“O cinema existe para perturbar o espírito”, diz Isabelle Huppert
Entre as maiores atrizes da atualidade, a francesa falou à ELLE sobre A dona do barato, seu novo filme que acaba de estrear no Brasil, as escolhas que guiam sua carreira de quase cinco décadas, moda, pandemia e a visibilidade das mulheres no cinema.
Não deixa de ser irônico que a versão adolescente da personagem interpretada por Isabelle Huppert no filme A dona do barato, que estreia nesta quinta (23.09) no Brasil, apareça no meio da trama numa fotografia intitulada “a colecionadora de fogos de artifício”.
Tudo na atriz de 68 anos é o oposto da pirotecnia e da exuberância – quer dizer, com a exceção da marca de 125 filmes em 49 anos de carreira até aqui. Conhecida pelo estilo minimalista de interpretação e pelo gosto por personagens torturadas pelo desejo ou por impulsos de morte (às vezes os dois juntos), Huppert foi eleita pelo jornal The New York Times em 2020 como a segunda melhor atriz do século 21, atrás apenas de Denzel Washington.
Os críticos que participaram da enquete descreveram a francesa como “destemida e hipnotizante, ora assustadora, ora bizarra” e cravaram: “Não há ninguém com a sua combinação de intensidade e comedimento”. Antes, outros jornalistas já haviam saudado sua “poker face imbatível”, ou seja, a capacidade de fazer ver tormentos borbulhando por trás de um rosto glacial, de revelar o avesso da fachada burguesa do bom tom.
A atriz, aliás, abomina o politicamente correto. Em entrevista à ELLE, diz que o cinema é o terreno da liberdade, uma arte cuja razão de existir é “perturbar o espírito, fazer com que as pessoas se façam perguntas”, e nunca “estimular a boa consciência”.
Talvez por isso reconheça a importância, mas não vibre com o fato de, pela primeira vez em um mesmo ano, os dois mais importantes festivais de cinema do mundo (Cannes, na França, e Veneza, na Itália) terem concedido seus prêmios máximos a filmes dirigidos por mulheres – Titane, de Julia Ducournau, e L’Évènement, de Audrey Diwan. Huppert insiste: não há novidade, a neozelandesa Jane Campion foi reconhecida em Cannes há quase 30 anos, em 1993, por O PianoO Piano.
A Dona Do Barato – Trailer Original – Legendado
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Mas que isso não se confunda com misoginia. O currículo da francesa, afinal, traz parcerias com mais de 20 diretoras (em ao menos 26 obras), um grupo que inclui Claire Denis (um dos maiores nomes do cinema de seu país), Mia Hansen-Love e Catherine Breillat.
A atriz também parece perseguir um ideal de diversidade cultural. Já rodou sob a regência de americanos, italianos, alemães, austríacos, suíços, belgas, holandeses, húngaros, poloneses, dinamarqueses, sul-coreanos, cambojanos e filipinos, além de todos os franceses, é claro. Se existisse uma ONU do cinema, Huppert seria sua secretária-geral.
A projeção veio a partir do fim dos anos 1970, época em que engatou uma parceria com Claude Chabrol, um dos líderes da nouvelle vague – fariam ao todo sete filmes juntos. Logo vieram trabalhos com Jean-Luc Godard e Benoît Jacquot (outra figurinha carimbada em sua carreira), além das primeiras incursões internacionais. Na década de 2000, a dobradinha com o austríaco Michael Haneke a consagrou também fora da França – como a personagem-título de A professora de piano, uma instrumentista obcecada por um aluno, a atriz atestou seu apetite por figuras consumidas por sentimentos inconfessáveis e mostrou-se à vontade em cenas mais quentes.
Mais recentemente, em Elle, o papel da vítima de um estupro que se recusa a aceitar a posição de fragilidade e enrosca seu algoz em um jogo sádico lhe rendeu um Globo de Ouro e a primeira indicação ao Oscar, há quatro anos.
De glamour e tapetes vermelhos madame Huppert entende. No Met Gala, vestiu Balenciaga, grife para a qual estrelou campanha, ao lado de Justin Bieber. Era sua quarta passagem pelo evento. Para ela, a moda é um canal para darmos vazão a fantasias sobre nós mesmos; no dia a dia, porém, roupas devem “estar a serviço de quem as usa, e não o contrário”.
A atriz no Met Gala 2021.Foto: Getty Images
Patience Portefeux, sua personagem na comédia A dona do barato, segue à risca esse conselho. Intérprete de árabe no departamento de narcóticos do equivalente à polícia civil francesa, ela fica sabendo graças a um grampo que um grande carregamento de haxixe está a caminho de Paris. O condutor do lote é filho da enfermeira preferida da mãe dela na casa de repouso onde vive.
