James Merry e o papel revelador das máscaras
O diretor criativo britânico, que tem dado o tom ao universo de Björk na última década, fala à ELLE sobre sua atual obsessão por pássaros, seu primeiro encontro com a cantora islandesa e sobre os significados que uma máscara pode ter.
James Merry está sempre obcecado com alguma coisa. Sensível, o artista britânico de 38 anos chora facilmente com programas de TV, desses em que pessoas competentes e dedicadas são reconhecidas e também naqueles em que pessoas mais velhas contam histórias de amor que já viveram. Conhecido por trabalhos que vão de colaborações com a Gucci à comentada máscara de ouro que Tilda Swinton exibiu no Festival de Veneza 2020, James ganhou destaque como o diretor criativo que acompanha Björk há mais de uma década – suas criações se tornaram fundamentais para construção do universo da cantora islandesa.
Existem muitos apostos possíveis para James e todos parecem curiosos e singulares. Ele é autor de um livro de poesias e ilustrações, no qual propõe a fusão de formas humanas com botânica, Anatomies (2012). É ainda um bordador minucioso, com uma proposta de bordados de plantas em moletons velhos de marcas de streetwear, como Nike, Adidas e Puma.
James também é o idealizador da exposição Bjork Digital, exposição que veio para o Brasil no final do ano passado, com estreia no MIS em São Paulo, e foi interrompida no trânsito entre os Estados por causa da pandemia do novo coronavírus, depois de passar pelo CCBB Brasília e o CCBB Rio de Janeiro. Neste final de semana (17 e 18), a partir das 18h, no canal da Twitch da Cinnamon Comunicação, o CCBB em Casa propõe um intercâmbio cultural entre os artistas que desenvolveram Bjork Digital e prestigiados nomes nacionais para concluir a passagem da exposição no país. A programação conta com conversas entre James Merry e Alma Negrot, Jesse Kanda e Linn da Quebrada, Andrew Thomas Huang e Zeca Camargo, Santiago Felipe e Aisha Mbikila, além de uma performance inédita do artista L’Homme Statue. Outra ação ligada à mostra são as máscaras de realidade aumentada, criadas por meio de uma colaboração entre James, a artista visual e criativa digital brasileira Andrezza Valentin e o estúdio criativo ROOF. Os filtros com as três máscaras podem ser acessados no perfil de Björk, no Instagram.
De sua casa, perto de um lago nos arredores de Reykjavik, na Islândia, James Merry falou por Zoom com a ELLE sobre seu universo, relembrou o primeiro encontro com Björk e desvendou quais outros sentidos uma máscara pode ter.
Björk com a máscara Medusa, criadas por James Merry, que está disponível como filtro no Instagram da cantora.Foto Warren Du Preez e NickThornton Jone
Qual é sua obsessão atual?
Hummm. Eu geralmente fico obcecado com coisas bem específicas. Esse verão inteiro eu estive obcecado com isso aqui (mostra dois livros, que parecem ser o mesmo em línguas diferentes, FUGLA e BIRDS, que significa “pássaros”, em islandês e inglês, respectivamente). Estou aprendendo quais são as aves na Islândia, então, passo bastante tempo com os dois livros, pesquisando. Aqui, eu estou cercado de pássaros, tem um lago para lá. Então, eu estou tentando aprender os nomes deles em islandês, mas quero saber em inglês também! Essa tem sido uma grande obsessão esse ano, porque sempre fui mais obcecado com plantas e flores, mas esse ano eu realmente fiquei obcecado com aves.
Obcecado por conhecê-los ou com a habilidade de voar?
Conhecer! Eu os observo. Tenho esses aqui (mostra seus binóculos). Então, fico observando, pego o livro e descubro que tipo de pássaro é. Tenho aprendido muito sobre eles recentemente. E tem muito trânsito agora, eles têm ido e vindo bastante, pela época do ano.
É uma obsessão adorável.
Eu amo morar no campo; os animais são uma das melhores partes de morar aqui. Eu ouço muitos podcasts também, então, fico obcecado com alguns deles.
Me indique um.
Tem alguns muito bons. Tem um que se chama This Jungian Life, que é feito por psicólogos que estudam Carl Jung. Eles sentam e conversam sobre simbolismo e sonhos. No final de cada episódio, eles analisam o sonho de uma pessoa diferente. Ouço esse bastante e também alguns mais históricos, como BBC History e coisas assim.
Como você começou a trabalhar com máscaras e artigos para cabeça?
