A Pangeia do BaianaSystem
Russo Passapusso fala sobre o novo álbum, Oxeaxeexu, e os reflexos de um ano sem Carnaval no trabalho do BaianaSystem. Dividido em três atos, o disco aborda um desejo de "remontar a Pangeia nos nossos corações".
Em 2019, no disco O Futuro Não Demora, a banda BaianaSystem tentava imaginar tempos futuros em comunidade, sem cogitar que o futuro próximo pudesse ser uma pandemia viral. Agora, o grupo baiano ao mesmo tempo pop e experimental, liderado por Russo Passapusso, começa a apresentar, em três partes, o novo álbum, batizado Oxeaxeexu e ancorado em versar rituais de reza pelo processo de cura. Publicada no final de semana anterior ao Carnaval que não houve, a primeira parte se chama Navio Pirata, nome também do trio elétrico que o grupo conduz nos Carnavais de Salvador e também em outras partes do Brasil. Começa pela explícita faixa “Reza Forte”: “Na despedida o povo todo chora/ tirando urucubaca e sanguessuga do bolso/ não tem saída, tem que ser demorado/ e eu vou fazer uma prece pra livrar teu pescoço”. Os três “x” do título existem para fechar o corpo contra os males que vêm de fora, explica Russo.
Quarto trabalho original do grupo, Oxeaxeexu se inicia com o pé fincado numa África pouco conhecida por brasileiros: dois músicos que participaram do disco remotamente, Makaveli e Jaymita, vivem na Tanzânia e ajudaram a compor a faixa “Nauliza”, que em sua língua significa “para onde vamos”. O segundo ato virá depois com o título Recital Instrumental e representará o mar, o caminho entre África e América. O terceiro, América do Sol, fechará o trajeto para a América do Sul (e não a do Norte), concluindo um elo afrolatino que é a razão de ser do trabalho musical de Russo e do BaianaSystem. “A gente caminha muito com essa bandeira, que chama-se nossa cultura em primeiro lugar”, ele define.
Frame do clipe “Nauliza”, parte de Navio Pirata, primeiro ato do álbum Oxeaxeexu.Divulgação
Ao descrever e explicar o trabalho em quarentena, ele, que é descendente de africanos e indígenas, cita a Pangeia, massa continental única que se fragmentou há milhões de anos e, na divisão, originou as futuras África e América. A música da BaianaSystem seria uma utopia de reunificação afro-americana? “A utopia do BaianaSystem é reunificar a Pangeia dentro do nosso coração”, responde o artista de 38 anos. “É reconectar. A gente acredita que, como os continentes se separaram, o nosso coração está assim também.”
Como foi seu Carnaval?
Foi trabalhando e lançando disco. Pela ausência do Navio Pirata, que é o trio físico, a gente entrega e se dá esse presente: o material chamado Navio Pirata, com conexões diretas com a África, com oito meses de trabalho desde o último Carnaval, que foi quando o BaianaSystem parou. Foi chocante parar. Quando a quarentena começou, a gente estava na tampa da panela, respirando o vapor do suor das pessoas no Carnaval, falando sobre ocupação, comportamento e respeito social. Tudo isso estava explodindo dentro do último Carnaval e as perguntas já estavam sendo feitas: como serão os futuros Carnavais? Não ter esse Carnaval, num país que está doente, num planeta que está doente, é uma referência muito forte para o nosso trabalho. A gente não atira para outro lado, não consegue ver nada além da realidade. Até nossas válvulas de escape, nossa alegria, nosso humor, nesta época, são muito fincados na realidade.
O governo atual sonhava em cancelar o Carnaval e, de um jeito ou de outro, conseguiu?
O Carnaval é o lugar onde o cara que vende no isopor na rua está vendo o mesmo trio elétrico que o fulano que está no camarote. Ali, ele entende que também tem direito, por mais que as cordas das forças comerciais da indústria do axé ainda se assemelhem muito ao processo capitalista e escravista. A gente vê esse vácuo de Carnavais sendo feito para quem está em casa e tem uma internet, com as lives. Acho muito viável e necessário que as pessoas tenham isso, mas não preenche a lacuna. Prefiro entender que essa lacuna não é preenchida para que a gente possa tirar um entendimento melhor daqui para frente.
