E se… a gente simplesmente produzisse menos?

Não faltam dados que mostram como a lógica de crescimento exponencial está levando ao esgotamento das condições de vida na Terra. Mas parece não haver imaginação para pensar além dela. Seria esse o fim da história?


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Em 1989, o sociólogo estadunidense Francis Fukuyama afirmou que, com a queda do Muro de Berlim, havíamos chegado ao “fim da história”. O acontecimento marcava o fim dos antagonismos políticos e a coroação do capitalismo e da democracia burguesa como ideário político dominante. Para muito além de Fukuyama, o fim da história é anunciado por quem proclama, sem nenhuma timidez, a retórica de que “não há alternativa”. Para eles, gostemos ou não, a lógica de crescimento que opera a favor do mercado em detrimento do bem-estar social é a única forma viável de organização da produção e da sociedade, custe o que custar, inclusive as condições materiais de vida na Terra.

Esse fim da história exige a morte da imaginação e, portanto, o fim da política. Pragmatismo autoritário, tecnofix e um pouco de negacionismo (tanto da crise ambiental e climática quanto da crise humanitária engendrada pela corrida pela acumulação) precisam ser adicionados à retórica para garantir um tipo de credibilidade mínima, já que não faltam dados e pesquisas consolidados responsáveis por revelar que essa lógica de crescimento e acumulação exponencial está levando ao esgotamento das condições de vida na Terra – ao menos desde os anos 70.

Ou falamos sobre produzir menos ou vamos continuar com narrativas que não podem ser sustentadas pelos dados e estatísticas. Apesar dos incontáveis press releases sobre como as marcas e empresas são cada vez mais sustentáveis, dados sobre condições de trabalho, aumento de qualidade de vida das pessoas, igualdade social, emissão de poluentes, uso de recursos, entre tantos outros, mostram que, na realidade objetiva, estamos indo na direção oposta e a passos largos. Não precisamos ir longe, as conclusões do Índice de Transparência na Moda Brasil de 2021 mostrou o quão aquém das urgências do nosso tempo o setor está.

Quem defende o “fim da história” normalmente está garantindo, antes de tudo, os próprios interesses, sobretudo, os próprios privilégios. Inclusive, o caos social e ambiental é oportunidade perfeita para criação de novos nichos de acumulação de capital como: mercado de carbono, superexploração da bioeconomia, o mercado de seguros, geoengenharia e o turismo espacial (para citar alguns dos mais proeminentes).

Sendo dissimulados em suas ações, os profetas do fim da história também gostam de esconder sua ideologia e vendê-la como apolítica, neutra e técnica. Os críticos, esses sim, são ideológicos e responsáveis por politizar o debate. Porém, como alerta a pesquisadora-profissional e autora Kate Fletcher, “o trabalho de promover o crescimento econômico também é político e orientado por valores, só que muitas vezes isso é invisível porque se tornou a norma, ‘a água em que nadamos’”. Para nos convencer de que estão certos, eles até andam com livros de pseudociência debaixo do braço, contratam profissionais do marketing para promover o negacionismo científico e lançam mão de todas as estratégias possíveis de lavagem verde.

Haveria outra forma de nos empurrar tanto marketing raso e garantir tamanha passividade social?

Como, frente aos dados do último relatório do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), as indústrias e o varejo – incluindo da moda – e seus profetas do fim da história, sentados em suas salas com ar-condicionado e longe das margens, vão ter coragem de anunciar metas de redução de emissões tão irrisórias quanto aquelas de neutralizar (veja bem: neutralizar, e não reduzir) emissões até 2050 quando o consenso científico nos mostra que para conter os piores danos precisamos reduzir as emissões até 2030?

Como, frente às relações estabelecidas entre a indústria da moda e o desmatamento da Amazônia, esse último responsável por 70% das emissões de GEEs no Brasil, marcas se sentem confortáveis para publicitar acordos de compensação de carbono sem assumir sua parcela de responsabilidade no processo acelerado de destruição da floresta, que está muito perto de atingir um ponto de savanização? Como, frente ao envenenamento da população via agrotóxicos, a moda chama de sustentável uma cotonicultura que é a quarta maior consumidora de agrotóxicos e a cultura que mais consome agrotóxicos por hectare, entre eles o glifosato, relacionado a mais de 26 doenças e à mortalidade infantil?

Como, frente à realidade objetiva diante dos nossos olhos de que a superprodução material não está levando à prosperidade social (pelo contrário, trabalhadoras e trabalhadores no setor seguem pressionados, mal remunerados e sujeitos a condições precárias de trabalho, inclusive nos países chamados desenvolvidos), vamos aceitar aumento de produção e uso de recursos para geração de lucros privatizados e danos socializados? O relatório The Pulse of the Fashion Industry (2019), estima que o consumo de roupas deve crescer 63% até 2030, chegando numa produção de 102 milhões de toneladas de roupas em todo o mundo, mesmo frente ao imperativo climático de diminuir o uso de recursos em, no mínimo, 75%.

A quem interessa o fim da história?

A narrativa do fim da história não passa de uma estratégia bem articulada (sobretudo por aqueles que historicamente detêm o poder: homens, brancos, ocidentais e ocidentalizados, treinados para exercer o domínio) para garantir que não nos sintamos animadas e com vontade de nos juntarmos com quem ousa imaginar formas de organização da produção e do consumo alternativas, formas que respeitem o que Fletcher vai chamar de Earth Logic, ou lógica da Terra. Lógica que, pelo caráter plural, interdependente e diverso, abarca a interseccionalidade necessária para implodir os sistemas de poder (machismos, racismo, colonialismo etc.), sempre em respeito aos limites planetários, que são largos o suficiente para garantir que todas e todos, seres humanos e não humanos, vivam uma boa vida.

Concluo afirmando categoricamente que ilógico é insistir em um sistema de crescimento infinito, que está deteriorando as condições naturais necessárias para acessarmos o crucial para a vida na terra. Utópico é achar que podemos resolver nossas urgências socioambientais sem resgatar a imaginação necessária para adiarmos o fim do mundo, ou melhor, o fim da nossa espécie.

Abaixo, algumas leituras que estão na minha lista de férias e que podem ajudar a ativar a imaginação e incitar a coragem necessária para se juntar aos que seguem imaginando:

Pluriverso

Horizontes Amazônicos

Ecofeminismo

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