Emilio Fraia fala sobre Sebastopol, seu livro que viaja enquanto ele quarentena
Nossa colunista Vivian Whiteman conversa por chat com o escritor sobre seu livro que, depois de edições em inglês, chega agora à Noruega e Suécia, e ganhará adaptação para o cinema.
Sebastopol é longe daqui. Autônoma, mas disputada entre Ucrânia e Rússia. Dizem que Crônicas de Sebastopol, que tem a ver com a Guerra da Crimeia, é o conto de Tolstói que fez semente para Guerra e Paz. Sebastopol é uma luta. Sebastopol é também um livro de contos que tem a ver com Tolstói em algum lugar dessa coisa tão difícil de definir, a inspiração. Um livro brasileiro de nascença. Ele que lute.
Emilio Fraia é o brasileiro que escreveu Sebastopol. Escritor, jornalista, editor, ele mora em São Paulo por enquanto. Logo, no último ano e meio, não pôde sair muito de casa. Já Sebastopol tirou onda, foi bem longe. Estados Unidos, Inglaterra, logo mais na Suécia e Nouruega. As traduções espalham a palavra por aí, páginas que não são gente nem bicho e, por isso, não têm medo de morrer.
Sebastopol também está em um monte de revistas e publicações especializadas. Vários países, outros idiomas, todo mundo parece gostar muito desse livro misterioso. Ele recebe muitas interpretações, mas nada que alcance um encaixe perfeito, existe algo nesses três contos que recusa. Não, não se trata daquela história de livro aberto que pode significar qualquer coisa. Emilio não gosta dessa ideia, quem ler a entrevista vai notar, no que acho que está muito certo.
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Não se trata de falta de sentido, mas de uma relação diferente com isso, de uma trama menos óbvia, mais complexa. É uma opção que está lá na escrita, um sim no sentido de que nem tudo pode ser dito, de que há um mistério, uma coisa que resiste, que não pode ser abordada de forma muito direta.
Os três contos são sobre coisas e personagens diferentes. “Uma escaladora sofre um acidente no Everest que muda o rumo de sua vida e, anos depois, assiste a um vídeo de uma artista desconhecida que parece narrar a sua história. Um homem, de passagem por uma pousada desativada no centro-oeste brasileiro, desaparece misteriosamente, e aos poucos ficamos sabendo de sua vida pregressa. Uma jovem e um velho diretor de teatro escrevem juntos a história de um pintor russo que nunca chegou a terminar uma de suas principais obras.” Essa é a versão oficial, descrição oficial dos temas. Gostei dela, então colei aqui. Explicar como elas se conectam são outros quinhentos.
Pra mim, é um pouco sobre como tecemos, do que é feito, isso que chamamos de realidade. Fatos, mas também cortes, fantasias, repetições, furos, lances estranhos. Mas não acreditem em mim, leiam Sebastopol. É um livro e tanto. Não daqueles que necessariamente te dão tópicos de conversa específicos para edificar. Parece que ele mexe no que não estamos pensando, em como estamos vivendo, com a gente mesmo e com os outros. Aí pode ser que você acorde pensando no livro na madrugada e isso se conecte, sem um caminho muito evidente, com coisas muito suas, de ontem, de hoje. Sei lá, façam o teste. E antes leiam meus zaps, ligeiramente editados, com Emilio Fraia:
[17:27] Vivian: Onde vc tá hoje?
[17:27] Vivian: Agora, quero dizer
[17:28] Emilio Fraia: estou em casa, na cozinha, rua L., Pinheiros/jd Paulista/Cerqueira César
[ 17:30] Emilio Fraia: E acabei de receber uma notícia: o livro vai ser publicado na noruega
[17:31] Emilio Fraia: Por uma editora chamada Solum Bokvennen, que publica diversos escritores que admiro, uma lista boa, Eric Vuillard, Carmen Maria Machado, Mieko Kawakami, Deborah Levy, Ngugi Wa Thiong’o, Albert Camus, Marie NDiaye
[17:31] Vivian: Você anda bem trancado aqui? É maluco pra vc estar na cozinha e seu livro falando por aí em um monte de países, diferentes idiomas?
