Há 100 anos, o Harlem Renaissance colocava a produção artística negra em seu lugar de destaque

O movimento influenciou o Black Power Movement e o Black Arts Movement, que inspiram até hoje a luta por direitos e pela não branqueação das contribuições negras na cena cultural e histórica.


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Foto: Getty Images



Há 95 anos, o filósofo Alain Locke publicava The New Negro: An Interpretation, uma coletânea de contos, poesias e ensaios, todos escritos por autores africanos ou afro-americanos. O livro foi um marco no movimento pós-abolição conhecido como Harlem Renaissance, ou New Negro, que conseguiu fazer com que pela primeira vez a cultura dominante desse atenção ao que mentes criativas negras estavam produzindo nos Estados Unidos. Além de Locke, outros grandes nomes negros foram lançados ao mundo entre 1920 e 1930, como a autora Zora Neale Hurston e o poeta Countee Cullen – enfim, a produção cultural Made in Harlem se tornava popular e conhecida além do bairro da zona norte de Manhattan, para onde boa parte dos cidadãos afro-americanos havia migrado em busca de melhores condições de trabalho e moradia.

O Harlem Renaissance surgiu como uma explosão artística que unia tudo o que por tantos anos fora desvalorizado e repreendido na população negra, como sua cultura, arte e religião. Afinal, quando os negros sequestrados da África chegavam aos Estados Unidos, todo seu passado e ancestralidade eram apagados: seus nomes eram trocados por nomes americanos, eles perdiam seus sobrenomes e tinham suas religiões demonizadas, criando assim uma lacuna de identidade cultural, estética e intelectual própria.

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O filósofo Alain Leroy Locke. Foto: Getty Images

A cultura black começou a florescer no início da década de 1920 e, com a criação do Harlem Renaissance, o que a comunidade negra estava dizendo era que, a partir daquele momento, seriam eles que contariam suas próprias histórias e não mais uma branquitude que os observava como seres exóticos e que os enxergava a partir de um ponto de vista enviesado, repleto de preconceito.

”Foi pela cultura que nós insurgimos, a cultura sempre foi para a gente um vetor de resistência, de reinvenção da nossa presença no mundo. O Harlem Renaissance, de certa forma, espelha essa função política das práticas culturais, de novas possibilidades de reafirmarmos a nossa humanidade, de sairmos do lugar de subalternizados, de escravizados e rompermos com imagens estereotipantes”, aponta Rosane Borges, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora na área de comunicação, imaginários, política contemporânea, relações raciais e de gênero.

Com a explosão cultural acontecendo, a comunidade negra desenvolveu cada vez mais seus próprios códigos artísticos, literários, musicais e estéticos, atribuindo valor à ancestralidade e fenótipos negros. Rosane ainda pontua que movimentos como o Harlem Renaissance foram essenciais para ”reposicionar todo o debate da produção cultural negra porque a produção cultural para nós, povo negro, para nós, negros da diáspora, sempre foi importante, fundamental”.

Melindrosas Negras

O vestuário foi usado como ferramenta de comunicação de muitos dos novos códigos que surgiam e a música teve grande papel no desenvolvimento do estilo da década de 1920, uma vez que as peças retratavam a sofisticação e o espírito entusiasmado dos sons que tocavam nos famosos clubes de Jazz do Harlem.

As roupas também eram pensadas para que agregassem bossa e movimento à dança, já que o Charleston invadia as pistas na época. As mulheres usavam vestidos de seda de modelagem ampla com cintura baixa. Os acessórios favoritos eram os colares longos de pérolas e chapéus cloche. Os homens usavam ternos folgados com ombros acolchoados e lapelas extensas. As calças eram de cintura alta e largas. Ficaram conhecidas como “Zoot”. Também fazia parte da moda masculina os chapéus de abas largas e meias coloridas.

“Não só as melindrosas, mas especificamente elas, tratam o conceito de ser mulher a partir de uma mulher branca, que abole o espartilho e os ditos ”bons costumes” para buscar uma independência do ser mulher”, Erica Malunguinho.

Mas apesar da grande influência da música negra na moda e na cultura americana como um todo, raramente esse crédito é atribuído ao movimento negro. Os anos 1920 ficaram famosos pela moda glamourosa e moderna, influenciada pelo Art Deco, projetando as melindrosas como grande símbolo da época. A representação desse ícone, principalmente na imprensa, porém, sempre foi majoritariamente feita por meio de mulheres brancas. Mas onde estavam as melindrosas negras?

É claro que elas existiam, mas o racismo nos meios de comunicação fez com que ocorresse um silenciamento e apagamento do papel do negro dentro da moda e da cultura americana. “A primeira coisa que tem que ser falada em relação ao racismo na moda é que a moda ocidental, e tal qual a indústria da moda e a concepção fashionista, parte dos mesmos pressupostos da sociedade e de como se organizam as relações sociais: baseadas em uma lógica de racismo”, diz a artista plástica e deputada estadual por São Paulo Erica Malunguinho em entrevista a ELLE.

