A questão do poder é muito antiga. Filósofos, sociólogos, especialistas em política, psicanalistas, antropólogos, artistas, a lista dos que se debruçaram sobre esse assunto é enorme.
O poder, é claro, não se manifesta nas grandes questões apenas, aliás, é na vida miúda que suas tramas complexas são tecidas. Na pasmaceira da coisa que chamamos de todo dia.
Essa semana li textos interessantes, e outros com o mesmo tom oportunista de sempre, sobre a morte de uma cantora sertaneja muito amada. Não direi o nome que todos sabem porque isso aqui não é sobre ela. Nesse ponto vale dizer que as pessoas, diante de tantas mortes nos últimos anos, não ficaram mais sensíveis à questão do luto, pelo contrário, parece que o governo genocida tem pautado um embrutecimento muito amplo.
Vem da questão da morte uma das minhas muitas desavenças antigas com o jornalismo. A “crítica especialista” de um legado diante da morte me parece grotesca.
Os textos de partidas recentes deveriam ser escritos por fãs apaixonados, por gente que quer aumentar pra mais tudo que o morto tenha feito. Textos carpideiros, cheios de superlativos, injustos e exagerados como são as paixões. Algo que protegesse os amados e os que amavam o morto numa chuva de confete e abraços. Análises chatas e protocolares poderiam ficar para o ano seguinte, e mesmo assim incluir boas lembranças.
As críticas deveriam se limitar aos genocidas, aos capitalistas selvagens, aos criminosos hediondos, aos que na vida não foram senão covardes pisando em crânios, diante de todos ou discreta e viciosamente. Nesses casos deveriam ser publicadas listas de mal-feitos, para ajudar o trabalho do diabo. Não é certo que ele exista, mas em todo caso é um desejo legítimo que aparece diante de certas existências.
Mas esses em geral têm de chegar a Hitler para alcançar um tratamento severo. Os discípulos seguem ganhando da “objetividade” midiáticas o mais sincero decoro, com todo o respeito.
Disseram com razão que sobretudo os homens chafurdam e fazem comentários invasivos sobre os corpos femininos até na hora da morte. Porque podem, para demonstrar poder.
Mas as configurações talvez sejam algo diferentes. E se pensarmos que um homem não faz isso para demonstrar poder, mas para gerar esse mesmo poder?
Quer dizer, é disso também que é feito o poder do homem. Da propriedade do corpo da mulher, dessa mulher inventada. Não perdem a chance. Especialmente se acham uma mulher famosa, com um bom alcance, para servir de exemplo, pra bastante gente ouvir.
A construção desse poder começa cedo. Quer dizer, o cara pode não ser milionário, não ter alcançado os itens da casa dos sonhos do boneco Ken nem nada, mas uma mulher talvez ele TENHA. E hoje elas andam saidinhas, chutam o balde, se viram, têm a ousadia de chorar e sorrir sozinhas. Muitas cataram que não existe essa “essência de mulher” naturalmente frágil e disponível.
A menininha do papai ouve ai que linda mocinha. A mamãe ajuda. A família reforça. Os amigos fazem igual. Que princesa fofinha, arrumadinha, lindinha. Já é mocinha. Pronta pra casar. Dá um abraço no tio. Sorria pro padrinho. Sorria, fica mais linda sorrindo. Cuidado, hein, comendo assim vai engordar e não arruma namorado. Nossa, essa vai dar trabalho. Vai dar prejuízo. Não vai dar em nada esquisita desse jeito. Linda, princesa, maravilhosa. Tão delicada, feminina. Não come nada, assim não pega corpo. Pegou corpo, nem parece que tem essa idade. Tão arrumadinha. Tem de estar sempre apresentável, sinal de limpeza, de respeito, de autoestima, autocuidado.
Autocuidado às vezes é acordar, não trocar de roupa, não pentear o cabelo, não ir trabalhar e ter um retiro de paz pra ser completamente ocioso em dia útil, poder amaldiçoar esse mundo horrendo da performance e da exploração da vida se dedicando a nada. Mas muita gente não está pronta pra esse tipo de verdade. Que se virem. Por outro lado, muita gente sabe exatamente do que estou falando e sofre por não poder jogar tudo pro alto porque o preço da sobrevivência é alto, porque o mundo cobra e as lojas de roupa botam alarme contra pessoas negras ou com “aparência de pobre”.
Há um trabalho urgente de analisar nossas reações diante dos comentários masculinos. De entender onde é que eles nos pegam, de que forma específica nos machucam e como esse desejo de agradar e de corresponder a um certo ideal é construído, fixado e naturalizado em nós em geral de formas bastante distintas do que acontece com os meninos. Não que isso baste.
