“É difícil não amar o Brasil”, diz Carla Bruni

Em entrevista exclusiva, Carla Bruni comenta sua relação com o país, fala sobre seu novo álbum e reflete sobre racismo, redes sociais, sexismo, homofobia e feminismo.


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Ela é uma daquelas mulheres que vivem várias vidas em apenas uma. Supermodelo, compositora, cantora, primeira-dama francesa, ativista, atriz, mãe. Na impossibilidade de definir uma mulher assim, o nome de Carla Bruni fala por si. E batiza seu novo álbum, Carla Bruni, o sexto de uma bem-sucedida carreira na música. Nesse trabalho autoral, ela dribla os rótulos e busca o coração das pessoas com melodias clássicas e letras com mensagens universais, sem nenhuma pretensão de buscar originalidade, apenas genuína emoção – a mesma que a trouxe até onde ela está.

Nascida em Turim, norte da Itália, Carla mudou-se para a França ainda criança, com a família. Seguindo o conselho da então namorada do seu irmão, procurou uma agência de modelos aos 19 anos e, meses depois, já seria a estrela da GUESS em campanha internacional. Com sua personalidade assertiva, livre e atrevida, passou de modelo a supermodelo, fundindo sua história com a de grandes casas como Yves Saint Laurent, Versace, Dior, Chanel, Prada e Dolce & Gabbana, em grandes campanhas e desfiles. Também ilustrou diversos momentos icônicos na moda como o último desfile da Givenchy com seu fundador, Hubert de Givenchy, e o show comemorativo pelos 40 anos de atuação na moda de Yves Saint Laurent na final da Copa do Mundo de 1998. Mas não era pela moda que Carla ansiava.

Em 1997, deixou as passarelas para focar no seu grande sonho: a música. Quelqu’un m’a dit, o álbum de estreia lançado em 2002, vendeu mais de 2 milhões de cópias e a tornou um dos maiores nomes da música francesa da sua geração. Depois de lançar o segundo trabalho, No Promises, em 2007, mais uma reviravolta na vida pública viria: Carla conheceu o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, com quem se casaria no ano seguinte, tornando-se primeira-dama do país.

Nos quatro anos em que passou no cargo, Carla se destacou não apenas pela elegância de seus looks Dior, assinados por John Galliano, que costumava vestir: revelou-se uma atuante primeira-dama, elogiada por sua antecessora, Bernadette Chirac. Com a Fundação Carla Bruni-Sarkozy, focou seu trabalho na erradicação do analfabetismo e no apoio à cultura na França, além de continuar a abraçar projetos referentes à conscientização e ao combate ao vírus HIV no país e no mundo com o Fundo Global.

Mas enganou-se quem achou que Carla iria abrir mão da carreira: ainda enquanto primeira-dama, lançou o terceiro álbum Comme si de rien n’était, em 2008, aceitou o convite de Woody Allen para atuar em 2010 no filme vencedor do Oscar Meia-noite em Paris, e começou a escrever o quarto álbum Little French Songs. Depois do Élysée, Carla iniciou sua primeira turnê mundial em 2013 e, quatro anos depois, em 2017, seguiu em segundo giro de shows pelo mundo, sempre com a produção musical de Alain Lahana, que já trabalhou com David Bowie e atua com nomes como Patti Smith e Iggy Pop. Em turnê, ela visitou países como Grécia, Israel, Turquia, Coreia do Sul, EUA, Líbano, Alemanha, Espanha e Brasil, onde cantou em São Paulo e Porto Alegre, em 2015.

Em contraponto ao penúltimo álbum, French Touch, gravado em inglês com releituras de clássicos como “Moon River”, Carla nos oferece agora um álbum inédito majoritariamente em francês. O trabalho ainda inclui três canções em inglês, espanhol e italiano – esta última, “Voglio L’amore”, em colaboração com a irmã Valeria Bruni Tedeschi, atriz e cineasta.

De Paris, em entrevista exclusiva para a ELLE Brasil, por telefone, Carla deu mais detalhes sobre o novo álbum, falou sobre feminismo e homofobia e também sobre a sua relação com o Brasil.

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No palco: depois de deixar o Palais de l’Élysée, Carla realizou duas turnês mundiais. Foto Yann Orhan / Slo Slo

Carla, você tem uma longa e íntima história com a ELLE. No ano 2000, por exemplo, você falou à ELLE americana que estava escrevendo seu primeiro álbum. Artisticamente, o que mudou e o que permaneceu em você 20 anos depois?