As melindrosas eram mulheres ousadas que desafiavam o status quo da época. Fumavam em público, usavam saias e vestidos mais curtos e considerados audaciosos demais pela sociedade dominante. Não eram todas as mulheres que se identificavam com elas, o que não justifica a falta de representatividade negra quando se fala da história da moda dos anos 1920. Basta pegar um livro que represente a década ou assistir a uma aula numa faculdade moda. Quantas mulheres negras dessa época aparecem neles?

“Não só as melindrosas, mas especificamente elas, tratam o conceito de ser mulher a partir de uma mulher branca, que abole o espartilho e os ditos ”bons costumes” para buscar uma independência do ser mulher. Isso corresponde a uma mulher branca urbana, que foi formada no sentido educativo, mas esse prisma não reflete a vida das mulheres negras nos anos 1920″, diz Malunguinho. “Quando as mulheres negras vieram a ser tratadas e visualizadas dentro desse contexto, elas foram vistas como seres folclóricos, exóticos, nunca como um símbolo de beleza, emancipado, produzindo a narrativa, mas sim como seres que eram submetidos aos olhares e à sujeição dos outros”.

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A cantora e dançarina Josephine Baker. Foto: Getty Images

Mulheres como Ethel Moses e Josephine Baker foram ícones de moda durante a “era de ouro”, mas tiveram suas participações esquecidas posteriormente quando falamos sobre ”os loucos anos 1920”.

“O movimento negro sempre existiu mesmo dentro da África e também quando houve a maior atrocidade de todas, a escravização de pessoas. Desde esse início houve o apagamento que perdura até os dias atuais, o que nos dá a certeza de que não estamos dando certo como humanidade”, diz o estilista baiano Isaac Silva. “Para avançar, é preciso ver mais pessoas negras no topo e marcas brancas dando voz, empregando, fazendo parcerias, contratos e fazendo o dinheiro circular com o mercado de pessoas negras e indígenas”.

O declínio do Harlem Renaissance e sua influência nos movimentos seguintes

Com a Grande Depressão em 1929, veio o declínio do Harlem Renaissance e tantos outros movimentos. A década de 1920 foi marcada por prosperidade econômica, desenvolvimento e adesão de novas tecnologias na vida das pessoas. Rádio, cinema e automóveis fizeram parte do grupo de novidades da época, e todos esses eventos contribuíram de forma positiva para o desenvolvimento da cena artística, mas quando Wall Street quebrou, o cenário mudou completamente. Sem dinheiro, emprego e moradia, a massa não queria saber de arte.

No início dos anos 1960, com o advento do Black Power Movement, os ativistas voltam a olhar para arte, mas agora com uma energia mais política, se preocupando em criar mídias feitas por e para negros. É nesse período que jornais como o Freedomways, Black Dialogue, The Liberator e Negro Digest surgem. Com a criação desses veículos de comunicação e outros, nasce, nas palavras do crítico cultural e dramaturgo Lary Neal, a ”irmã estética e espiritual” do Black Power Movement, o Black Arts Movement (BAM).

O movimento das artes negras aconteceu entre 1960 e 1970, disseminou o discurso do orgulho negro, incentivando que as pessoas aceitassem sua beleza e seus fenótipos com ufania, sem tentar se adequar aos padrões estabelecidos pela branquitude.

O intelectual Amiri Baraka é considerado o fundador do BAM. Inspirado pelo espírito do Harlem Renaissance, ele criou uma escola de teatro no bairro que abrigou a explosão cultural durante a década de 1920. Essa escola foi a Black Arts Repertory Theatre and School (BARTS), primeira escola de artes negras e que influenciou a criação de várias outras instituições de arte pelo país. A escola permaneceu aberta por pouco mais de um ano. O monitoramento constante do FBI, que participava das atividades da instituição para investigar o que era ensinado lá dentro, e a falta de renda da comunidade do bairro para investir na iniciativa artística contribuíram para o fechamento da BARTS.

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Cartaz da BARTS durante o seu ano de funcionamento. Reprodução

“Os movimentos negros, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, são esferas importantes para a emancipação das pessoas negras, para a criação de novos paradigmas, de novos olhares, de novas estéticas e de novas formas de existência”, afirma a pesquisadora Rosane Borges. “A estética volta para o centro do debate não apenas como uma visualidade, do corpo, de uma forma de vestimenta, mas a estética como política. A estética pensada como uma forma de apresentação das pessoas negras e de suas práticas culturais a partir de uma dimensão política”.

O Harlem Renaissance, como ela aponta, foi um marco. Assim como nos anos 1970, a influência dos Black Panthers gerou uma renovação no contexto brasileiro. “Esses são movimentos que não só combateram o racismo e a supremacia branca, mas também pensaram no desenvolvimento dos nossos talentos, das nossa expertises em determinadas áreas. Promoveram a cultura para um lugar em que nós pudéssemos desenvolver a literatura, a dança, as artes, o nosso protagonismo e oferecer isso para o mundo”, conclui a pesquisadora.

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