Quem é Gandja Monteiro, a brasileira que dirigiu dois episódios de “Wandinha”
Criada entre o Rio de Janeiro e Nova York, diretora tem clipes e séries como "The Witcher" no currículo e se prepara para filmar o primeiro longa.
Sucesso global da Netflix, Wandinha está mais conectada ao Brasil do que o barulho que fez por aqui possa sugerir – desde o fim de novembro, a série é a produção para a TV da plataforma mais assistida no país. Wandinha tem Tim Burton, de longas como Edward mãos de tesoura (1990) e A noiva cadáver (2005), como diretor e um dos produtores-executivos. Mas, entre os oito episódios de sua primeira temporada, dois foram assinados por uma estadunidense bem brasileira, com pais mineiros e uma juventude entre o Rio de Janeiro e Nova York: Gandja Monteiro, 39 anos. “Eu nasci em Nova York e morei no Brasil quando era pequena. Tenho sangue mega mineiro, mas meu pai mora no Rio”, conta ela, que vive em Los Angeles há 12 anos, em um papo em português que se mistura com palavras em inglês.
Divulgação
Apesar da repercussão estrondosa, incluindo duas indicações ao Globo de Ouro (melhor série e melhor atriz de comédia ou musical para a protagonista Jenna Ortega), o convite para dirigir o quinto e o sexto episódios da série sobre a adolescente de A Família Addams em sua nova escola não marca exatamente um ponto de virada na carreira de Gandja. A diretora já carrega em sua bagagem a direção de episódios em grandes produções como The Witcher (Netflix) e Dead city, spin-off de The Walking dead, ambos previstos para irem ao ar no ano que vem. Em breve, começa a trabalhar em uma produção para a Marvel.
Mas Gandja sabia que a chance de se conectar com Tim Burton seria especial. “Ele é um doce, sempre viveu fora do óbvio, como um artista alternativo, mesmo fazendo projetos grandes. A gente ficou amigo, só que ele estava super ocupado, dirigindo os episódios dele e depois preparando os outros (como produtor-executivo de Wandinha)”, conta. “A gente filmou fora de ordem porque a Catherine Zeta-Jones e o Luis Guzmán (que vivem os pais da protagonista) só podiam ficar na Romênia (onde aconteceram as filmagens) por cinco semanas.
Foi tempo suficiente para jantar com o diretor e perceber, por exemplo, que ele não usa celular. Nos momentos de ócio, desenha em seu caderninho. “Ele cria aqueles personagens que a gente imagina mesmo. Tem esse approach que é uma coisa mais clássica e séria, menos distraída pela cultura das redes sociais em que a gente vive. Acho que ele é um exemplo de um artista completo, uma inspiração realmente.”
Jenna Ortega (Wandinha), Issac Ordonez (Feioso) e Gandja Monteiro nas gravações da série da Netflix
Vlad Cioplea/Netflix © 2022
De norte a sul da América
Para além, claro, de seu talento e suas conexões profissionais, as oportunidades para estar hoje na linha de frente de projetos desse porte, acredita a diretora, estão relacionadas à sua vivência, construída com viagens de Norte a Sul pela América durante toda a juventude. Gandja cursou cinema na New York University (NYU) e dirigiu alguns trabalhos publicitários no Brasil e nos EUA, até seu primeiro curta, Quase todo dia (2008). Gravado no Rio de Janeiro, o filme mistura ficção e realidade ao narrar o trajeto da atriz Priscilla Marinho com a filha entre o Recreio dos Bandeirantes e o centro da capital fluminense. O longa estreou no Festival de Tribeca e chegou a ser exibido pelo Festival do Rio e pela Mostra de São Paulo.