Ardilosa, ela consegue livrar o jovem do flagrante que esticaria sua pena. Ao mesmo tempo, precisando de dinheiro para bancar a acomodação da mãe e ajudar as filhas crescidas, a tradutora recupera a droga largada à beira da estrada.
Daí para frente, Patience se transforma numa espécie de baronesa do haxixe, a versão feminina (e com lenços Hermès) do Walter White da série Breaking bad. Rapidamente, ela assume o disfarce de uma grã-fina de origem árabe, com direito a hijab e óculos escuros, que escondem os olhos bem delineados. Contar mais estragaria a surpresa das reviravoltas mirabolantes.
Na entrevista a seguir, além de falar sobre o filme e a relação que ela tem com papéis cômicos, Huppert compara cinema e teatro (três peças protagonizadas pela parisiense estarão em turnê por Europa e pelos Estados Unidos até o fim de 2022), conta se há algum personagem que ela se recusaria a encarnar e aponta diferenças na maneira dos atores de criarem seus personagens em Hollywood e na França. Spoiler: você dificilmente a verá com outro visual do que seus conhecidos cabelos ruivos na altura do ombro – nada de fogos de artifício, afinal.
O que chamou sua atenção na personagem e no roteiro de A dona do barato?
Eu já tinha lido o romance da Hannelore Cayre (no qual o filme é inspirado), que é também uma advogada com experiência no meio do combate às drogas. O livro (lançado na França em 2017) trazia uma pesquisa aprofundada sobre o tema, mas, sobretudo, pintava um perfil feminino interessante, cheio de nuances. O enredo tinha muito potencial cinematográfico, com suspense e comédia. Nessa mesma época, (o diretor) Jean-Paul Salomé me procurou dizendo que tinha comprado os direitos de adaptação e que me queria no papel de Patience Portefeux. O que me interessava era a mistura de leveza e gravidade – o filme é definido como uma comédia, então não vou questionar essa classificação. Mas a personagem tem gestos melancólicos, mais misteriosos. Ela não tem muitas raízes. Isso me pareceu uma ótima matéria-prima.
Isabelle Huppert em campanha da Balenciaga.
Reprodução/ Instagram
O que mais pesa para você na hora de escolher um projeto: a personagem, o tema do filme, a direção?
É uma mistura. No geral, o primeiro fator é a direção, quem está regendo a orquestra. No caso específico de A dona do barato, foi a personagem que me seduziu, até porque, quando assinei (contrato) para fazer o filme, não sabia que o próprio Jean-Paul Salomé iria dirigi-lo. Ele gosta de personagens singelos, frágeis, que se defrontam com algo maior do que eles. O que funciona bem nesse filme, para mim, é isso: essa figura invisível e precária que de repente bate de frente com um mundo que ela não entende, mas que faz aflorar sua coragem, sua intrepidez.
A crítica da França celebrou esse seu encontro com a comédia mais franca, rasgada (o filme estreou no país no fim de 2020). Mas você já disse em entrevistas ver muito humor em vários papéis que as pessoas consideram dramáticos. O fato de a perceberem como uma atriz pouco afeita à comédia a incomoda?
Não é que me incomode. Não posso negar que há alguns filmes mais leves do que outros, né? Mas se você considerar, por exemplo, o diretor de Elle (Paul Verhoeven) ou Neil Jordan (com quem ela fez Greta), ambos são criadores que sabem misturar muito bem profundidade e ironia. Acho que a crítica e o público talvez se importem mais com as diferenças que pode haver entre comédia e drama. Um ator é indiferente a essa noção de categoria. Não há um gênero de que eu goste mais do que os outros.
Mas você tem uma queda por personagens amorais, não?
(Risos) É, isso é verdade. Não é função do cinema estimular a boa consciência. Ele existe para perturbar o espírito, fazer com que as pessoas se façam perguntas. Quero acreditar que o cinema ainda preserve uma dimensão de liberdade – mesmo que, nos tempos que correm, possamos temer estar cada vez mais presos ao politicamente correto. Não sabemos mais qual é a fronteira entre o que se deve ou não dizer. São os perigos do nosso tempo. Espero que o cinema fique impermeável a tudo isso e mantenha sua liberdade absoluta.
“A moda, para mim, encarna a liberdade, antes de qualquer coisa. É sua obrigação representar nossa fantasia sobre nós mesmos.”
Há algum tipo de personagem que você se recusaria a interpretar?
Em teoria, não. É lógico que é preciso considerar aquilo que um filme veicula como discurso, mas, na minha carreira, ao ler roteiros, raramente me fiz questionamentos éticos do tipo “ah, o filme vai dizer coisas que eu me recuso a pensar”. Não é nesse espaço, graças a Deus, que o cinema transita.