[17:38] Emilio Fraia: Estas semanas precisei acompanhar meu pai, que tem 87 anos, em médicos, para fazer exames. Passei alguns dias com ele. Estive bastante preocupado com o meu pai na pandemia. E agora, há umas duas horas, acabei de voltar para casa depois dessa jornada pai e filho. Ele está vacinado, eu devo me vacinar nos próximos dias. Pretendo não sair, não fazer nada, até lá. E sim, um pouco sem querer aconteceu isso: eu lancei o sebastopol no início de 2019. No fim de 2019, uma das histórias foi publicada na New Yorker, o que acabou abrindo caminho internacional para o livro. E justamente durante o isolamento ele começou a viajar, ser publicado em outros países. Ele foi, eu fiquei — ficamos todos nós
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[17:44] Vivian: Que bom que seu pai tá vacinado e bem. Engraçado como vc escreve “ficamos todos nós”. Sempre tenho uma pergunta sobre o quanto uma pessoa se identifica com um livro que ela escreveu. As pessoas, quando vão dizer, dizem o livro de Fulano, que a gente pode ler assim: Fulano que escreveu, a autoria. Ou o livro de Fulano como uma parte, tipo um braço, ou um traço, sei lá. Quando falam o livro do Emilio Fraia, onde bate em você?
[17:44] Vivian: Pensei aqui também em ciúme do livro que viaja
[17:57] Emilio Fraia: na literatura, principalmente, a ideia da autoria é muito importante, não? O que os leitores desejam é estar em contato com uma subjetividade, algo singular. E há a ideia do livro como expressão de si, o que é verdade, claro. E os autores se esforçam para isso também. Mas a obra nunca está completamente possuída pelo autor. Porque nós somos muitas coisas, somos o passado, somos os filmes que vemos, os livros que lemos, somos gratamente os outros também. Então escrever é fazer com que essa subjetividade (que é feita dessa mistura do eu, do mundo e dos outros) se torne algo objetivo. Um objeto que não existia antes no mundo, e que agora podemos falar dele como algo objetivo, e que pode viajar por aí como algo estranho a mim
[17:58] Emilio Fraia: sem muito ciúme
[18:04] Emilio Fraia: eu me identifico bastante com o livro, consigo identificar atmosferas e emoções que acessei para escrever as histórias. Isso é importante, claro. Mas ao mesmo tempo há o desafio de encontrar uma forma para que essas intuições se materializem e cheguem do outro lado. São muitos pratos sendo equilibrados
[18:06] Vivian: Esse algo estranho que passou por você, e que em certa medida veio de você (seja lá o que significa esse você), pode ser algo estranho e tão objetivo assim?
[18:07] Emilio Fraia: Não pode. E pode. Por isso o discurso da literatura, a verdade da literatura, vamos dizer assim, contém elementos tão singulares que não encontramos na sociologia, filosofia etc
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[18:08] Emilio Fraia: O que importa quando falamos sobre o livro é a realidade da Nadia, do Klaus, da Lena, do Gino, do Nilo, do Adán. E essa realidade é um comentário sobre o mundo, de um jeito enviesado, não um espelho do autor ou do mundo
[18:13] Emilio Fraia: Se fosse uma sessão de psicanálise com o autor poderíamos avançar sobre um determinado terreno que diz respeito a mim, aos temas do livro. Mas o importante é o que o livro vai mobilizar a partir da trajetória de cada leitor. E por isso — ao menos no tipo de literatura que gosto de ler e que tenho vontade de fazer — o silêncio é importante, o sentido precisa ser deixado, milimetricamente, flutuando, nos lugares certos
[17:27] Emilio Fraia: É interessante como as leituras do livro, lá fora e aqui, têm um fundo comum (afinal, é o livro, a trama, personagens), mas sempre acabam sendo diferentes em algo
[18:14] Emilio Fraia: Para que exista esse espaço. Para a máquina funcionar em quem possa estar pilotando o dispositivo
[18:14] Vivian: Certo. Talvez o braço que dei como exemplo seja presente demais, não sei, mas um traço que seja uma marca sua, a presença da sua falta. Não é uma psicanálise, mas parece que o seu livro traz esse tipo de questão.
[editado] Emilio Fraia: sim, faz sentido. Tipo a perna amputada da escaladora do primeiro conto
[18:15] Vivian: Acho que você foi bem sucedido no seu propósito, porque é um livro que não fica pesando demais na conta do sentido
[18:15] Emilio Fraia: Sim. Nas tramas e na forma também, espero
[18:17] Emilio Fraia: Acho que está lá. Há um terreno comum. Não é que pode tudo também. Mas dentro desse terreno comum há momentos em que esse tipo de algo faltando vai ser construído. Não se pode falar tudo
[18:18] Emilio Fraia: mas, claro, há muitos jeitos de escrever, de compor a coisa
[18:18] Vivian: Que bom, se você dissesse que vale tudo, eu desconfiaria de vc rs… Fala um pouco de como é escrever. Muita gente diz que escreve com sofrimento, que se pudesse não escreveria. Outros menos numerosos dizem de um prazer. Não sei se dá pra escolher um só, como é pra você?
