Don L: “Somos seres políticos, queiramos ou não”

Eleito esta semana artista de 2021 pela APCA, o rapper fala sobre a segunda parte da trilogia Roteiro pra Aïnouz, um disco político, que passeia por diversos subgêneros atuais e reimagina o futuro.


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Foto: Bel Gandolfo



Lançado em novembro do ano passado, o aguardado Roteiro pra Aïnouz, Vol. 2 deu sequência à trilogia reversa iniciada por Don L em 2017, que já contava com o Vol.3. O rapper inspirou-se na obra do cineasta Karim Aïnouz, de filmes como O céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), para a produção dessa série. E o novo álbum deu a ele nesta semana o prêmio de Artista de 2021 pela Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA).

Roteiro pra Aïnouz, Vol. 2 é um disco político, que dança sob inúmeros gêneros e referências – rap, trap, drill, funk, soul e MPB. É um manifesto por um projeto de sociedade pautada pelo coletivo, e não pelo indivíduo. “Pensando no atual momento, queria que fosse um disco bastante político. Tinham muitas coisas que precisavam ser ditas”, conta à ELLE.

O resgate e a valorização da memória aparece como fio condutor do disco. O legado de luta deixado por líderes revolucionários aparece em cada linha de RPA2. Marielle Franco e Marighella são homenageados no disco, assim como Mano Brown e Sabotage. “Como já estava fazendo um disco cheio de referências a lideranças e lutadores pela liberdade, guerrilheiros e revolucionários, queria colocar referências musicais e fazer reverência a alguns artistas também.” Vol 2. traz participações de Djonga, Tasha & Tracie, Rael, Daniel Ganjaman, Mahmundi, entre outros, que somam forças com Don L na construção de uma utopia. Entre rimas e melodias, ele mostra a urgência de pensar um novo mundo, a partir da coletividade.

 

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Foto: Bel Gandolfo


A trajetória de Don L começou em 2005 com o grupo cearense Costa a costa, com o qual lançou a mixtape Dinheiro, sexo, drogas e violência de costa a costa (2007), sucesso na cena de rap na época. O capricorniano de 40 anos, que nasceu em Brasília, cresceu em Fortaleza (CE) e chegou à capital paulista aos 36, sabe bem do “peso da responsa” de ser um elogiado nome da cena nacional, conhecido como “o favorito dos seus favoritos”. Na entrevista a seguir, o rapper fala dessa alcunha que ele mesmo lançou, de saúde mental e do novo álbum:

Como foi a construção desse disco, em que você transita entre passado e futuro, depois de um hiato de quatro anos sem lançar um trabalho.
Tem um roteiro pré-definido. Você tem que ressignificar seu passado para os caminhos para onde está indo fazerem sentido. (O álbum) Está falando de um caminho para o futuro, de uma nova trilha. Pensando no atual momento, queria que fosse um disco bastante político. Tinham muitas coisas que precisavam ser ditas e eu comecei a pensar em como fazer isso. Foi aí que encontrei esse caminho de pensar uma utopia de guerrilha, de levante revolucionário que viesse de um passado. O drama e todas as nossas questões coletivas brasileiras que vêm desse passado colonial não foram interrompidos em nenhum momento.

Como foi fazer um disco tão plural do ponto de vista de gêneros musicais?
Eu queria passear por todos os subgêneros que estão rolando agora. Tenho facilidade de me colocar em todos esses estilos e queria dar a minha cara, tanto na rima como na produção. Então, quando eu faço um trap, não é igual a um trap comum. Quis colocar minha assinatura no bagulho! Esse sample do Cidinho e Doca (no disco), “Rap das armas”, é um clássico do funk, do rap e hip hop brasileiro, saca? A mesma coisa para “Us mano e as mina”, do Xis, que é um hit há muitos anos.

