Um dos mais populares elogios dos últimos tempos é, talvez, uma das maiores ofensas que uma existência pode receber: “nunca errou”. Nunca ter errado é uma morte horrível, uma sentença pior que o inferno.
Penso nisso vendo comentários sobre o aniversário dessa mulher chamada Madonna. Que errou muito, às vezes rude, como no vexame de defender cloroquina. Bom, no caso dela o post foi apagado, ela voltou atrás, foi vacinada e segue defendendo a vacinação. Outros fizeram do remédio inútil política de Estado, gastaram zilhões, causaram mortes e seguem presidentes.
Desde que eu me lembro, Madonna é uma espécie de Geni, de Joana D’Arc, de demônia, uma pessoa-lugar onde muitos arremessam suas frustrações e ódios. Encenam com ela o que fazem com as mulheres de forma mais geral. Especialmente com as que levantam a voz e respondem publicamente, com as que não querem e não precisam se encaixar em um certo script, no roteiro básico.
É claro que o mundo patriarcal colonialista faz isso também com as mulheres que se encaixam, suas supostas aliadas. Mas gente como Madonna é um perigo. Não só pelos temas que ela levanta, mas principalmente pela curtição. Uma mulher que gosta de quem é e do que faz. Uma mulher que fala do prazer que seu corpo é capaz de sentir e produzir. Isso pode espalhar ideias por aí.
Há milhares de críticas que se pode levantar sobre a carreira de Madonna, sem dúvida. Mas jamais em toda história do mainstream vi alguém, especialmente um homem, ser tão questionado, abertamente interrogado e condenado como ela foi. Nem políticos, ou seja, não artistas influentes, mas gente que assina leis e age em nome de populações inteiras, recebem o mesmo tratamento.
Não se trata de cancelamento. Ela segue milionária e popular. É mais como uma cristalização nesse lugar de a mulher errada, a piranha, a ridícula. Um misto de idolatria sustentada por algo como uma repulsa, um teatro contraditório, punitivista.
Essa fogueira permanente sempre parte de um velho estoque de lenha. Meu Deus, o que pensarão as criancinhas? Onde ficam a moral e os bons costumes? Isso não é coisa para gente de família. E vai sofrendo as metamorfoses exigidas.
O planeta à beira da explosão, a fome em crescimento no mundo, as crianças abandonadas à sua sorte, tudo isso certamente não é obra de Madonna e de sua bunda de fora, de suas fantasias sexuais.
E, engraçado, quando os grandes paladinos da virtude, e mesmo a imprensa, abordam esses assuntos, os nomes dos países, empresas, especuladores e monopólios responsáveis pelas catástrofes são poupados. Vemos manchetes do tipo “mundo precisa reverter crise climática”, ” país vê crescimento da miséria”. As pessoas desaparecem.
Já Madonna é chamada a responder em seu nome, e em nome da sociedade de certa forma, sobre assuntos que vão de educação sexual básica ao que faz com seu rosto. Em um mundo que ama cirurgia plástica e lucra pencas com todo tipo de procedimento, chega a ser estranha tamanha comoção com esse último tema. Mas esse não é o ponto. O ponto é que Madonna se recusa a ser velha. Ela simplesmente não quer. Embora e já que isso é inevitável, entendo que o jeito dela de ser velha é insuportável para muita gente.
Eu mesma já fui dessas que defende a cara natural etc. Mudei de ideia porque me dei conta do moralismo embutido aí, um gratiluz elitista sobre uma tal dignidade que vem do tempo, necessariamente. Uma escolha pessoal é uma escolha. Posso achar bom ou ruim, bonito ou feio, posso questionar padrões e privilégios, mas não há necessidade de campanha e nem de criar uma tabela de valor espiritual onde quem tem menos procedimentos é mais evoluído. Nem o contrário. Qualquer padronização aí é facilmente cooptada pelas astúcias do capitalismo. Se podemos escapar, é pela análise, pela conversa, pela complicação e pelo conflito criativo.
É claro, podemos discutir por exemplo a homogeinização dos rostos, a obsessão por uma mesma cara padrão e de onde isso vem socialmente. Mas não compensa mais uma caça às bruxas disfarçada de boa intenção. Talvez essa cara toda igual seja sintoma invertido de um mundo ultramega individualista, onde nada mais há de comum, onde os direitos e ações coletivos estão cada vez mais ameaçados, onde tudo o que faz comunidade é combatido, onde só o ódio une. Talvez ter o mesmo rosto de filtro de Instagram nos lembre, mesmo que de um jeito maluco, menos lógico, do quanto estamos separados não por nossas diferenças, mas pela desigualdade. Uma versão bizarra do “somos todos iguais” num sistema que massacra populações inteiras e as considera menos humanas.
Pra mim, Madonna é a cara dela. Esticada sim, mas ela, o que ela fez de si mesma com todas as suas questões, neuroses, defeitos e baixarias. Com os sinais do tempo em que vive, inclusive, e do qual ela não se isenta. Com todo o seu talento, com seus looks icônicos, com todos os seus hits deliciosos, com o seu corpo que ela botou pra jogo, com suas mancadas e acertos, com o muito que ela tem sido capaz de inspirar.
Que assustadoras essas pessoas que se acham sem defeitos ou apenas com defeitos limpinhos, perfeitamente adequados. Aquelas pessoas a quem Fernando Pessoa dedicou seu Poema em Linha Reta, gente que não raro tenta esconder sua avalanche de vileza e transformar monstruosidade em virtude. O capitalismo tardio é governado por eles, os “campeões em tudo”. Sabemos bem a que fundo de poço isso tem nos levado.
O que nos bota do lado bom do mundo não é apenas dizer isso ou aquilo, muito menos apenas apontar, mas o que somos capazes de construir juntos. Com implicação pessoal e com uma necessária e urgente organização política, com atuação nas ruas, com um agir comprometido com a mudança, com o combate da miséria e da exploração humana.
Além do mais, e eu diria que é disso que se trata no caso Madonna, ela põe em jogo o incômodo da sexualidade humana. O que os “homens de bem”, hipócritas de marca maior, escondem, ela faz questão de mostrar. Como exibição, como ameaça ao controle deles, como fantasias dela, como imagem, como pergunta. Não com a pretensão de resolver o incômodo, de dizer que mostrar por si só resolve, mas porque o que está em jogo aí é poder.
A sexualidade, que não se resume ao, digamos, ato sexual oficial, permanece incômoda na luz ou nas sombras porque ela é de alguma forma um dos nomes ou o lugar do incômodo. Mas isso precisa andar por aí, ser falado, vivido e não mantido em cativeiro por gente que quer instrumentalizar a coisa toda para usar como ferramenta de controle social. Adultos, crianças, adolescentes todos devemos pensar e trocar ideias sobre isso, cada um dentro de suas possibilidades. Diz respeito a todos, é uma das questões básicas da existência.
No mais, enquanto santinhas gratiluz apoiam genocidas tranquilamente, enquanto influenciadoras boazinhas se fazem de loucas enquanto seus países afundam em miséria e no retrocesso, na censura, penso no quanto cobramos e deixamos cobrar dessa aniversariante do dia ao longo das últimas décadas.
Parabéns, Madonna, não por tudo nem por nada, por desafiar o coro dos contentes.
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