Três anos depois, em Nova York, com um orçamento de “zero dólares” e uma câmera, relembra aos risos, dirigiu o videoclipe de “Sorrisos e lágrimas”, de Emicida. Um ano depois, assinou o projeto do disco Nada pode me parar, de Marcelo D2, com 15 vídeos. “Eu manifestei uma vida paralela, uma carreira que estava meio entre as duas culturas, só que numa versão bem independente. Então, vi que existia essa ‘dança’ entre os dois lugares, não precisava ser só uma brasileira em Nova York ou uma nova-iorquina brasileira. Queria ter uma vida mais fluida mesmo.”
A vida mais “fluida” já era um incentivo da família desde a infância. “Minha mãe viveu no mundo da classe média alta no Brasil, na sociedade mineira, e se tocou que era um universo pequeno, fechado. Ela queria algo mais para mim e meus irmãos. Quebrou as normas e caiu fora”, lembra. “Meu pai também viaja desde sempre, já visitou mais de 120 países. Então, é uma coisa de realmente pensar fora da caixinha de como criar uma criança para ter oportunidades”, diz. “Porque, afinal, ser latino é ser latino, entendeu? Mesmo eu tendo essa experiência, que é normal, é bem contra o que as pessoas esperam de um imigrante. Eu nasci aqui (nos Estados Unidos), fiz a escola inteira, da segunda série até o fim da universidade.”
Gandja vê a indústria de entretenimento querendo usufruir dessas múltiplas perspectivas. “Essa coisa de ser brasileira, latino-americana, norte-americana, beber de todas as fontes… Hoje em dia, nessa globalização completa, lógico que todo mundo tá meio nessa.” Ainda que a mudança venha a passos lentos. “É difícil falar ‘mudou’. As pessoas que são as gate keepers (detentoras de oportunidades), que têm a chave do castelo, não mudaram. Os chefes de todos os estúdios não são pessoas como a gente”, diz. “Se você quiser assistir a uma história sobre um jovem árabe ou egípcio morando em New Jersey, tem uma série, Ramy (indisponível no Brasil). Quer ver uma história sobre um moleque palestino que cresceu em Houston e está ilegal no país até hoje? Existe Mo (Netflix)! Neste momento, as histórias que são contadas estão tendo um pouco mais de diversidade. Eu acho que as audiências estão muito mais inteligentes, entendem os problemas antigos.”
Em Wandinha, Gandja pôde ver de perto a importância dessa diversidade na sala de roteiro, onde são desenvolvidas as histórias. “O meu episódio 5 é sobre a mãe e a filha (Wandinha e Mortícia). Não tinha tido antes um momento para a gente entender realmente quem são essa jovem e essa mãe. A presença de mulheres (na sala) trouxe essa pegada mais sensível e feminina, e eu acho que realmente faz uma diferença enorme em descascar um pouco as camadas da Wandinha.”
“É muito mais fácil para um jovem homem branco conseguir uma oportunidade de dirigir um megafilme de ação do que para uma latina, negra ou uma mulher, em geral”
Da sala de roteiro para a cadeira de diretora, as dificuldades ainda esbarram em preconceitos como a ideia de que as mulheres não entendem de tecnologia. “É muito mais fácil para um jovem homem branco conseguir uma oportunidade de dirigir um megafilme de ação do que para uma latina, negra ou uma mulher, em geral. Você precisa de muito mais experiência, como mulher, para pegar um job com computação gráfica e efeitos visuais, com ação, qualquer coisa um pouco mais elaborada.”
Recém-saída do castelo de A família Addams e ciente do privilégio que é neste contexto poder escolher a dedo os projetos nos quais quer embarcar, Gandja prepara-se agora para dirigir seu primeiro longa, a ser lançado pela Warner Brothers. “É baseado numa história real sobre um hacker que era um dos líderes do Anonymous, Hector “Sabu” Monsegur, e que hackeou governos. É um porto-riquenho que cresceu a meio quarteirão de onde eu passei a juventude em Nova York. Literalmente, meu bairro. A gente vai filmar ano que vem com o ator Anthony Ramos (Amor, sublime amor)“, celebra.
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