“No laboratório do Carnaval, aconteciam coisas inesperadas, gritos populares, misturas de pessoas, uma colcha de retalhos que se costura de uma forma que não dá para dominar facilmente. Espero que a intuição da força popular esteja se movendo dentro de nós, mesmo que tenhamos que ficar em casa”. – Russo Passapusso
Com tudo o que aconteceu no último ano, como você imagina os próximos?
Imagino com adaptações. A gente já começa a traçar um ar de continuidade. Continuar já é um grande estímulo de esperança e fé. Vejo adaptações na utilização do espaço público, na interação com a força biológica, com os vírus e no cuidado que a gente tem com a gente para proteger o outro. Não dá para falar numa direção que não seja essa. Todos os braços agora têm que estar interligados. É o que muita gente está mostrando, muito embora estejamos guerreando com pessoas que tiram proveito da situação. O fator da política atual é tirar proveito da situação. É uma panela de pressão enorme. A gente sente que as coisas vão explodir. Estão tirando proveito, agindo como hienas e tentando se utilizar deste momento de sensibilidade e luto em prol de um processo que venha a nos deixar atordoados. A intenção é que a gente tenha poucas escolhas ou não tenha escolhas e tenha que seguir o caminho dos rebanhos como eles querem. No laboratório do Carnaval, aconteciam coisas inesperadas, gritos populares, misturas de pessoas, uma colcha de retalhos que se costura de uma forma que não dá para dominar facilmente. Espero que a intuição da força popular esteja se movendo dentro de nós, mesmo que tenhamos que ficar em casa.
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Qual tem sido o impacto de ficar um ano sem se apresentar ao vivo?
Tem sido brutal porque o Baiana é a vida real dos shows, uma banda feita do coletivismo. A gente vem vivendo um amor platônico com o público. Aqui em Salvador, há um anúncio de um toque de recolher. Mil pessoas estão falando que é um momento extremamente crítico em Salvador. Essa doença é silenciosa, vem se costurando mesmo que a gente tire o foco. Foram nove meses de trabalho calado do BaianaSystem para chegar agora ao público e falar, em Reza Forte, “olha a preciosidade da ‘folha de arruda, pé de coelho e sal grosso'”.
Qual é a ideia dos três elementos do título Oxeaxeexu?
O oxe vem como comportamento, expressão, reação nordestina, de onde eu vim, do Nordeste mais seco, do Recôncavo. O axé é a liberação. E o Exu é a comunicação das ruas. Quando isso se une, vem a esperança de um novo comportamento. A gente colocou o nome porque tem os três “x”, e os três xis fecham o corpo. Os três atos, no fim, vão se juntar e virar um disco só.
O primeiro ato é Navio Pirata, com o ponto de partida sendo a África, uma linha africana-latina, da África para a América Latina. O segundo ato é Recital Instrumental, que mergulha no valor instrumental brasileiro, profundo e diaspórico, que seria meio como o mar. E o terceiro ato é América do Sol, partindo da América Latina para a África. Estamos fazendo esses dois caminhos dentro de nós.
É engraçado que o Navio Pirata sempre esteve em Campo Grande, Barra-Avenida, esses circuitos onde o trio vai andar no Carnaval. O circuito que a gente está fazendo agora é Tanzânia-Bahia. No começo da quarentena, comecei a pesquisar manifestações no continente africano, tentando remontar uma Pangeia. Eu queria essas manifestações não só pelos lugares mais triviais. A gente já fez parceria com Titica, de Angola, e é uma relação muito fácil do samba duro da Bahia com o kuduro de Angola, Congo e outras regiões.