É uma boa pergunta. O engraçado sobre o tempo é que as coisas mudam mas ao mesmo tempo permanecem iguais, especialmente a parte criativa. Para mim, o processo criativo é como uma eterna criança. Eu não acredito em maturidade na criação. Acredito que, quando eu escrevo, ou qualquer pessoa cria alguma coisa pintando, compondo, escrevendo, é algo oriundo da infância. Então, o tempo não muda a música, sabe? O que muda é nossa vida. Não muda o processo criativo.

Você se sente a mesma?

Quando escrevo, sim. É algo que faço desde criança.

Também no ano 2000, dois anos antes de lançar seu primeiro álbum, seis músicas suas foram gravadas pelo aclamado músico e cantor francês Julien Clerc. Depois de muitas outras colaborações, ele retorna no seu sexto álbum com a canção “Le Garçon Triste”. Qual a importância de Julien Clerc na sua carreira musical?

Muito importante! Como você disse, foram canções gravadas antes do meu primeiro álbum. Essas seis canções foram escritas quando eu ainda estava trabalhando como modelo, e Julien Clerc é um grande compositor e intérprete que sempre escolheu muito bem ótimos colaboradores. Então, para mim, ter a oportunidade de trabalhar com ele foi uma grande honra, entende o que quero dizer?

Claro!

Como uma iniciante, foi uma imensa honra poder escrever as canções deste álbum chamado Si J’etais Elle. Ele me deu uma grande credibilidade. As pessoas pensavam que eu era uma modelo que, de repente, quis me tornar uma cantora. E, na verdade, acabei me tornando a compositora de outra pessoa. Foi uma ótima maneira de ingressar na música porque eu tinha uma imagem muito diferente como modelo.

Aliás, a filha de Julien Clerc, Vanille, lançou um álbum ano passado e tem dito à imprensa que você é uma grande inspiração para ela. Você sabia?

Oh! Vanille! Que gentileza! Eu amo Vanille, adoro o trabalho dela. Acho que há algo muito simples na forma em que se faz música com piano e violão. Talvez eu seja uma inspiração para Vanille pela minha simplicidade. Eu nunca trabalhei com ela, mas já trabalhei bastante com Julien Clerc.

As canções “Le Garçon Triste” e “Le Petit Guépard”, do novo álbum, de algum modo falam sobre a fragilidade masculina. O mundo tem avançado a respeito do machismo e do sexismo?

Eu acho que o mundo tem mudado. Pelo menos, espero que sim. Acho que força e fragilidade caminham juntas. Você pode ter muita força e ter muitas fragilidades. Acredito que seja uma mistura. Todos nós temos muitos tons, muitas cores.

Você costuma ser cobrada por um discurso feminista, embora você tenha tido ao longo da sua vida pública uma postura feminista. Vivemos um período em que o discurso é mais importante que a atitude? O que é feminismo para você?

Feminismo é, definitivamente, algo relacionado aos fatos. Claro que as mulheres devem lutar por cada um de seus direitos. Mulheres não podiam votar, não podiam ter uma conta no banco. Só podiam se fossem casadas. Uma loucura! Então, o feminismo tem sido uma longa e permanente guerra que a mulher tem conduzido por muito tempo, ainda hoje, por exemplo, com o movimento “Me Too”. Ao longo dos anos, o feminismo se transforma, com diferentes líderes, mas com o mesmo objetivo que é a equidade.

Carla Bruni com seu violao

A capa do novo álbum.

No seu novo álbum, pela primeira vez na sua discografia, você trabalha com Jeremy Reynolds em duas faixas: uma escrita por você (“Un Secret”) e outra com o poema de Charles Baudelaire (“La Mort Des Amants”), ambas com música de Reynolds. Gostaria de falar sobre elas, mas antes queria saber como foi trabalhar com ele. Como surgiu a ideia da colaboração?