Foi meio que por acidente. Foi quando Björk tinha lançado Vulnicura (2015). Ela estava para começar a turnê do disco, o primeiro show estava se aproximando em Nova York, o vestido estava pronto, mas ela queria cobrir o rosto dela. Eu já tinha feito uma máscara para ela anteriormente, como presente de aniversário. Entramos em turnê e, antes de todo show, eu fazia uma nova máscara para ela. Acho que, por ser a parte mais visível da minha colaboração com Björk, as pessoas pensam que eu sou somente aquele que faz as máscaras da Björk, mas, na verdade, eu trabalho com ela desde 2009 e isso aconteceu bem mais tarde. É quase como um bônus, que acontece uma vez ou outra. Nós colaboramos em diferentes partes do projeto e, de vez em quando, eu faço uma máscara. Mas para mim é uma parte bem pequena da minha colaboração com ela.
Qual foi o projeto mais desafiador que você já fez com a Björk?
Eu acho que foi Cornucopia, a última turnê. Foi um projeto em uma escala diferente, bem maior do que o que a gente já tinha feito anteriormente. Fiquei muitíssimo orgulhoso do resultado final, foi muito lindo. Eu não perdi um show pelos últimos dez anos, sempre estou lá e, no final de uma turnê, você meio que já viu aquilo um milhão de vezes, mas Cornucopia toda vez eu estava na frente do palco e ficava maravilhado, o jeito como tudo ornou. Foi muito desafiador e, inclusive, foi um caso em que fiz muitas funções ao mesmo tempo: era o diretor criativo da Bjork na turnê e estava envolvido com todo o trabalho por trás disso, todas as reuniões, sete mil emails, Skypes, reuniões com diretores e Dropboxes com vídeos indo e voltando por anos, porque nós nos preparamos por muito tempo. Simultaneamente, eu estava tentando criar máscaras para… todo mundo – isso foi muito desafiador: estar preso no meu computador, sendo quase um produtor e diretor criativo ao mesmo tempo, e não tinha tempo para estar no estúdio criando coisas, o volume de trabalho foi muito desafiador.
The Performers: Act VIII | James Merry
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Este ano, máscaras ganharam uma prioridade como um objeto que significa segurança, saúde e proteção. Para você, quais são os outros significados possíveis de uma máscara?
É engraçado, porque máscaras têm meio que uma vida própria, eu acho. Como sempre as faço no meu rosto, acho que sei o que é aquela máscara e que personagem ou tipo de animal ela é, mas no segundo que eu a vejo no rosto da Björk ou de qualquer outra pessoa, muda completamente. Então, esse processo sempre foi muito interessante: entender que as máscaras têm uma vida própria. Mas acho que, como seres humanos ou animais, nós temos programado no nosso cérebro que o rosto atrai toda a atenção, a princípio… A gente consegue ver rostos em nuvens e, se você encarar um padrão geométrico por tempo suficiente, você enxerga um rosto, porque é uma coisa programada no nosso cérebro. É tipo “escanear” o rosto de alguém. Então, no momento em que você começa a distorcer ou brincar com isso, afeta a gente de uma maneira muito profunda e isso me interessa. Porque é uma parte muito forte da sua identidade.
Hoje, com as pessoas vivendo dentro dos seus celulares, metade dos filtros digitais são sobre brincar com seu próprio rosto e isso nos afeta profundamente. Obviamente, agora tem toda a questão da máscara por causa da pandemia, mas desde antes disso, a ideia de distorcer seu próprio rosto e ver o que isso faz com a sua consciência de quem você é, com a sua identidade, vem borbulhando nos últimos anos. Mas acho que, em uma perspectiva mais ampla, o fato é que tem uma ambiguidade nas máscaras: elas escondem, mas também revelam. Ao mesmo tempo, você está escondendo partes de você por insegurança ou vaidade ou criatividade, mas quando você encontra a máscara que se comunica com você, ela também vai revelar uma coisa muito mais profunda sobre você, que você não conseguiria enxergar sem a máscara. Eu vejo como um túnel de mão-dupla: escondendo e revelando ao mesmo tempo.
Björk Digital: Making of Filtros de Instagram #CCBBemCASA
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Qual foi a coisa mais fascinante que uma máscara já revelou sobre você?
