Maria Ribeiro leva Fernanda Young ao palco
Em seu primeiro solo teatral, transmitido via streaming, a atriz encena o pensamento libertário da escritora, que morreu há pouco mais de um ano.
Era para ser uma peça com duas atrizes, duas vozes dialogando e discordando entre si. Mas o destino aprontou das suas. O projeto, no entanto, seguiu e, neste sábado, dia 12, Maria Ribeiro sobe ao palco sozinha, em São Paulo, para a estreia de Pós-F, sob direção de Mika Lins.
O primeiro solo teatral da atriz é inspirado em Pós-F, Para Além do Masculino e Feminino, primeira obra de não-ficção da escritora Fernanda Young. Era com ela que Maria dividiria o palco, e as duas chegaram a fazer uma leitura pública em março de 2019. Cinco meses depois, veio o baque: uma parada cardiorrespiratória decorrente de uma crise de asma levou Fernanda, aos 49 anos.
O espetáculo-relato reúne memórias e vivências da autora, mulher fiel aos próprios desejos, que fugia do lugar-comum, evitava estigmas e rótulos, questionava os papéis impostos pela sociedade e que, como muitas de suas personagens, era cercada por um sentimento intrínseco de inadequação. No processo de preparação para a peça, Maria se emocionou todos dias: chorou de saudades e, ao mesmo tempo, matava as saudades da amiga ao dizer as palavras dela, como contou nesta entrevista à ELLE.
Por causa da pandemia de Covid-19, não haverá plateia presencial. As apresentações serão realizadas ao vivo, no Teatro Porto Seguro, e transmitidas via streaming. Quatro câmeras vão captar as imagens, com cortes realizados na hora. “Os recursos audiovisuais chegam para somar com a experiência teatral”, diz Mika. A diretora também assina a cenografia, que traz uma espécie de móbile repleto de desenhos feitos por Fernanda. Após cada espetáculo, Maria vai conversar com pessoas que conviveram de perto com a escritora, como Alexandre Machado, marido e parceiro de vários trabalhos, e Eugenia Ribas Vieira, que foi sua editora.
A seguir, Maria fala sobre o processo de criação da peça, os sentimentos que surgiram durante os ensaio e sobre suas expectativas em relação a essa nova experiência teatral.
Como surgiu o projeto do Pós-F?
A ideia de transformar o livro em uma peça foi minha. Eu li, fiquei com muita vontade de fazer, e então procurei a Fernanda. A gente mal se conhecia – só de vista mesmo –, mas ela achou incrível, e, na mesma hora, me cedeu os direitos.
Ela queria participar de alguma forma?
Primeiro, ela me disse que queria dirigir e eu topei. Quando começamos a nos encontrar, ela mudou de ideia e disse que gostaria de estar no palco, como atriz, atuando comigo, e sugeriu a Mika Lins para dirigir. Iniciamos o processo e fizemos uma leitura pública em São Paulo. Foi muito legal. Era como se fossem duas vozes, duas Fernandas, uma discordando da outra o tempo todo. Fizemos a leitura no final de março de 2019 e adiamos a estreia para o segundo semestre do ano, mas, em agosto, a Fernanda morreu. Alguns meses depois, a Mika quis retomar, e a Porto Seguro acabou escolhendo o Pós-F para reiniciar suas atividades no teatro, transmitindo os espetáculos ao vivo via streaming.
Os ensaios foram online?
Não, eles foram presenciais. Eu vim do Rio de Janeiro para ensaiar em São Paulo. Toda a equipe fez teste para Covid. Eu, Mika, o pessoal da produção, o Caetano Vilela, adaptador e iluminador, e mergulhamos juntos no universo da Fernanda – o que é um prazer imenso.
E que sentimentos surgiram nesse período?
Eu me emociono todo dia, aprendo todo dia. Eu choro de saudade às vezes, mas também fico feliz por estar matando a saudade. O discurso dela é muito revolucionário e muito valioso. Sempre foi, mas acho que cada vez mais é. O Brasil está andando para trás, cada vez mais reacionário. Então, é um prazer dizer as palavras dela.
E a adaptação? Vocês foram além do Pós-F ou tudo que está na peça vem do livro?