[18:26] Emilio Fraia: Acho que escrever tem a ver com destruir os planos, as ideias prévias. Essa é uma parte boa de escrever, embora seja sempre tão penoso — e eu realmente desconfio de quem diz que escrever é um prazer: isso é bom, quando se chega a lugares novos e inesperados, vozes desconhecidas. No “Sebastopol”, eu só sabia de antemão a atmosfera, tinha uma cena. E então aos poucos a coisa foi se formando. E acho que é por isso — por conta dessa ideia de escrever como destruir ideias prévias — que livros que desejam tratar de assuntos e temas do momento, de maneira muito direta, sejam meio aborrecidos. Porque parece que já sabemos de onde aquilo parte, para onde vai, o que deseja discutir. É claro que estou interessado no meu tempo, nas questões do meu tempo — vivo nele, seria impossível estar alheio a isso, tudo é político na literatura. mas o discurso da literatura funciona de um modo diferente
[editado] Vivian: Qual era essa cena que você tinha de partida?
Emilio Fraia: Uma cena que eu tinha escrito há muitos anos, parte da primeira das três histórias do “Sebastopol”. Uma cena que escrevi há muitos anos, antes mesmo de pensar no livro. A Lena, uma jovem escaladora que sonha em subir os seven summits, sofre um acidente na montanha. É um relato em primeira pessoa, ela está contando o que houve e quando lembra do momento do acidente, há um corte: a história vai do acidente para uma espécie de sonho, de lembrança, em que ela e o ex-namorado estão numa viagem banal de fim de semana. Eles estão num lugar agradável, campestre, como tantos do interior de São Paulo, e planejam passar o dia pedalando. Mas de repente a Lena sente uma dor. Não sabemos bem do que se trata. Eles precisam então desistir do fim de semana e voltar à cidade. A reação do namorado não é das melhores. No carro, contrariado, dirigindo de volta, ele critica hábitos e comportamentos dela. Parece impaciente, aborrecido. Acho que era uma cena em que eu queria mostrar uma desconexão entre eles, a solidão dela, uma tensão crescente, que culmina com um bicho que surge na estrada, na frente do carro
[18:34] Emilio Fraia: A primeira e a terceira histórias são narradas por mulheres. nos dois casos (Gino e Lena na primeira história; Klaus e Nadia na terceira), essas narradoras se relacionam muito de perto com personagens masculinos e, principalmente, com o olhar deles em relação a elas. Queria fazer com que as tensões entre as narradoras e estes homens fossem o tema dos contos também. É algo sutil ali, mas que gostaria que atravessasse tudo
[18:41] Vivian: Sim. Quando eu acabei o seu livro, que de fato é nada aborrecido, tive impressão que ele fosse sumir e deixar uma marca para além das histórias. Sabe um sonho, quando você acorda e aí ele vai sumindo, mas fica uma coisa (uma imagem, uma palavra, uma impressão) concentrada. Aí agora eu reli pra falar com vc e tive a mesma impressão, mas não necessariamente fiquei com a mesma marca. Isso aqui sou eu tentando fazer um elogio porque de fato o seu livro tem uma “coisa” difícil de nomear
[18:42] Vivian: Se você aperta muito ele pro lado do sentido, ele recusa. Acho que isso me deixou gostando muito dele
[18:42] Emilio Fraia: Agora fiquei feliz, essa “coisa” é um elogio e tanto (obrigado real)
[18:47] Emilio Fraia: Sim, e isso dá um trabalho. Porque não é deixar a coisa sem sentido, isso seria ruim. é dentro do sentido fazer esse movimento de ambiguidade — que é um pouco como é a vida, não? As respostas não estão dadas, os sentidos vão sendo feitos, desfeitos. Obviamente o livro é uma emulação absolutamente modesta disso rs
[18:52] Vivian: (…) Sebastopol vai virar filme. Imagino que seja muito legal isso de ver seu livro em filme. Mas você tem medo de ver esses habitantes do livro em corpo, voz?
[18:56] Emilio Fraia: Para ser muito muito honesto, são tantas etapas para um projeto assim sair do papel, não consigo ainda nem pensar nisso. A Pródigo Filmes comprou os direitos de adaptação do livro em 2020. E agora definiram o diretor do projeto, um cineasta japonês chamado Takeshi Fukunaga. Tive algumas conversas com ele, que vai escrever o roteiro também. O argumento que ele apresentou foi muito bom, entrelaçando mais as três histórias. Gostaria que ele tivesse total liberdade e fizesse o filme dele, não tenho nenhuma intenção de acompanhar, o filme é uma outra coisa, bom desse jeito
[18:58] Vivian: É uma boa saída rs
[19:00] Emilio Fraia: Melhor né
[19:00] Emilio Fraia: Agora, claro, vai ser muito interessante ver como ele vai recriar a coisa
[19:01] Emilio Fraia: Acho que quanto mais diferente do livro, usando o livro como ponto de partida, melhor
[19:01] Emilio Fraia: É como se fosse uma conversa que segue adiante
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