Dois filmes dirigidos por mulheres, ambas francesas (Titane, de Julia Ducournau, e L’Évènement, por Audrey Diwan) receberam respectivamente neste ano os principais prêmios dos festivais de Cannes e de Veneza, os maiores do mundo. O que isso pode significar para a visibilidade do cinema escrito, dirigido e produzido por mulheres?
Acho que o fato de os prêmios terem vindo nesses lugares (emblemáticos) marcou as pessoas, mas é preciso lembrar que Jane Campion já havia recebido a Palma de Ouro (em Cannes) em 1993, também com cerca de 40 anos à época. Não é uma novidade. Só há o que comemorar, mas não é a primeira vez.
Como você atravessou o período de confinamento imposto pela pandemia do novo coronavírus? Mudou algo na sua relação com o ofício?
Não, não mudou nada (na relação com a profissão). Houve momentos de alegria e de tristeza no meu confinamento. Por exemplo, o adiamento das filmagens no Japão de um longa, que deveriam começar neste fim de setembro. Toda a equipe estava lá, tudo estava pronto, mas o trabalho teve que ser interrompido. Além disso, eu atuo em algumas peças que tiveram suas temporadas suspensas por causa da Covid-19. Mas consegui filmar um pouco e atuar no teatro algumas vezes (entre os confinamentos de 2020/2021 e a partir do meio deste ano, quando a Europa retomou com mais vigor suas atividades culturais). Acho difícil que projetos que tratem apenas do que vivemos nesse período consigam expressar alguma coisa.
Há poucos dias, você esteve no Met Gala, um dos mais badalados eventos do circuito da moda nos EUA. Como foi a noite? Qual é a sua relação com a moda?
Foi a minha quarta ida ao Met Gala e me diverti. Desta vez, fui com o (estilista da Balenciaga) Demna Gvasalia, uma figura singular, que capta o espírito do tempo de um jeito único. A moda, para mim, encarna a liberdade, antes de qualquer coisa. É sua obrigação representar nossa fantasia sobre nós mesmos. No dia a dia, roupas podem nos revelar ou nos esconder, servem tanto para aparecer quanto para desaparecer. Elas devem estar a serviço de quem as usa, e não o contrário.
Você costuma se referir ao seu trabalho no teatro como algo mais árduo, mais difícil do que entrar num set para fazer um filme. Por quê?
O teatro pede mais energia, há nele uma dificuldade ligada ao nervosismo. O cinema é mais fácil, não me faço muitas perguntas quando estou filmando. Aliás, tampouco quando estou em cena no teatro. Mas aquilo pede mais de você, estar na frente de outras pessoas é um pouco assustador, sobretudo no começo.
A atriz em cena de “A dona do barato”Foto: Divulgação
Os críticos costumam dizer que você não desaparece sob os personagens que interpreta, que há uma qualidade “huppertiana” que sempre atravessa o fingimento. Toma isso como elogio ou crítica?
Não sei como fazer diferente, a não ser que eu cubra totalmente o meu rosto com um capuz, como aliás fez a Kim Kardashian no Met Gala. Somos o que somos. Não dá para desaparecer. Isso seria contraditório com a função mesma do ator. Por isso, não acho esse comentário muito pertinente.
Acho que se referem talvez ao fato de sua aparência não mudar significativamente de um filme para o outro…
Sim, entendo. Ainda que, no caso de A dona do barato, eu me fantasie bastante, seguindo o que o papel pede. Mas percebo o que você quer dizer. Talvez essa transformação seja algo mais próprio dos atores estadunidenses. Os franceses fazem esse movimento de dentro para fora, a mudança é íntima. Estava vendo ontem um filme em que Jessica Chastain está incrível, The eyes of Tammy Faye. A transformação dela é impressionante (em entrevistas, a atriz estadunidense disse ter passado até sete horas por dia na sala de maquiagem antes de entrar no set). Fiquei mesmo pensando que os atores franceses não vão tão longe nesse tipo de subterfúgio, ou simplesmente buscam outras formas de se transformar, menos exteriores.
A disputa entre os gigantes do streaming e a exibição tradicional em salas de cinema tem na França um dos seus palcos principais – o Festival de Cannes, por exemplo, não aceita em sua competição filmes que não serão lançados na tela grande, como os da Netflix. Como você se posiciona nessa queda de braço?
A ideia de nunca mais ver um filme em uma sala de cinema é bem complicada. Graças a Deus, mesmo as produções da Netflix podem às vezes ser exibidas no cinema. Tenho duas salas de cinema em Paris (o marido e um dos filhos da atriz trabalham no ramo de exibição de filmes), onde já tive a oportunidade de programar algumas sessões de filmes deles. Então, de um ponto de vista bem pessoal e egoísta (risos), resolvemos o dilema, respondemos a pergunta.
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