Eu realmente gostei de trabalhar com ele. Nós temos trabalhado juntos porque ele é um grande preparador vocal, um grande coach, um dos melhores que já encontrei. Ele também é um ótimo músico e compositor, com um ouvido incrível. Muito talentoso! Espontaneamente, eu o quis como colaborador em “Un Secret”. Eu não estava conseguindo fazer a música. Eu fiz uma ou duas, mas não estava muito inspirada por alguma razão, não encontrava a música que me desse emoção o suficiente para a letra. Então, mandei para ele, perguntei se ele gostaria de tentar e recebi a melodia. Eu amei!

Em “La Mort Des Amants” você retoma sua paixão por poemas (a letra é um poema de Charles Baudelaire). Você já lançou um álbum inteiro com poemas musicados por você, “No Promises”. Por que a escolha deste em especial para o novo álbum?

Eu amo esse poema, sempre quis gravá-lo. Mas Léo Ferré já tinha feito uma música, belíssima. Ele é muito talentoso em musicar poemas. Mas mesmo assim eu achei que Jeremy fez uma melodia muito pura e poética.

Muito especulou-se pela imprensa que “Un secret” é uma canção sobre o segredo que sua mãe guardou e foi revelado por seu pai antes dele morrer, que, na verdade, seu pai biológico não era ele…

Não é exatamente sobre isso…

De todo modo, relaciona-se bem com o assunto. Esse é um assunto bem resolvido na sua vida? Você já afirmou que sabia antes de lhe contarem… Como?

De forma subconsciente, talvez. Eu sentia algo. Mas, na verdade, me sinto muito sortuda em ter dois pais. É algo que me trouxe felicidade. Minha relação com meu pai biológico é muito boa.

Ele mora no Brasil e você tem uma irmã brasileira. Vocês são próximas? É algo que lhe faz sentir mais próxima do Brasil?

Somos muito próximas! Eu amo o Brasil no geral, mas o fato do meu pai morar aí, da sua vida ser no Brasil com sua esposa, com certeza me faz amar o Brasil ainda mais. Na verdade, é difícil não amar o Brasil. O país é muito especial, as pessoas são tão gentis! Há algo no Brasil que me lembra muito a Itália, algo muito caloroso e humano. Claro que estou generalizando, sei que há pessoas ruins como em todo país, mas para nós, que visitamos o Brasil, é irresistível ver como os brasileiros são, o quão abertos, calorosos e generosos são. Generosidade não tem nada a ver com o que você tem, é sobre o que você dá. O povo brasileiro é muito generoso.

Em 2018 você gravou “Insensatez” para um dueto com Mart’nália, que compõe o álbum dela em tributo a Vinícius de Moraes. O produtor Celso Fonseca foi até Paris gravar com você. Quais lembranças você tem desse trabalho especificamente?

Que prazer, meu Deus! Bem, primeiramente ele é um grande músico, eu sou uma grande fã. Ele é tão delicado, tão talentoso. Foi uma honra trabalhar com ele no estúdio. Foi muito fácil, trabalhamos por duas horas com grande prazer do início ao fim. Eu gostaria de ter trabalhado mais com ele. Nós até tentamos, mas estávamos tão ocupados que foi difícil permanecer em contato tempo suficiente para produzir algo.

Você também cantou “Eu Sei Que Vou Te Amar”, em italiano, e “Águas de Março”, em francês, nos seus dois shows realizados no Brasil em 2015. Você já pensou em gravar alguma canção brasileira?

Todas as músicas brasileiras desse período, da Bossa Nova, são inspiradoras para mim. O dueto dessa canção (Elis Regina e Tom Jobim) é cantado de forma tão especial. Eu ouvia muito Elis Regina quando era garota e me sentia muito conectada a ela com sua forma delicada de cantar e pronunciar as palavras. Há algo muito elegante na forma que ela canta. É uma grande inspiração para mim.

Recentemente o fotógrafo francês Jean-Marie Périer disse que você, como primeira-dama, foi a responsável pelo fortalecimento da associação Le Refuge, que protege jovens LGBT+ vulneráveis na França. De fato, um ano após o contato que você teve com a então ministra Nadine Morano sobre o assunto, a associação foi reconhecida como uma ação de utilidade pública na França. A homofobia é um assunto sério na França, no Brasil e no mundo. Como uma artista com grande popularidade na comunidade LGBT+, você se sente próxima desse assunto?

