Hollywood encontra seu vilão preferido: os super-ricos
Estreia de "O triângulo da tristeza" engorda a lista de produções que transformam milionários, aristocratas e endinheirados em geral em objeto de riso, desejo e desprezo.
Se você não mora em Marte, há uma grande chance de que conheça o meme do Homem-Aranha. Nesta imagem que ganhou a Internet nos últimos anos, o herói aponta para seu clone idêntico. A brincadeira virou a tradução visual do velho ditado “o sujo falando do mal lavado”. Ou, para ser mais abrangente, da citação bíblica “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra”.
Hollywood parece viver atualmente nesta brincadeira virtual. Vários filmes bancados por estúdios bilionários, estrelados por astros com grandes fortunas e dirigidos por cineastas cheios da grana encontraram seus vilões do momento: os super-ricos. Somente nos últimos meses, tivemos o mistério de Glass onion: Um mistério knives out, a crítica gastronômica de O menu e, nesta quinta-feira (16.02), estreia a sátira explícita de O triângulo da tristeza, vencedora da Palma de Ouro do último Festival de Cannes.
A riqueza inalcançável é fascinante. E esse fascínio gera dois tipos de sensações: desejo e desprezo. Não é por acaso que as Kardashian e seus reality shows se tornaram uma das maiores influências da juventude moderna e potências financeiras. Não é à toa que séries de TV como Billions, The White Lotus e Succession se transformaram em nomes poderosos na cultura pop e geraram filhotes como WeCrashed e Super pumped. Seus protagonistas trafegam numa moral impossível para um cidadão normal, aproveitam uma vida de luxo e demonstram uma falta de empatia que beira a psicopatia, mas estamos ali, espiando, seus tropeços e o momento em que pagarão o preço das suas atitudes.
Obviamente que tirar sarro da elite não é uma moda recente, apenas mais evidente, pois a própria elite atual parece ser uma caricatura cômica cinematográfica. O combate do homem simples contra “o sistema” sempre foi uma peça motriz da produção audiovisual, dos magnatas em arranha-céus de Metrópolis, de Fritz Lang, lançado em 1927, aos pseudo-ricos de Os safados, comédia imperdível de 1988 com Steve Martin e Michael Caine.
A própria ideia do diretor sueco Ruben Östlund (Força maior) para O triângulo da tristeza pode ser traçada até 1957, data de O mordomo e a dama, sátira baseada na peça de J.M. Barrie (criador de Peter Pan) que joga aristocratas ingleses numa ilha deserta depois do seu barco começar a afundar durante uma tempestade. O cineasta nega a inspiração e disse em entrevista que nunca assistiu ao filme. Mas a trama é similar: um bando de ricaços sobe a bordo de um iate de última geração e termina numa praia isolada depois que a embarcação não resiste a uma tempestade brutal.
Uma das surpresas do Oscar 2023 com indicações a melhor filme, roteiro e direção, o longa com orçamento de aproximadamente 15 milhões de dólares foi pouco visto nos Estados Unidos, onde obteve uma bilheteria em torno de 4 milhões de dólares. Mas foi visto pelas pessoas certas: as mais poderosas do ramo. Hollywood, não esqueçamos, é uma indústria formada na sua grande maioria por liberais. Liberais sem muita autocrítica.
Enquanto desfilam em premiações com joias avaliadas em milhões de dólares, vestidos e ternos inacessíveis para humanos normais, viajam com entourages e voltam para suas mansões nos arredores de Los Angeles, elas acham graça dos exageros e pedidos dos personagens de O triângulo da tristeza: um casal de modelos influencers (Harris Dickinson e Charlbi Dean), um bilionário russo (Zlatko Burić) que faz sua fortuna no mundo dos fertilizantes (“Eu vendo merda”); um casal fabricante de armas (Oliver Ford Davies e Amanda Walker); e um bilionário da tecnologia (Henrik Dorsin).
