Igi Ayedun investe na veia artística da juventude negra do Brasil
A fundadora da organização artística HOA fala sobre a exposição Telas Pretas e a necessidade de fortalecer a comunidade artística negra.
Nos primeiros meses da pandemia, Igi Lola Ayedun se deu conta de que, apesar da crise provocada pela Covid-19, o mercado da arte ainda estava funcionando. Mais do que isso: o fluxo de dinheiro não somente existia, mas também havia a possibilidade de aumentar o consumo de arte nesse setor. Por outro lado, ela via seus amigos artistas trabalhando em aplicativos de entrega, como iFood ou Rappi. “Eu olhei e falei: ‘isso não é certo’. Se existe um fluxo respirando, um coração que bate, eu preciso criar uma trilha para trazer esse fluxo para cá, para os artistas dissidentes, pretos e trans”, relembra a artista visual, designer de conteúdo e publisher, em entrevista à ELLE Brasil.
Assim, em pleno 2020 pandêmico, Igi botou de pé a galeria de arte HOA, no coração da cidade de São Paulo. “A HOA é uma resposta de necessidade imediata”, dispara Igi, sem rodeios. “Não tanto uma necessidade pessoal, graças aos Orixás, mas uma necessidade coletiva. A pandemia agravou muito a situação dos artistas dissidentes no Brasil. Essa cena, esse circuito e movimento é também meu movimento, de onde eu venho e do qual eu faço parte. São meu grupo de amigos, parceiros e colaboradores”, conta ela.
O propósito de democratizar arte e fortalecer a comunidade artística negra norteia a trajetória de Igi há tempos. E esse esforço já mostra resultados robustos. Este mês, um projeto da empresa Vivo, com curadoria de Igi Ayedun, leva a arte de seis artistas negros para todo o Brasil. Com obras de Silvana Mendes, Rainha F, Gabriel Massan, João Moxca, Manauara Clandestina e BRASILÂNDIA.CO a exposição Telas Pretas é a maior mostra de arte digital já realizada no país.
“Desde que eu participei da Enciclopédia Negra (a exposição na Pinacoteca e também o livro com curadoria de Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, no qual eu colaboro com três obras), a Vivo se aproximou de mim com a ideia de democratizar o acesso à arte contemporânea por meio da sua presencialidade física no Brasil”, conta Igi. Como a maior rede de telefonia no Brasil, com pontos em todos os lugares, poderia usar isso em prol da arte negra, que passou durante tanto tempo por vários processos de invisibilização? Essa era a questão debatida na empresa, que foi repassada à artista. Igi, então, foi convidada pela Vivo para capitanear a curadoria de uma exposição que ocuparia as telas das lojas da empresa no Brasil – telas de celulares, televisores, tablets e todos os dispositivos que você puder imaginar.
“Fundo do mar”, 2021, de João Moxca, em exibição na mostra Telas Pretas.
Tocada pelo desafio e pelo formato da proposta, a artista paulistana decidiu focar sua curadoria em arte digital – media art, vídeo, fotografias, 3D, animação, colagem etc. – e reunir artistas de diversas regiões do país que pudessem trazer diferentes perspectivas sobre a juventude negra. Ao longo de todo o mês de novembro, essa seleção está exposta em mais de 600 telas digitais espalhadas por 240 lojas da Vivo em todo o país, além das redes sociais da marca, espaços publicitários e da própria galeria de HOA.
A ideia era que os artistas apresentassem diferentes temáticas e abordagens. “A gente tem os trabalhos do Gabriel Massan e do João Moxca, que são ideias completamente futuristas e lúdicas sobre o que é o pensamento da negritude jovem – e de uma forma não literal, então, trata-se de um direito à subjetividade”, analisa Ayedun, “A gente tem o trabalho do coletivo BRASILÂNDIA.CO e da Manauara Clandestina, que fazem uma crítica à urbanidade, à estruturação das cidades e de todos os problemas sociais e estruturais que atravessam nossa comunidade. Ainda tem o trabalho da Rainha F., com uma perspectiva de sonho dentro de uma existência de gênero, o sonho do afeto. No contraponto, Silvana Mendes também fala de afetividade através do olhar feminino sobre a masculinidade negra.”
Clique aqui para ler mais sobre os artistas selecionados.
Habituada aos espaços e práticas de articulação pela diversidade nas estruturas do mercado de arte, a artista emociona-se com o alcance de base da exposição Telas Pretas. “O que eu mais gostei desse projeto é que eu vejo as marcações nas redes sociais de todos os lugares do país, cidades que eu não imaginava que um dia pudessem ver uma obra do Gabriel Massan ou assistir a um filme da Manauara Clandestina. E eu fico muito feliz por conseguir fazer com que isso chegue em todos os pontos do Brasil”, declara.
São Paulo-Londres
Mas o território nacional não delimita a atuação de Igi. Um sonho de longa data, que em 2021 saiu do papel, é a HOA Londres. Ayedun se mudou para Londres no ano passado e, desde então, divide sua vida entre São Paulo e a capital da Inglaterra. “Eu vim especificamente para inteirar a discussão sobre arte afrodiaspórica, e Londres é onde isso acontece, tanto institucionalmente como dentro do mercado”, explica. “É onde você tem acesso a galerias de arte negra de todo mundo: Nigéria, Gana, Senegal, e também as diaspóricas, como Estados Unidos, França, Inglaterra. E sempre questionei: cadê o Brasil nessa conversa? Como assim vocês estão falando de arte diaspórica sem a gente?”
Aproveitando essa lacuna no cenário global e o convite para participar do line up da 1-54 Feira de Arte Contemporânea Africana, a maior feira internacional de arte contemporânea africana e da diáspora africana, em atuação desde 2013, Igi Ayedun percebeu que era o momento para fincar uma bandeira na Inglaterra também. Com exposições semestrais, a sede londrina já conta com acervo e acena para um posicionamento internacional da juventude negra brasileira durante o pior cenário geopolítico do país da década.
No próximo ano, a HOA estará presente em ações no México, Estados Unidos e em Marrocos. Este último país, particularmente, tem sido uma grande emoção para a equipe da galeria, que poderá levar as potências artísticas do Brasil para o continente africano. Hoje, todo o ecossistema da HOA é racializado, dos artistas à equipe da galeria, dos motoristas à moldureira, da equipe de limpeza ao marceneiro.
“Eu comecei a HOA com um valor e hoje a gente tem um faturamento de 10.000% deste mesmo valor. Um ano depois, a maior parte desse dinheiro voltou para a comunidade. Segurou a onda de muita gente. Gerou trabalho, moradia e possibilidades”, conta Igi. “Acredito que poderia ser ainda mais, mas acho que do tamanho que somos, estamos fazendo bastante – e a gente precisa fomentar para crescer, para oferecer mais. Hoje, eu tenho muito orgulho de entender que a gente pode ser uma fonte de subsistência, emancipada de outros modos de organização que talvez não sejam compatíveis com o que a gente acredita.”
E a HOA, diz sua fundadora, acredita que há caminhos além das escolhas burguesas da arte contemporânea. “A gente não está no véu de uma arte purista, perfeita, 100% institucionalizada, validada e que precisa de todos os mecanismos de um sistema colonial para existir. Aquela arte que lida com as questões de brasilidades só através das perspectivas do clichê, do que pode ser comercializado, vendido enquanto identidade brasileira, ignorando todas as complexidades raciais, territoriais e de gênero que atravessam o que é a identidade brasileira na arte contemporânea.” Como diz o manifesto divulgado na inauguração da HOA: “Do not bossa nova us”.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes