botar à margem aqueles que são “testemunhos vivos” dessa realidade. A branquitude nacional se julga e se imagina europeia, endeusa e se identifica com tudo o que vem da Europa e se coloca não só no centro de tudo, mas como universalidade. Só se lembram dos parentes e ancestrais negros e indígenas quando o mito da democracia racial é contestado, usando-os como instrumento de manutenção. Mesmo o discurso de inclusão muitas vezes se nega a rever a história a partir da centralidade do que aqui foi construído por negros e indígenas, ou seja, procura deixar intacta a estrutura.

Sim, os europeus fizeram marca na cultura brasileira, algumas delas positivas. Mas como colonizadores determinaram lugares sociais a partir da lógica racista de seu projeto. O que é de saída insustentável, mas permaneceu como base para todas as sistematizações capitalistas desde então. Os programas de concentração de renda e destruição dos direitos sociais reverenciam esse projeto ainda hoje. Aqui não tem nada de inédito. A militância negra e um número cada vez maior de pesquisadores vem dizendo isso há tempos, é necessário estudar, querer saber, inclusive antes de contestar.

Acho urgente reler Lélia, obrigatório. Mas na verdade é um prazer, fico boba e apaixonada por essa intelectual tão original, resgatada pelas feministas negras e essencial para qualquer pensamento sobre o Brasil. Ela parte da História e da Filosofia, se estabelece na Antropologia e dá um nó na academia quando bota a Psicanálise pra jogo. Como as melhores articuladoras, hábil e seríssima, tinha um grande senso de humor, um jeito livre e aberto de falar e de pensar. Lélia é um acontecimento. A retomada de seu trabalho, acredito, deve ser um projeto permanente.

Não à toa, Fanon e Lélia acionaram conceitos psicanalíticos, tanto pra usá-los quanto para criticá-los, apontando inconsistências, e para modificá-los, incluindo a raça em suas considerações. Fanon vai questionar inclusive a possibilidade de uma clínica do inconsciente no contexto colonial e dizer que as estruturas coloniais são introjetadas na subjetividade do colonizado.

Na Psicanálise e na Psicologia social, o racismo vem sendo estudado em várias perspectivas, levando em conta processos de desumanização, humilhação social, e a ideia do branco que se vê desracializado.
Aqui, quero reafirmar, não estamos falando de um congresso teórico: há urgência, muito conflito em jogo, séculos de crueldade, muita dor, muita raiva, muita morte, muita maldade, desconfiança legítima, exaustão, um luto que só começou, muita reparação a ser feita na prática, tudo a transformar.

Dito isso, o que venho aprendendo no trabalho dentro dos movimentos sociais, lendo as produções de intelectuais negros de diferentes áreas, ouvindo pesquisadores e militantes de vários cantos do país, é que vale insistir no bom combate diário. Estar presente com participação constante, com solidariedade, com ação, com escuta, sem querer fazer cena nem fugir da raia. Atender às necessidades postas se colocando a serviço, pensar junto e abrir caminho.

Mas não dá pra fazer nada disso sem um questionamento incômodo, sem acordar do sono injusto com disposição pra mudança. Quem é branco sabe como é ser socialmente premiado por fazer o mínimo. Isso é especialmente verdadeiro pra homens e herdeiros em geral, mas em alguma medida isso sempre está presente. Todo branco, eu evidentemente incluída, já usou o privilégio estrutural fingindo naturalidade. Muitos insistem em seguir assim, esquecendo que são brancos, porque isso faz parte do privilégio. Se alguém grita direitos iguais ou questiona protagonismos, votos, silêncios, violências e posicionamentos, se ofendem, exceto quando convém. Os que decidem não seguir esse cordão funesto precisam se reinventar sem hora pra acabar, precisam estar implicados nesse processo. Não tem resumo, mas cada segundo vale a pena.

No mais é hora de gritar junto. Barulho forte nessa Disneylândia tropical e assombrada, ela um dia há de afundar numa bendita onda, como uma Atlântida racista que ninguém terá vontade de reencontrar.

Pensei nas estátuas de líderes escravocratas sendo jogadas em rios. Pensei nos “patriarcas” do Brasil e em nosso sempre renovado panteão de covardes, gente que acumulou fortuna matando pelas costas, criando miséria, torturando e perpetuando apagamentos. Precisamos afundar seus monumentos, mas não sem antes fazer com que a história escrita deixe de reverenciá-los.

O chão está tremendo por justiça, e o passado precisa ser recontado pra que exista futuro, isso aparece nas falas como um certo consenso. Vale dizer, porém, que essa narrativa não pode e não será feita pela supremacia branca, seja ela radical, sem açúcar ou amenizada em tons pastel. Se queremos mesmo um mundo mais digno, temos de nos engajar nesse processo da melhor maneira e não tentar impedi-lo.

Na minha visão, se as pessoas negras são desumanizadas também não existe humanidade possível para as pessoas brancas. Mas como tantos brancos insistem em não se dar conta de sua miséria enfeitada, se negam absolutamente a abrir mão de qualquer coisa, incapazes até mesmo a respeitar as regras de decência e educação mais básicas, não há mais como insistir no discurso da paciência, de esperar uma consciência que nunca chega, que se mostra imune a toda informação. Em texto recente na Folha de S. Paulo, a filósofa Djamila Ribeiro citou trechos marcantes e a frase-título de um artigo da médica e feminista Jurema Werneck: “A era da inocência acabou, já foi tarde”. Penso aqui em uma das articulações possíveis entre o psicanalítico e o social, numa certa leitura do desmentido e da denegação: faço que não sei o que de fato descobri (sobre o racismo) mas revelo essa operação ao admití-lo como fetiche (posto uma hashtag, digo que tenho amigos negros etc).

Limites práticos têm de ser impostos, novos espaços sociais têm de ser ocupados de imediato. Não é correr nem arrastar, é andar no passo que o tempo pede. Responsabilizar com consequência.

Tanto trovão pode assustar, mas nesse contexto o silêncio trabalha a favor da opressão. No fim das contas, o barulho, a luta e a presença é que fazem crescer esperança. Que ela chegue a você com o relato dos dias que costuro longa e atrapalhadamente nessa carta.

Sabe que hoje mesmo voaram aqui duas maritacas? Pode parecer bobagem falar disso a essa altura, mas sou dessas. Acho que ver passarinho verde é sinal de graça. Ou talvez de um grande desejo de alegria.

Um beijo,

V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

Ilustração: Marcela Scheid

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