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Foto: Bel Gandolfo

Na música “Enquanto recomeça”, você narra uma cena íntima com uma figura politica, Lenin. Pensando nisso, você acredita que o pessoal é político?
Acredito que sim! Somos seres políticos, queiramos ou não. Então, a gente está toda hora fazendo política. A questão é se você se dá conta disso ou não. Quis fazer uma música de trap, que a galera chamou de trap putaria. Quis falar de sexo dentro de um contexto político, mesmo. É aquele meme: “Tem como conciliar tesão e luta de classes?”. Eu quis responder o meme. Tá aí (risos).

Como surgiu a frase “o rapper favorito do seu rapper favorito”. Como você se sente nesse lugar?
Essa frase eu mesmo falei no Caro vapor (mixtape de Don L lançada em 2013): “Se eu não for seu rapper favorito, provavelmente sou o favorito do seu favorito”. Todo mundo me conhecia, e vários deles falavam que eu era a principal influência deles, que eu era o rapper favorito deles. Acontecia um bagulho que eu ficava muito puto na época: ninguém me citava nas entrevistas, ninguém lembrava de mim na hora das premiações. O cara falava isso, mas quando ia responder uma entrevista sobre quais eram suas principais influências, dizia uns três ou quatro grupos do Sudeste e ninguém falava meu nome, saca? E foi aí que falei na mixtape. Isso bateu porque todo mundo sabia que era verdade. Quando disse isso, todo mundo concordou, virou jargão, “o favorito do seu favorito” e se refere a mim. Eu precisava muito fazer isso. Se não fosse eu, não seria ninguém, entendeu?

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Na sua música, você fala muito do coletivo e da importância social que isso representa. O que significa essa coletividade para você?
A gente está vivendo em um mundo de extremo individualismo e eu me coloquei o desafio de dizer “não”, de dizer que, na verdade, isso que a gente está vivendo, nossos dramas, são coletivos. Há esse surto de doenças mentais e as pessoas ficam achando que é culpa delas, que não são boas o suficiente, quando isso é um fenômeno coletivo. “Você tem que superar isso, tome um remedinho aqui pra conseguir dormir e siga sua vida. Continue trabalhando 13 horas, sem perspectiva de futuro.” É o foco no indivíduo: “Vou fazer um post dessa festa e isso vai ser bom pra mim, vai gerar seguidores”. E tudo se torna trabalho, autopromoção. Isso é muito desmobilizante. Não temos uma vida em comunidade, a gente vive numa cidade que não valoriza espaços de convivência, trabalha demais e, mesmo quando a gente está se divertindo, está trabalhando. São questões que só podem ser resolvidas pensando no coletivo.

Você fala muito sobre construir um novo mundo possível. Como não perder a ternura diante de um cenário tão complexo?
Eu acredito na arte. Acho que a cultura é uma parte muito visceral do brasileiro. A gente tem sido endurecido pelas condições de vida que somos obrigados a enfrentar, mas a gente tem samba, né? Tem nossas praias, nossa natureza, nossos ancestrais negros, indígenas, trabalhadores que vieram antes de nós e deixaram muita sabedoria e muitas tecnologias de vida pra gente não perder a ternura, pra gente ser feliz agora.

Você cita a ELLE em uma rima de “A todo vapor”, faixa do novo disco. Como isso aconteceu?
Quando você alcança um objetivo, vê que não era tudo o que imaginava, quer mais. E, ao mesmo tempo, queria ter mais gente com você. É sobre isso a rima: “Tô na revista ELLE, um monte de jornalista me entrevistando e fotografando, mas eu não consigo parar de pensar nos meus amigos que não puderam vir comigo”. E é aquilo que eu falo na música: “Juro que evitei fechar a cara, mas vieram flashes”.

Don L em cinco linhas:
Sua música preferida: “‘Vida’, de Chico Buarque”.
Seu disco predileto:Sobrevivendo no inferno (Racionais MC’s) é difícil de ser superado”.
A música preferida da sua discografia: “Se perguntar daqui a duas horas, já mudei, mas eu gosto de ‘Doce dose’, do Caro vapor”.
Uma saudade: “De Fortal (como ele chama Fortaleza). É uma constante, sinto todo dia”.
Um amor: “Amar o próprio ato de amar, ser essa pessoa que está disposta a amar”.

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