De repente, dormi. No outro dia, acordei e a tela estava aberta justamente na Tanzânia, em Dar es Salaam, com esses músicos cantando e o público agindo igual ao que o Baiana tinha vivido nos Carnavais passados, a mesma tremedeira, as rodas, aquela coisa toda.
A utopia do BaianaSystem é reunificar a Pangeia?
(Ri.) Acho que a utopia do BaianaSystem é reunificar a Pangeia dentro do nosso coração. É reconectar. A gente acredita que, como os continentes se separaram, o nosso coração está assim também. Pegue a Pangeia, desenhe dentro do nosso coração e veja que as placas tectônicas estão se separando.
No geral, a gente olha muito mais para os Estados Unidos…
É, isso é uma crítica que eu faço. É o matricial da minha história. Acho incríveis todos os pensadores, a musicalidade, a poesia, a coisa que vai da Jamaica para os Estados Unidos e para Londres e se fomenta e se multiplica. Não desvalorizo, mas é diferente. É como a gente reage a isso dentro de um processo político e social colonizador. O que é que a gente quer ser? A gente não é igual, é sul-americano. Caminhamos muito com essa bandeira, que chama-se nossa cultura em primeiro lugar. O que fica no nosso coração é tentar colocar o nosso em primeiro, e não, no processo de entreguismo, colocar o outro em primeiro. Essas forças maiores que fazem a gente agir um contra o outro precisam acabar. Em vez de ir afastando mais, juntar mais. Não é uma música feita para a pessoa esquecer o que está vivendo. A gente não pode abrir mão de dar o fio da meada num país que não tem um museu em relação aos povos escravos aqui na cidade, em que luta-se para esquecer esse passado.
A representatividade racial finalmente virou o assunto do momento na Rede Globo. Como você está encarando isso?
Encaro como uma grande armadilha. Não existe representatividade dentro de armadilha. Eu não posso ficar feliz porque você me colocou para ser mais um preto dentro de uma armadilha. Eu não posso. Representatividade é dentro de um lugar onde a gente pode exercer nossas funções, nossa identidade, nosso valor, nossa beleza, com integridade e força. Torço para que a gente não fique sofrendo, que a dor e o ódio não imperem. Tem que ter cada vez mais representatividade dentro dos meios de comunicação, em postos e trabalhos cada vez melhores. Que sejam os roteiristas, os donos do programa, os donos de tudo, e que possam guiar com cabeça boa.
Você pode contar um pouco sobre as suas origens?
Eu vim do interior, do sertão. Nasci em Feira de Santana e tive passagens por Senhor do Bonfim, Santo Antônio de Jesus, Juazeiro. Só em Salvador vim a ter contato com essa parte cultural-musical mais próxima do mar, da fartura, da diáspora, da mistura, que traz toda essa beleza. O que ecoava na minha cabeça e no meu coração antes eram os aboios, os repentes, o forró, Cátia de França, Zé Ramalho. Quando chego em Salvador, tenho um encontro forte com a cultura chamada soundsystem, de jovens que juntavam dinheiro para comprar cabo e fio para botar na rua e fazer o negócio que a gente chamava de mutirão mete-mão. Era chegar, tirar ponto de energia da rua e botar soundsystem. A gente ia para os bairros periféricos, onde a galera não apreendia nosso som. MiniStereo Público é um nome que satiriza isso, porque quando você botava som na rua vinha um órgão apreender o som, mas quando a gente botava nos bairros periféricos não vinha ninguém. No início, o MiniStereo Público era simplesmente levar caixa para o gueto, tocar, se sentir bem porque fazia aquilo e voltar para trabalhar em telemarketing. O MiniStereo Público começou tocando música brasileira, mas aí descobriu os discos jamaicanos. Eu comecei a cantar em cima, a parafrasear os repentes. Cantava ragga e a galera chamava de repente. Cantava dubstep e todo mundo falava que era arrocha. Cantava raggamuffin, as meninas desciam para dançar pagode. E a gente percebeu que não fugia de dentro de si. Por mais que a gente estivesse olhando para fora, estava caminhando cada vez mais para dentro da nossa cultura. Posteriormente, com a galera do BaianaSystem, vi as similaridades entre o soundsystem e o trio elétrico, que não deixa de ser um soundsystem ambulante.