Recai sobre uma mulher esse peso de ser “a mulher”, o trofeuzinho, o monumentinho ao mundo que, juram de pé junto, deu certo. Ela tem de se esforçar, não pode “se largar”. O que vão pensar? Que o mundo está um caos, que os demônios se afastaram daqui por medo da concorrência?
Autocuidado às vezes é acordar, não trocar de roupa, não pentear o cabelo, não ir trabalhar e ter um retiro de paz pra ser completamente ocioso em dia útil, poder amaldiçoar esse mundo horrendo da performance e da exploração da vida se dedicando a nada.
Não era isso no pano de fundo do imaginário ocidental das bruxas?Aquelas meio doidas que preferiam estar entre elas e suas “coisinhas”. Afinal se elas materializavam um desprezo à organização dos homens e preferiam estar de bagunça na garupa do capeta a lidar com eles, tinham seus motivos. Querem um filme de terror? Estudem a história do casamento ao longo dos séculos, atentando para os direitos e deveres dos “cônjuges”.
Há exceções que oferecem alternativas mais harmônicas, mas até onde os relatos que conheço mostram, o saldo é aterrorizante. A última que pegar a vassoura casa com o inquisidor.
Vejam bem, em última instância podemos dizer que cada um pode gostar de uma coisa, inclusive do que o destrua. Como se chegou a isso é uma questão que não admite resposta única, mesmo considerando o social, a economia, o macro. Mas precisamos considerar que uma vez que o social, a economia, o macro se manifestem como imposição, isso precisa ser analisado na articulação da resposta.
Os casamentos que vão bem sem anulação, resignação ou servidão da mulher são pautados em geral por um questionamento radical de papéis. Se o amor entra em jogo não é exatamente para conjugar o verbo ter, pelo menos não no sentido de propriedade.
Isso me faz pensar na questão da corna. Interessante músicas que trazem uma mulher em outros papéis que não o da corna mansa quase santa. Corna brava. Amante que aponta a presepada do macho. Apaixonada que detalha os termos da cilada. Desencanada que se vê melhor na companhia das amigas. Pessoa capaz de analisar seu próprio comportamento, assumir suas escolhas, botar seu ridículo pra jogo, se expor.
Engraçado que as mulheres foram e continuam sendo mortas por casos fora do casamento (e também por pedirem divórcio, por se separarem, por apenas existirem inclusive), enquanto historicamente a linha oculta do contrato matrimonial é a de que o homem pode trair. É assim inclusive que ele deve manter o casamento, agindo no pvt. Mas a grande figura universal diz que ele é o corno. Interessante, não?
Nossa, só putaria. Falta religião a esse povo. Não, porque crente não trai. Li isso outro dia. Ri pra não chorar. E quando é verdade pode ser que seja pior ainda. Os sacrifícios e sublimações, a criação de inimigos moralmente inferiores, a paranoia, o dedo de seta em nome de Deus. O rol é extenso e não exclusivo dos religiosos, claro. Mas não deve passar batido o quanto, por exemplo na política, a bancada evangélica age em conjunto com a da bala moralizando pautas como direitos reprodutivos e educação sexual nas escolas.
Argumentar que “o homem” diz o que diz para demonstrar poder é como dizer que o vampiro suga para demonstrar as presas. Não tá errado mas tem um extra aí. Ambos o fazem para alimentar seu poder com gente viva, porque é também disso que ele é feito e depende para se criar e sobreviver. A presa, a frase grosseira, parecem servir pra tentar esconder essa dependência e criar uma falsa relação em que o homem poderoso primordial doador de costela está no comando desde o primeiro sopro dos tempos.
Não é porque o homem tem esse problema com úteros e peitos, essa coisa mal resolvida que pede adoração e desprezo profundo, que vamos deixar barato que isso sustente um mundo onde, quanto mais ousamos ser uma mulher, mais somos subalternizadas. Não da mesma forma, mas ainda assim.
Muitas mulheres se juntam aos “senhores”, algumas por exaustão diante de tanta opressão, outras por uma ilusão de paz e segurança, certo tipo porque são boas em executar o jogo conforme as regras deles. Essas últimas não merecem nossa irmandade e nem um trapo deve ser passado pra limpar a barra delas. Não vejo porque exaltar uma mulher por ocupar um lugar de opressão. Guardem seus panos pra coisa melhor. A hierarquia de classe e raça é uma questão incontornável nesse ponto e revela a cara feia de pataquadas genéricas sobre sororidade.