Eu sou uma pessoa bem tímida, sempre fui, mas eu sou cheio de contradições: ao mesmo tempo em que sou muito tímido, quando estou com meus amigos sou bem extrovertido. E eu acho que quando usei máscaras para um ensaio ou algo assim, elas revelaram partes de mim que eu não acessava antes. Como faço tudo sozinho, à mão, sem nenhum assistente, especialmente quando tenho que fazer várias coisas em um espaço curto de tempo, é bem difícil insistir quando uma coisa não está dando certo. Mas quase todas as vezes em que eu estive nessa posição, as máscaras me revelaram que sou uma pessoa muito determinada criativamente. Eu não gosto quando as pessoas se descrevem como ambiciosas, mas é essa determinação, sabe? Quando alguma coisa não está dando certo, apenas persista. Já houve semanas em que em que eu ia para o estúdio e era muito deprimente, porque não estava dando certo e eu ficava lá por dez horas, tentando. Acho que fazer as máscaras me revelaram isso sobre mim mesmo.
Você pretende desenvolver máscaras que também tenham um propósito de saúde e proteção?
Não, eu acho que é uma conversa que vem cercando meu trabalho, especialmente com os moletons bordados que eu faço. Sempre tem essa voz no fundo gritando “capitalismo!” e ela diz: “cresça, faça mais, venda mais, coloque em produção”. Isso me assusta, porque não sou organizado ou inteligente o suficiente, não tenho essa cabeça para negócios para fazer isso. E, além disso, pensando no meio ambiente, eu não quero encher o mundo com mais coisa do que ele precisa. Eu prefiro fazer uma única coisa muito lindamente e ser só isso. Essa tem sido uma conversa que cerca meu trabalho desde que eu comecei. A tentação de fazer uma máscara para Covid-19 vai nessa mesma linha, é quase como produzir meu trabalho em massa e eu não estou interessado nisso.
É quase como – e essa não foi minha intenção com a pergunta – ver a pandemia como uma oportunidade, né?
É, eu acho estranho. Depois de algumas semanas de pandemia, as pessoas começaram a vender máscaras, eu não sei. Eu não julgo, talvez faria se fosse uma única vez e tivesse que ser útil para prevenção de Covid-19, mas não me instiga. Acho que essa tentação em bordar essas máscaras de fábrica e vendê-las é só… fácil demais para mim.
Como você percebe a transformação da intenção e propósito do objeto?
Eu meio que gosto, de um jeito estranho. Eu gosto de estar no meio de uma cidade grande usando máscaras, é quase como usar um óculos escuros enorme, você consegue sentir que está na sua própria bolha. Mas, esse mesmo sentimento tem um outro lado, que é quando você se sente muito desconectado das pessoas. Eu acho curioso quando você está andando ao lado de um amigo e vocês estão conversando, mas de longe vocês só estão andando lado a lado. Não dá para perceber que as pessoas estão conversando, isso foi uma coisa que eu reparei.
Eu não previ a discussão antimáscaras vindo. Foi bem estranho. Quando a direita política começou com esse discurso de “estão tirando nossa liberdade” e um show patético de masculinidade para não usar as máscaras… Eu não sei. Não previ isso. É tão patético, na minha opinião. Eu sou britânico, então, escuto muito as notícias e acompanho a política inglesa, apesar de não viver lá há dez anos. De qualquer forma, foi estranho ouvir as pessoas no rádio argumentando de um jeito muito britânico “precisamos de prova científica que isso ajuda a prevenir o contágio” e… Assim, a gente não tem tempo, é uma pandemia, é uma emergência, só use a máscara. Se funcionar, você não prejudicou ninguém. Use a máscara. Se não funcionar, e daí?
Como as notícias têm te afetado?
Eu sinto que você pode ser muito intenso com isso ou completamente blasé. Não especificamente com coronavírus, mas com tudo, especialmente Black Lives Matter. Para mim, pessoalmente, houve algumas semanas em que os protestos estavam acontecendo nos Estados Unidos e me afetaram muito… Instintivamente, minha energia é direcionada para ficar gritando pela cerca para a Inglaterra e os Estados Unidos “você é um lixo, tudo está fodido” – o que é verdade, tem muita coisa errada e ruim, está na hora de isso ser colocado em pauta. Mas outra parte de mim diz que eu escolhi morar na Islândia. Estou aqui o tempo todo, então, por que não me envolvo com as pautas da Islândia? Então, parte do que eu tenho feito nos últimos meses é direcionar minha energia de gritar para outros países para me envolver mais na minha comunidade, fazer mais trabalho voluntário. A pauta racial é mais difícil aqui, porque não é uma sociedade tão diversa como em outros países, acho que a questão gira mais em torno de imigração.
