Dança “viral” bate recordes e vira alvo de debates no TikTok
Com artistas criando músicas e coreografias especiais para a rede social, autoria de passos está no centro das discussões.
Desde que os tempos são tempos as pessoas dançam. Elas se movem em todas as culturas e lugares. Os egípcios dançavam para os deuses, em rituais como casamento e funerais. Os indígenas dançam para se conectar com as forças da natureza e com a ancestralidade. No candomblé não é diferente, dançam para deixar-se possuir pelas divindades e para enaltecê-las, para se conectar com a força protetora e divina. Dançamos quando estamos felizes e quando somos atravessados pela tristeza, angústia, raiva. Toda essa movida faz parte do existir.
Em tempos de distanciamento social, dançamos para esquecer e lembrar. Esquecer das dores e tragédias de um mundo em colapso e lembrar que estamos vivos. Dançar se tornou remédio potente para equilibrar o turbilhão de sentimentos e pensamentos antagônicos que nos acometem num mesmo dia. Dançar virou também uma forma de entretenimento cultural. No TikTok, rede social que só no Brasil teve um crescimento de 300% em 2020, vídeos com coreografias são o principal conteúdo compartilhado e com maior potencial de viralização.
Com mais de 1 bilhão de usuários, o TikTok desbancou outros gigantes das mídias sociais e está cada vez mais presente na vida das pessoas. Trata-se de uma rede em que é possível criar microvídeos de 15 segundos a 1 minuto de duração, editados ali mesmo e de maneira extremamente fácil. Em tempo recorde, o aplicativo conquistou o coração de jovens e adolescentes, transformando-se em um fenômeno global. Calcula-se que 66% dos perfis ali pertençam a pessoas com menos de 30 anos, de acordo com o site The Next Web.
“Dança é o que realmente chama a atenção da galera. É o que faz as pessoas reunirem os amigos e familiares para dançar juntos, é o que realmente viraliza”, diz a cantora Angel. A carioca de 16 anos se tornou hit da internet após sua canção Eu Nunca, Eu Já atingir o primeiro lugar no ranking brasileiro de músicas mais compartilhadas no TikTok. “Eu já tinha um certo reconhecimento pelo lançamento do EP Be Free, mas depois que as pessoas começaram a usar Eu Nunca, Eu Já no TikTok, muitas coisas começaram a acontecer. Muita gente que nem sabia da minha existência passou a me acompanhar. Até a Preta Gil e a Lexa fizeram vídeos com a dancinha! Eu amei!”
Em março deste ano, o rapper canadense Drake lançou Toosie Slide com uma coreografia 100% moldada aos formatos do app. “Ele já soltou a música com um challenge mega fácil para atingir um grande público”, diz a multiartista Luanna Exner, 26. Challenge é o nome dado aos desafios de dança na rede. A ideia é que os passos e movimentos sejam copiados pelo maior número de pessoas.
“O TikTok é muito rápido, quando você vê, já tem um monte de gente te dublando ou fazendo os passinhos. E não são só os fãs. As pessoas vêem no perfil dos amigos e vão gravando. É uma ótima forma de artistas terem suas músicas circulando”, diz MC Rebecca, 21, usuária assídua da rede social, com 625 mil seguidores. “Soltei alguns vídeos com pedaços de coreografias e valeu muito a pena. Ainda não criei nada especificamente voltado para o app, mas por que não? Super faria! Aliás, olha a ideia vindo aqui com essa entrevista!”, brinca.
Segundo Renata Prado, 29, idealizadora do projeto Academia do Funk, dançarina, coreógrafa e professora de funk, as danças do TikTok são um facilitador para a expansão e visibilidade das produções artísticas. “A possibilidade de criar e editar vídeos é muito boa para a galera da dança que usa as redes sociais para alcançar visibilidade dentro do campo artístico”, opina ela.
MAS QUEM LEVA O CRÉDITO?
O caminho, contudo, não é sem obstáculos. Jalaiah Harmon (@jalaiahharmon) é uma jovem bailarina estadunidense negra de 14 anos. Ela é a criadora de uma das coreografias mais famosas no TikTok, a Renegade. Após publicar um vídeo na sua conta, seus passos chegaram a perfis de pessoas com um enorme número de seguidores. Sua dança viralizou, mas seu nome não. “Fiquei feliz quando vi minha dança por todo o lado, mas eu queria crédito por isso. Acho que poderia ter ganhado dinheiro, poderia ter ficado famosa, ser notada. Nada disso aconteceu porque ninguém sabe que eu criei aqueles movimentos”, disse ela, em entrevista ao jornal The New York Times.
No seu lugar, quem ganhou reconhecimento com a Renegade foi a Charli D’Amelio, uma das tiktokers mais famosas do mundo, com 53,7 milhões de seguidores.
“A questão dos direitos autorais é bem complexa para quem trabalha com dança e utiliza as redes sociais como meio de divulgação”, fala Félix Pimenta, 30, dançarino, performer, pesquisador, professor e coreógrafo de danças urbanas. “Coreógrafes não têm a mesma visibilidade e alcance que cantores. Então, seria interessante que os apps criassem uma formato de compartilhamento dos filtros com a tag ou @ de quem criou aquilo.”
Refletir sobre o apagamento sistemático da produção intelectual negra é fundamental. Apagar produções negras é reforçar as violências contra essa população já vitimada pelo sistema de estruturas racistas e machistas. Creditar nesse e em todos os casos é valorizar e diminuir o abismo de violências e opressão. Enaltecer as epistemologias negras é ter a consciência da origem das danças que se tornam virais na internet. O jazz foi originalmente criado pela população negra, assim como hip-hop e outros estilos que servem de base para criação de vídeos compartilhados digitalmente.