Adaptação é fazer escolhas. Escolhemos os trechos que a gente mais gostava. Como estou lendo tudo da Fernanda e vendo todas as suas entrevistas, eu acabo encaixando algumas frases que encontro e gosto no texto. A gente se permitiu essa liberdade, mas tudo que eu falo na peça veio da boca da Fernanda.
Conte um pouco sobre essa “personagem” em cena… Fernanda está presente somente nas palavras ou há também uma aproximação com seu gestual e jeito de falar?
Não tenho nenhuma vontade de mimetizar ou imitar a Fernanda. Essa não é a ideia. Mas acho que a gente sempre se achou mesmo muito parecida. Essa energia provocadora… São muitas coisas em comum e, claro, também há muitas diferenças.
Que outros traços em comum você citaria? E diferenças?
O que aparece já de cara é esse lance de fazer um monte de coisa. Fernanda era escritora, desenhava, era atriz. Fez quatro faculdades, não terminou nenhuma. Queria dirigir. Eu também sou assim. Dirijo documentário, escrevo, atuo. Eu sou essencialmente atriz. E a Fernanda era essencialmente escritora. A Fernanda tinha uma coisa muito ‘que se dane o que pensam de mim’, já eu tenho uma coisa de querer ser amada (o que está ligado ao meu ofício de atriz). E, perto dela, eu quase não tenho tatuagem… (risos)
No livro, a Fernanda fala muito sobre o feminismo e, em alguns momentos, chega a ser contraditória. Como isso entrou na peça?
A relação dela com o feminismo era muito bonita. Fernanda sempre foi muito feminista. Ela abriu caminho para muitas mulheres somente sendo quem ela é. Mas ela não gostava de fazer parte da moda. Ela questionava isso: o feminismo da moda. E eu sempre achei interessante esse questionamento dela. Muita gente tem esse discurso de feminismo e na prática não é. No caso da Fernanda, ela realmente gostava das outras mulheres, torcia por elas, olhava para as diferenças. A peça é muito mais pós-Fernanda do que pós-feminismo. A peça, para nós, virou Pós-F de Pós-Fernanda.
Como foi o período de convivência de vocês?
Nós ficamos muito próximas no último ano e meio de vida dela. Por conta desse projeto da peça, eu, ela e Mika nos trancamos dez dias em um apartamento. Fernanda foi uma das pessoas mais generosas que conheci, a melhor mãe que conheci. Muito taurina, preocupada com os outros, com as filhas, muito doce, muito leal. Realmente uma amiga maravilhosa.
Para você, o que a gente perde sem uma mulher como ela?
O mundo perde muito sem a Fernanda. Era alguém que estava o tempo todo questionando o Status Quo. Em um cenário com Damares e Flordelis, imagino os textos que a Fernanda estaria escrevendo sobre a tristeza do nosso governo, sobre essas mulheres que vão protestar na frente de um hospital em que há uma menina de 10 anos grávida, que foi estuprada. Ela faz muita falta no Brasil que estamos vivendo.
O que mais te atravessou no livro Pós-F?
Acho que é a maneira como ela expõe as fragilidades dela. Acho que quem faz isso é muito generoso, melhora a vida dos outros. Muitas pessoas se beneficiam da luta de quem se expõe como a Fernanda.
Além da peça, você está para estrear a série Desalma, em outubro, no Globoplay, certo?
Pois é, eu me orgulho muito desse trabalho. Foi incrível poder fazer uma série baseada em um livro de uma autora premiadíssima, como é o caso da Ana Paula Maia, e estar atuando em um gênero que nunca foi muito explorado no Brasil: o terror psicológico. Sem contar que tivemos a liderança de um grande diretor, o Carlos Manga, que é um cara sofisticadíssimo e que não faz concessão, e estava ao lado de atrizes como Claudia Abreu e Cássia Kis. Para mim, foi um sonho.
Já tem alguma ideia para um livro novo (Maria é autora de um livro de crônicas e outro que traz textos em forma de cartas e mensagens para amigos)?
Estou pensando em algo sim, mas ainda é cedo para falar… Por enquanto, estou focada na peça, nos textos que escrevo para a VejaRio e em alguns outros trabalhos confirmados, como a segunda temporada do Desalma, que começo a gravar em janeiro…
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