No fundo, é tão violento e danoso tudo que está acontecendo. Não consigo não sentir um gosto amargo quando alguém diz “ah, é bom porque o racismo foi revelado e tudo está à mostra” porque tem muita dor e pessoas morrendo nesse processo, mas eu sinto que pode ser um momento de esperança, para as gerações mais novas, pelo menos. Alguma mudança parece estar acontecendo e uma nova consciência está se formando sobre certas coisas – e isso não é mais exceção, é quase a norma agora. Eu notei que o ritmo dessa discussão criou imediatamente novos termos e palavras para microagressões, e isso é muito interessante porque, de súbito, você tem mais 12 furos no cinto, porque tem uma palavra para cada situação, então você tem um atalho, você pode se dirigir ao que está acontecendo. Isso é meio que incrível.
James Merry com uma de suas criações: “Máscaras têm uma vida própria”.Foto David Ablehams
Me conta sobre o seu primeiro encontro com a Björk.
Foi em Nova Iorque. Eu estava em Londres trabalhando com um artista e nós, eu e Björk, tínhamos um amigo em comum. Ela estava começando a pensar em Biophilia (2011), em 2009. Meu amigo disse que Björk estava procurando alguém, um pesquisador, tipo um papel de assistente de pesquisa. Eu estava desesperado para sair de Londres, então começamos a trocar emails…
Por quê?
Eu nunca gostei tanto de Londres assim, nunca fui muito feliz lá. Sempre tive um perfil de viajante, prefiro viver em uma cultura diferente da minha própria. Assim que terminei a universidade, me mudei para a Europa (continental) e só voltei para Londres quando acabou o dinheiro, mas nunca senti que deveria ficar lá. No momento em que tive a chance de sair da Inglaterra de novo, fiz isso.
Qual era o trabalho em que você estava quando esse encontro aconteceu?
Você conhece Damien Hirst? É um artista britânico bem famoso, eu era um dos seus assistentes. Era ótimo, um trabalho bem divertido. Era um bom jeito de viver em Londres, mas no fim eu estava trabalhando em um escritório e isso não era o que eu queria fazer.
Então, você e a Björk estavam trocando emails…
Sim, a gente trocou alguns emails. E eu tinha alguns amigos em Londres que são californianos. Lembro de economizar por muito tempo e viajamos juntos para Califórnia em um feriado, em janeiro ou fevereiro. Enquanto eu estava lá, Björk disse “oh, por que você não vem para Nova York me ver?” Então, quando eu estava voltando da Califórnia, peguei um vôo por Nova York – e eu era muito não-viajado na época, não estava acostumado com aviões, nem ir para Nova Iorque. Foi bem excitante para mim. Então, fui até a casa dela, tomamos café da manhã e eu estava muito ansioso, foi bem surreal. Mas passamos a tarde conversando sobre o projeto dela e assistindo vídeos. Aquele álbum é muito sobre ciência e natureza, assuntos pelos quais eu já era bem interessado. Foram algumas horas de “ai meu deus, você viu aquele vídeo daquele peixe que faz aquela coisa”, fizemos isso por algumas horas e depois peguei um táxi e voltei para Londres. Fiquei pensando “isso acabou de acontecer?” Foi tão estranho. E depois foi bem rápido. Eu voltei para Londres e recebi uma mensagem perguntando se eu gostaria de me mudar para Nova York e trabalhar com a Björk – eu disse sim. Foram duas semanas, eu precisava pegar o visto, me demitir do meu trabalho e minha irmã se mudou para o meu apartamento. Desse dia em diante, de súbito, eu estava vivendo com uma mala de viagem pelos próximos oito anos.
Qual conselho você daria para o James do passado?
Eu não acho que ele precisava de nenhum conselho. Sempre segui minha intuição e meus instintos, sempre fui bom nisso. Talvez para ele relaxar mais, eu posso ser um pouco maníaco com as coisas, porque eu não quero deixar de viver ou de aproveitar nada. Eu tenho 38 anos agora, mais velho e mais tranquilo do que eu era. Mas acho que só comecei de fato a fazer meu trabalho artístico há uns cinco anos – sempre fui criativo e estava criando para meus amigos, mas o que eu considero minha própria arte aconteceu bem tarde na minha vida, então, nos meus 20 anos, eu era mais um artista frustrado, porque sabia que eu era criativo, mas não produzia isso de fato Estava preso em Londres, pagando aluguel. Então, eu provavelmente diria: aguenta firme, você vai criar, vai acontecer, só espera mais um pouco porque vai vir na hora certa.
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