Östlund, que não é bobo, percebeu logo a ironia do que estava criando e a jogou inteiramente no papel do capitão do iate, um americano comunista vivido por Woody Harrelson – talvez o ator mais “hippie” de Hollywood, alguém que costuma dar entrevistas bebendo smoothies verdes e mora em uma fazenda autossustentável no Havaí. “Um capitalista russo e um comunista americano a bordo de um iate de 250 milhões de dólares”, destaca o ricaço das fezes no meio da tempestade, em um dos melhores momentos do filme.
Obviamente que não se pode comparar os dólares faturados por indústrias bélicas com os salários hollywoodianos ganhos com o talento dos envolvidos. Mas a cadeia de riqueza absoluta está em jogo, como mostrou Parasita, filme sul-coreano de 2019 que deu início a essa nova onda de produções críticas ao capitalismo extremo.
Também faz parte desse cardápio recente O menu, longa já disponível no streaming Star+. Nessa sátira, o diretor Mark Mylod (comandante de vários episódios de Succession) nos leva a um restaurante ultra-mega-exclusivo construído numa ilha do Pacífico Oeste norte-americano. Não é para qualquer um: seus clientes são transportados por barco depois de pagarem uma fortuna para experimentar o menu fixo do famoso chef Slowik (Ralph Fiennes), um dos mais prestigiados do planeta. O problema é que o sujeito está no meio de uma crise existencialista e organizou aquele evento como forma de se vingar de todos aqueles que acabaram, de uma forma ou de outra, com sua paixão pela cozinha.
O jantar trágico de O menu é uma versão pós-moderna e de alta gastronomia de filmes como No mundo de 2020 (1973) ou A cura (2016), que misturam atos radicais e a luta entre classes. Os americanos usam a expressão “Eat the rich” para essas sátiras contra a sociedade elitista. Alguns longas são mais literais. Nessa produção, a discussão é mais profunda sobre capitalismo, sucesso e alma. Slowik se vê como um prestador de serviços transformado em uma panela de pressão humana por causa de críticos gastronômicos, financiadores de Wall Street, nerds de culinária, clientes famosos e até sua mãe. Uma rede de influências que arruinou seus sonhos de viver feliz entre panelas e frigideiras desde que fritou seu primeiro cheeseburger. Problemas de Primeiro Mundo?
Pode ser, mas são bem mais sólidos que os vividos pelo bilionário Miles Bron, interpretado por Edward Norton em Glass onion: Um mistério knives out, disponível na Netflix e indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado. Bron é um magnata da tecnologia que ganhou fama de ser um gênio excêntrico. Aproveitando-se disso, ele convida um grupo de amigos para um jogo de “mistério” ambientado na sua ilha particular na Grécia. Entre eles, por alguma razão, está o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig), que precisa elucidar um caso ainda maior por trás da reunião. O que ele descobre é a verdadeira personalidade de Bron, um empresário que assume os créditos e as ideias dos outros para ganhar a fama de inteligente e vanguardista.
Não é preciso ser Einstein para fazer uma ligação com Elon Musk, polêmico empresário que caiu em desgraça para muitos após a compra da rede social Twitter. Norton nega a inspiração, já que o longa foi escrito há dois anos. Porém uma frase de Blanc resume bem diversos picaretas famosos na indústria tecnológica: “Presumi que Miles Bron seria um gênio complicado. A verdade era muito mais simples: Miles Bron é um idiota”.
Já a verdade sobre essa moda satírica às elites globais é mais complicada. Hollywood hoje evita investir em vilões com nacionalidades reais para evitar:
a) cancelamentos por preconceito;
b) baixa bilheteria em territórios internacionais, hoje tão ou mais importante que os números nos Estados Unidos;
c) as duas alternativas acima.
Retratar ricaços como malucos excêntricos, caricaturas malvadas ou arquétipos de uma cultura nociva é muito mais fácil e inofensivo. Ninguém sai ferido e todos se divertem, pois ninguém se vê com o vilão da história. Hollywood adora um final feliz. Ainda mais com os bolsos cheios.
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