Sim, é um tema muito próximo a mim. Homofobia me dá nojo. Muito nojo. Quando Jean-Marie Périer me ligou para falar sobre a associação Le Refuge, havia um ótimo trabalho sendo feito e claro que eu imediatamente ofereci um encontro para conhecê-los. Então, liguei para a ministra que estava no comando da situação no momento. Era o mínimo que eu poderia fazer. Eu sempre apoiei essa causa. É uma causa muito importante que não está encerrada, embora eu ache que tenhamos avançado nesse tópico. As pessoas têm aceitado mais as diferenças.

Carla Bruni fala sobre temas sociais

Fortalecer a associação Le Refuge, que protege jovens LGBT+ vulneráveis, foi uma das ações da cantora quando era primeira-dama: “Homofobia me dá nojo”.Foto Yann Orhan / Slo Slo

Enquanto era primeira-dama, você lançou o álbum Comme Si De Rien N’était, com a canção “Salut Marin”, escrita sobre seu irmão Virginio, que faleceu após longa batalha contra o vírus HIV. No mesmo ano do lançamento do álbum, você se tornou embaixadora pela proteção das mães e crianças contra HIV/AIDS do Fundo Global, com intensa agenda a respeito do tema. Como foi essa experiência? Como foi a sua visita ao Benin com Melinda Gates, por exemplo?

Foi uma experiência muito importante para mim ter a oportunidade de trabalhar com o Fundo Global, porque eles fazem um trabalho incrível. Para mim, a melhor e mais interessante parte de estar ao lado do meu marido no Élysée foi a de poder trabalhar em iniciativas como essa. Nós fomos ao Benin com Melinda Gates, foi uma viagem muito interessante. Melinda estava conosco por causa da Fundação Bill e Melinda Gates, uma das primeiras iniciativas privadas a apoiar o Fundo Global. Visitamos um hospital gerido por irmãs carmelitas. Eu percebi que a África era amparada pelas mulheres, pela coragem das mulheres. Elas mantêm suas famílias, vilas, cidades e países unidos. Foi muito interessante ver o trabalho que o Fundo Global faz na maioria dos países.

Em uma entrevista recente para Naomi Campbell, você disse que ela lutou muito em relação à questão racial, e ela disse que você a ajudou muito. Em uma outra entrevista, em 2017, à revista Numéro, perguntaram a você se Naomi era a mais cruel dentre as supermodelos, e você disse “Naomi não é má, ela defende sua pele, e se você estivesse no lugar dela faria o mesmo”. Esse ano foi um ano intenso a respeito do racismo. Como uma artista branca e de grande visibilidade pode ajudar nessa questão?

Bem, não sei o que eu poderia fazer além de ser uma apoiadora de todo movimento que tenha por objetivo erradicar o racismo. Não é uma questão fácil. É uma luta constante, contínua. Estou sempre apoiando essa questão.

Ainda hoje as supermodelos são celebradas como mulheres cheias de personalidade, que lutaram pela identidade feminina na indústria da moda, quando as modelos mal eram creditadas, eram como manequins em lojas. Atualmente, várias modelos de destaque, algumas bastante jovens, têm milhões de seguidores nas redes sociais, mas parecem não ter muito a dizer. Estamos no caminho inverso? O que aconteceu?

Não sei… Acho que talvez seja algo relacionado às redes sociais. Eu diria que as redes sociais são para crianças, para a juventude. Então, eu entendo a razão pela qual as estrelas das redes sociais, como Instagram e TikTok, são muito novas, porque o público é muito jovem. Claro que há um público mais velho, mas a verdade é que não corresponde a esta geração. Pessoas como eu, por exemplo, têm redes sociais para trabalhar, entende? Se eu não fosse uma figura pública, eu não teria. O público é muito jovem, então, entendo que os ídolos sejam muito novos, porque há uma identificação. Daí a questão. Há pessoas mais velhas que atuam nas redes sociais com muita intimidade, mas não se comparam com essas crianças que têm toda uma comunidade ao seu redor, uma outra geração.

Gostaria de encerrar com uma pergunta sobre o futuro. Muitos artistas têm feito shows online pela impossibilidade de cantar em grandes eventos devido à pandemia. Há rumores de que você também fará. É verdade?

Eu adoraria fazer shows online, embora não seja a pessoa mais organizada para isso. Não tenho muitas habilidades para me organizar… Mas eu adoraria fazer shows online. Vamos ver…

Styling: Clément Lomellini. Cabelo: Marion Anée. Maquiagem: Mayia Alleaume.

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