Às vezes, quase sempre, de vez em quando, nunca – ou quase!

Inspirada por Andrea Beltrão e Mariana Lima, de olho em Sex and the City e arrebatada pelo tempo espiralar em Leda Maria Martins, Erika Palomino está, para variar, atrasada com a coluna.


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Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje.

– ditado iorubá

O tempo é político. Haja vista que, graças a você sabe quem, nem horário de verão temos, e poderíamos agora mesmo estar curtindo tardes longas, calorentas, vendo o sol sumir por detrás dos prédios no céu cor de rosa. Ando na nóia de pensar no tempo, das coisas mais fortes que vieram com a pandemia. Tem momentos em que paro pra tentar lembrar o que eu fazia naqueles meses em que não saíamos de casa, em que lavávamos ovos pra guardar na geladeira, em que nos sentíamos sozinhas e estranhas. E só enxergo, às vezes, um blur, um embaçado. Não sei. Acho que estava trabalhando, enlouquecida. Sei lá. Uma sensação turva.

De muitas coisas não me lembro mesmo. Não me recordo. Preferia lembrar. E me assombra pessoas que se lembram de tudo, em detalhes. Às vezes são elas que me contam o que aconteceu comigo.

O Google Fotos insiste em me escancarar lembranças de sete, seis, cinco, quatro, três, dois anos atrás. E fico então tentando recuperar o entorno daquelas imagens. A decoração da casa, qual apartamento era, uma viagem, um prato que costumava cozinhar, um tipo de óculos, um corte de cabelo. O tempo (e a moda) também servem para isso.

Há períodos que aparecem bem delimitados, e isso se dá por lembranças de fatos realmente marcantes, onde me apoio para saber onde estava, e tentar estabelecer uma temporalidade linear, uma cronologia sequencial de acontecimentos (pleonasmo literário?) e que me faz (ou deveria) entender afinal de contas como cheguei até aqui. Os nascimentos dos filhos, o ano em que entrei na Folha, quando comecei minha coluna, a primeira temporada internacional. O livro Babado Forte, que lancei em 1999, sei que levei três anos escrevendo, e a vantagem é que ele reporta a década de 1990 ano a ano, então consigo saber melhor onde eu estava – e fazendo o quê. Depois, veio o site que comecei a fazer em 2001, lancei em 2001 e foi até 2008/2009 (já não sei), e a House no meio desse caminho. Em 2010, morreram meu cachorro, minha mãe e meu melhor amigo. Nesta ordem. Daquele ano não esqueço.

O cérebro nos protege, e tende a registrar melhor as coisas boas. Ou não conseguiríamos superar traumas, sofrimentos extremos, colocados pra debaixo do tapete de neurônios e sinapses. A memória é uma ilha de edição, recitou o saudoso Waly Salomão. A memória é uma invenção, diz o título provocativo de uma mostra montada este ano (de 2021) no MAM do Rio. Essas frases seguem ecoando.

Opa. Estávamos falando de tempo e acabamos falando da memória. Faz sentido.

Ando acordando com o sol nascendo. Ele vem, na hora marcada pelo aplicativo, entrando pela fresta sem cortina da janela. Ele é muito pontual, o sol. Que bom. Daí quero correr para, ironicamente, aproveitar a manhã com calma. Para dar tempo de tudo o que quero fazer. Nem sempre consigo porque, de alguma maneira, as manhãs passam muito rápido, não? Mesmo acordando com o raiar do sol. As noites de insônia, essas estranhamente discorrem devagar. E atrasam, depois, todo o restante do dia.

Entramos, finalmente, no verão. Ritos como o Natal, as festas (até as da firma) e o Revéillon não são outra coisa que não marcações de tempo. Onde estávamos mesmo no último Réveillon? O que fizemos? Isso a gente sabe. Porque, de novo, a pandemia agora se configura um dos grandes marcadores dessa nossa passagem pela Terra. Antes de março de 2020, depois. Vai ficar mais fácil de lembrar ao menos o que fazíamos e quem éramos antes de tudo isso acontecer.

No Oriente a relação com o tempo é outra. E no Japão, como se sabe, as estações do ano demarcadas e experiências ritualísticas como a cerimônia do chá ou se sentar sob as cerejeiras em flor (em abril), a contemplação dos jardins… Toda uma vida observando o tempo e a relação com ele. Sempre penso nos japoneses. E penso que agora mesmo, enquanto tomamos nosso café da manhã, eles estão nervosos saindo das estações do metrô, atravessando os cruzamentos, muitos.

O tempo também é o assunto da série a que estamos assistindo, Sex and The City. Não era obcecada pelas personagens da versão original. Assistia, aqui e ali, gostava de ver os figurinos de Patricia Field e de como tudo aquilo desenhou uma Nova York à volta. Mas não era assim desesperada. Daí que ver essa edição me interessou justamente para ver como todo mundo está lidando com a passagem do tempo, observando como a sociedade lida com mulheres acima dos 50. Em alguns momentos, não vou fazer spoiler, me dá uma certa vergonhinha: acho que o roteiro força um pouco, tentando distrair da frivolidade que a série original celebrava. Tentando não ser superficial, a abordagem da agenda dos dias de hoje me lembra o tio da Sukita um pouco.

Para tratar desse assunto tenho preferido a Rebeca, personagem de Andrea Beltrão na novela Um Lugar ao Sol. Show de Andrea, da autora Lícia Manzo e dos figurinistas Nubia Maísa, Simone Batata e Antônio Medeiros. Show de Mariana Lima nas cenas em que elas contracenam. Recomendo vivamente.

O que tem me ajudado é meditar sobre a impermanência (assunto para outra coluna) e o que tem me encantado e me explicado muito é a leitura de Leda Maria Martins. Ela define e estabelece reflexões sobre o tempo como espirais, conforme vem desenvolvendo desde os anos 1990, como ritornelos. E é lindo. Segundo ela, esse tipo de composição, “como se fosse células-síntese das ideias ressurgentes, podem ser lidas em uma sintaxe consecutiva ou como condensações cumulativas e acumulativas que mantêm o tema, mas com ele também improvisam, como o próprio tempo espiralar que as inspira”. É realmente muito lindo. O tempo, então, pode ser experimentado como movimentos de dilatação e contenção, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das estampas presente, passado e futuro, sobre o princípio não do corpo em repouso, mas do movimento. Esses pensamentos fazem muita coisa fazer mais sentido. Poeta, ensaísta, professora, Leda Maria Martins nos fala de ancestralidade, religiosidade, oralidade, do gesto e da dança. Tudo isso em “Performances do Tempo Espiralar”, da editora Cobogó, que faz tudo também com muito capricho e sensibilidade.

Estou atrasada. Esta coluna já deveria ter sido postada faz tempo e, portanto, vou terminando por aqui. Desejo a todas, todos e todes vocês que me lêem, tempos melhores no novo ano de 2022. Axé.

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