O homem universal também não vive em igualdade nem com os seus semelhantes. O topo do sistema. Os muito ricos. Os ricos. Os brancos. Os não-brancos. Quando a base cai na real a isso se chama um trabalhador. O trabalhador pobre branco não vive o mesmo que o negro. Mas quando percebem o que podem em termos de número e mobilização, aí a coisa muda. A raça em sua encarnação colonial foi uma invenção para viabilizar a escravidão e a nova operação comercial. Logo, raça articula classe nesse sentido. As lutas precisam considerar isso.
Enquanto as mulheres brancas ricas foram mantidas na servidão com privilégios materiais, as mulheres negras foram escravizadas e massacradas, privadas de tudo. É dessas brancas muitas vezes bestiais, pois bestializavam outras mulheres, que herdamos nosso dever de estarmos arrumadinhas. Podemos pensar aqui que há algo que separa o deleite da vaidade do imperativo de estar “apresentável” segundo certos padrões sociais determinados.
O homem universal também não vive em igualdade nem com os seus semelhantes. O topo do sistema. Os muito ricos. Os ricos. Os brancos. Os não-brancos. Quando a base cai na real a isso se chama um trabalhador.
Vale lembrar aqui que embora muitas bisnetas das sinhás amem a “tradição”, suas antepassadas não viveram contos de fada, a não ser como monstros. Muitas foram cúmplices ativas do genocídio escravista (há relatos muitos do prazer que isso causava a algumas senhouras). As que deixaram seus diários e cartas como registros de discordância da barbárie em geral morreram cedo e caladas.
A maioria vivia um cativeiro com cheiro de pó de arroz. Vale lembrar que o estupro marital sequer podia ser articulado, transar era um dever assim como procriar os genes do senhor quantas vezes ele achasse necessário e inclusive diante do risco de morte. Apanhar era corriqueiro, da regra. E todos na Casa Grande eram posse do homem da casa. O bom trato das senhoras era regulado pelas necessidades dos negócios e pela boa vontade dos senhores. A tradição não existe sem essas passagens.
Ah, mas nem todos, nem todas. Pode ser. O fato é que as exceções não impediram o massacre de homens, mulheres e crianças africanos retirados à força de seus países nem das novas gerações de pessoas negras nascidas no Brasil durante e depois da escravidão. O mesmo podendo ser dito dos povos indígenas originários. Se algo mudou, foi pelas constantes revoltas e insurreições dos escravizados.
Hoje, se uma mulher branca pensa na origem de seus privilégios, não pode deixar de odiá-los. A não ser que esteja morta por dentro. E a saída não está em espetáculos de culpa caridosa e outras coisas inúteis.
Se homens e mulheres brancos, negros e indígenas podem se encontrar é na utopia e na luta organizada comum por uma outra sociedade, por novos ares enfim. É possível que nossos prazeres não dependam da destruição de outras pessoas.
Pela igualdade de direitos, que passa pelo reconhecimento do genocídio colonial e pela rejeição de todas as suas estruturas. É preciso analisar seus efeitos e o que elas causaram em termos de subjetividades.
A desconstrução masculina entre as mulheres segue sendo piada. Não por má vontade. Apenas porque não vamos dar mais essa mãozinha enquanto os homens não vierem pra briga conosco. Embora homens negros sejam oprimidos e discriminados pela branquitude e suas milícias, todos os homens têm parte na opressão das mulheres, especialmente das mulheres negras.
Se homens e mulheres brancos, negros e indígenas podem se encontrar é na utopia e na luta organizada comum por uma outra sociedade, por novos ares enfim. É possível que nossos prazeres não dependam da destruição de outras pessoas.
Enquanto preservarem o direito de seu amigo, seu parça, sua galera, seu sócio, seu ídolo, seu familiar, seu alfa, seu bando, de se alimentarem da gestão dos nossos corpos e de nossas existências, não tem acordo possível. Não porque nós precisamos ser defendidas mas porque só consideramos aliado quem luta contra as mesmas coisas que nós, que conosco destrói para que algo novo possa ser construído em bases comuns. Essa dieta adoecedora tem que acabar.
E não se trata de odiar os homens, mas as estruturas, inclusive as que formatam e atravessam gênero. Toda solidariedade é bem-vinda. O amor é bem-vindo. Chega de cristal, de alecrim dourado. Você nem é tudo isso. O homem acha que é tudo isso e vive assim, o que é fixo e péssimo. Um homem poderia numa outra configuração não ser tudo isso. Uma mulher não é tudo isso. O Eu que tanto louvamos não é tudo isso. É sendo não tudo isso que a gente se gosta, parece.
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