“Ao ver que muitos conteúdos de humor e danças de pessoas negras, periféricas, LGBTQIA+ são replicados por pessoas brancas, de classe média e sem o devido crédito, vemos apps como o TikTok potencializarem o apagamento de criadores, sistematicamente excluídos pelos algoritmos”, afirma Flip Couto, 36, performer, curador, produtor cultural e idealizador da Festa Amem.
Em 16 de março deste ano, O The Intercept Brasil divulgou uma reportagem com documentos internos da moderação do Tiktok. Neles haviam orientações sobre o tipo de conteúdo a ser destacado naquela rede social. Postagens ideologicamente indesejáveis, feitas por usuário “pobre” e “pouco atraente” deveriam ser barradas. Bem como aquelas que exibiam pessoas com falhas congênitas e inevitáveis: “forma corporal anormal”, “aparência facial feia”, “barriga de cerveja óbvia”, “muitas rugas”, “problemas nos olhos” e muitas outras características que o app classifica como de “baixa qualidade”. Vídeos em que “o ambiente de gravação é surrado ou está em ruínas”, incluindo mas “não limitado a favelas, campos rurais”, também não deveriam ser favorecidos pelo algoritmo. Já “cenários rurais naturalmente bonitos podem ser preservados”, diz o documento, que expõe o reflexo de uma sociedade racista, elitista, machista, misógina extremamente preconceituosa.
Após a publicação da matéria do The Intercept Brasil, a empresa responsável pelo aplicativo soltou uma nota sobre a moderação do TikTok: “Elas representavam uma tentativa incisiva de impedir o bullying. Reconhecemos que essa não foi a abordagem correta e a encerramos.”
A coreógrafa e bailarina Clarice Lima, 36, acredita que problema está em como a dança é vista: para si mesmo ou para os outros. “A dança para o outro, a que mais vemos nas redes sociais, é problemática, pois traz questões sobre padrões de beleza e também do movimento”, explica ela. “Se falamos do corpo da mulher nessas danças, trazemos para dentro delas todas as pressões impostas pela sociedade ao corpo feminino: se a mulher tem que ser bonita a dança também tem que ser bonita, se a mulher tem que ser sensual a dança tem que ser sensual. A questão é a dança e o corpo da mulher estarem a serviço do outro (homem/sociedade) e não dela mesma”, conclui.
Como escreveu a cantora Inaycira Falcão dos Santos em Dança E Pluralidade Cultural: Corpo e Ancestralidade, “o corpo como construção cultural é portador de emoções, sensibilidades, sentido ético-estético resultante das relações históricas e sociais. Estes sentidos definem a forma do homem ser, pensar e movimentar-se. O corpo é um portal que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória”.
E se Pina Bausch nunca fez tão sentido como agora – “dance, dance… senão estamos perdidos” –, está mais do que na hora de dançar realmente consciente e livremente. Seja no TikTok, na sala de casa, ou sozinha no quarto, como também disse Pina, “dançar é uma forma de amar”.
Clarice Braga Barbosa Lima, coreógrafa e bailarina.
“Acho tudo que faz o corpo se mover incrível. Tudo que faz você tirar a bunda da cadeira deve ser incentivado, principalmente agora que a direita conservadora também quer domesticar os corpos. A arte é muito importante para a vida, para o desenvolvimento cognitivo e para o fortalecimento do pensamento crítico. Porém, é importante entender e separar a arte, que deve ser para todos, do artista, que é o trabalhador da arte, aquele que dedica sua formação a isso, que paga as contas com isso.”
Flip Couto, idealizador da Festa Amem, intérprete e criador na cia. Sansacroma e membro da House of Zion.
“Ao ver que muitos conteúdos de humor e danças de pessoas negras, periféricas, LGBTQIA+ são replicados por pessoas brancas, de classe média e sem o devido crédito, vemos apps como o TikTok potencializarem o apagamento de criadores, sistematicamente excluídos pelos algoritmos.”
Félix Pimenta, dançarino, performer, pesquisador, professor e coreógrafo de danças urbanas. É membro da IHOW- Chapter Brasil, Pai da House of Zion – Chapter Brasil, pai da Kiki Casa de Pimentas e membro do Coletivo Amem.
“Sei que tem possibilitado outras formas de interação e promoção de danças populares atualmente. Grande exemplo é o brega Funk que sempre tem algum vídeo bombando no app. Talvez, seja mais uma possibilidade para as pessoas se divertirem e proporem outras leituras sobre as formas de dança. Óbvio, como todo movimento comercial, as pessoas precisam se atentar a alguns pontos, como nomenclaturas erradas ou créditos indevidos.”
Djully Ferreira, diretora criativa, estudante de dança e práticas corporais.
“É gostoso acompanhar como as pessoas utilizam a dança como forma de expressão e comunicação corporal nas mídias sociais. É bom ver as pessoas compartilhando desafios que as ajudam ter um autoconhecimento do corpo por meio de uma brincadeira em que a perfeição não é exigida.”
Cristian Duarte, bailarino e coreógrafo formado pela Performing Arts, Research and Training Studios em Bruxelas.
“O que eu mais vejo nestes aplicativos nem consigo chamar de coreografia. São piadas feitas com movimento. Trechos de danças populares relacionadas à ‘cultura da pélvis’, na maioria dos casos relacionadas às letras das músicas ou aos seus contextos. Existe muito pouco espaço para outras subjetividades.”
Camila de Oliveira Ribeiro, bailarina do balé da cidade de São Paulo.
“Através dos desafios de danças, as pessoas acabam perdendo a vergonha de se movimentarem. Vejo o app mais como pílulas de ideias, mas sem nenhum processo profundo de pesquisa. Não são coreografias completas.”
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