“Cantava dubstep e todo mundo falava que era arrocha. Cantava raggamuffin, as meninas desciam para dançar pagode. A gente percebeu que não fugia de dentro de si. Por mais que a gente estivesse olhando para fora, estava caminhando cada vez mais para dentro da nossa cultura”. – Russo Passapusso
Os seus pais nasceram onde e faziam o quê?
Em Feira de Santana. Meu pai era da roça, trabalhava com roça, e minha mãe conseguiu passar num concurso do Banco do Nordeste, com muito estudo. Foi uma época mágica da nossa vida quando minha mãe conseguiu trabalhar no banco e dar sustento para a gente até conseguir levar os filhos pra capital. Quando a minha família se separou e eu fiquei só em Salvador, nas ruas, consegui encontrar pessoas que falaram pra mim: “Vou sair do trabalho na loja de discos e vou viajar, você quer ficar no meu lugar?” Quero. Num momento muito trágico da minha vida, de família, junto do êxodo do interior para cá, o paraíso virou miragem e eu me agarrei nos discos. As letras de Antonio Carlos & Jocafi, que eu botava enquanto arrumava a loja, tinham sempre uma mensagem muito forte, que eu achava que era para mim. Foi-se construindo dentro de mim uma identidade.
E você conhece a sua composição racial individual?
Não sei, sei que minha mãe é índia de Aracaju e meu pai é preto de Feira de Santana. Há muito tempo, eu só falava de meu pai, não falava de minha mãe. Minha mãe é índia e eu falava só do povo preto, de meu pai, do sofrimento, das pessoas que trabalhavam quebrando pedra pra fazer estrada. E minha mãe sempre olhando pra mim. Hoje, entendo de uma forma muito forte o valor da matriarca, da minha mãe ali com o olhinho puxado e das irmãs dela todas que vivem como se ainda tivessem a herança da tribo, por mais que não tenham convivido nisso. Que nem suas tataravós, elas vivem dessa forma, numa espécie de circo, uma oca familiar, eu acho isso muito bonito. Da mesma forma, eu estava falando da música de Salvador e esquecendo a do interior. Sempre critiquei a apropriação que a música soteropolitana faz em relação à música baiana. E, de repente, acordo e falo: “sou sul-americano de Feira de Santana”, e aí começo a me inteirar melhor da minha identidade. Fico com tudo dentro de mim e fico amando tudo. Procuro não odiar nenhum traço que vejo dentro, no espelho. Essa máquina do ódio é um ímã. É perceptível. Se você bota uma planta para crescer demora muito tempo, mas para cortar é rapidinho. Principalmente agora que para curar se fala de quarentena, processos demorados, a gente tem que respeitar o tempo, senão vai perder todo o trabalho.
Foi inesquecível o BaianaSystem na avenida 9 de Julho, em São Paulo, em 2018, você pedindo silêncio para os foliões quando o trio passava ao lado do hospital. Neste ano, os hospitais ficaram em silêncio, lotados de gente com coronavírus…
Eu falava “levanta a cabeça, num ponto futuro alguma coisa vai melhorar”, alguma coisa assim. Ficava cantando “tem mão com mão, pé com pé”, e hoje em dia não tem mão com mão. Pé com pé, caminhar junto, é distanciamento. Boca com boca, nem pensar. Naquele Carnaval, a gente estava passando em frente a um hospital e as pessoas fizeram silêncio, passavam e levantavam mão passando energia para quem estava doente lá dentro. Nem tinha pandemia, nem tinha corona. Foi muito simbólico, muito forte.
Assista abaixo ao clipe de “Nauliza”:
Nauliza – BaianaSystem Feat. Makaveli e Jay Mita
www.youtube.com
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