Rico Dalasam retorna mais maduro em seu segundo disco
Depois de quatro anos e um cancelamento, cantor reflete sobre afetividade preta e relacionamentos interraciais em Dolores Dala Guardião do Alívio.
Não dá para limitar a trajetória musical de Rico Dalasam ao rap, ao queer rap ou ao pop. Ele é tudo isso, mas também é muito mais e de forma profunda. O cantor toca em feridas sociais com a afetividade preta e os relacionamentos interraciais com o acalanto da intimidade, com o cuidado de quem conversa com alguém que ama, às vezes de forma áspera. Mas ele fala. E ao verbalizar, torna esses conflitos evidentes e gritantes. Seja em rimas ou nas redes sociais, sua voz é incômoda e sua figura indigesta para muita gente. Ele sabe disso. Mas aos haters é permitido dizer muito sobre Rico Dalasam, menos chamá-lo de medíocre.
É neste flow que ele lança o álbum Dolores Dala Guardião do AlívioDolores Dala Guardião do Alívio, com vídeo (abaixo) que complementa esta grande fábula, contada e cantada pelo Dalaboy.
Aos 31 anos – completa 32 no primeiro dia dos leoninos –, o cantor de Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, construiu uma obra madura e libertadora em que a dor é evidente depois de um período de afastamento. “Eu cheguei à conclusão de que esse movimento do meu retorno se tratava muito mais de alívio, porque havia doído muito já.”
DOLORES DALA GUARDIÃO DO ALÍVIO – O FILME
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O regresso acontece depois de quatro longos invernos e de uma exaustiva briga judicial com nomes de grande notoriedade. Dalasam lançou, em janeiro de 2017, o hit “Todo Dia” ao lado de Pabllo Vittar. A faixa entraria no álbum de estreia da cantora e foi a canção mais tocada no Carnaval daquele ano. Só o clipe foi reproduzido mais de 10 milhões de vezes em apenas dois meses. O conflito aconteceu por questões autorais e porque o cantor não se sentiu representado corretamente na fatia do bolo. Em entrevista à revista Veja, ele afirmou: “Eu sou 100% o autor da música, que entreguei com letra e melodia.”
Sem citar o nome da Pabllo, de quem ele nunca falou mal em todo o processo, ou de qualquer outro envolvido, ele afirma. “Não vou ficar aqui botando nome de artista, porque no fim artista não tem nada a ver. É bagulho de produção e de negócios. No sumo, na questão, é uma pessoa preta indo atrás do direito trabalhista e isso sendo posto para julgamento da sociedade.” E acrescenta: “Para algo dar certo, houve um combinado. Para algo dar errado, houve um combinado com a fala ou com o silêncio”.
Apesar de falar com tranquilidade sobre seu processo e consequente cancelamento, há um evidente esforço para ser enxergado pelo seu talento. Sem o acesso às portas que os muitos milhões de views e de seguidores abrem, o cantor fez um mergulho íntimo e profundo. Como resultado, as 11 faixas do disco que você tem a oportunidade de escutar. “Eu precisei pegar as palavras, o que eu posso fazer com as palavras, porque foi o que ficou: eu e elas. Eu precisei ser íntimo da palavra, eu não podia ser raso, fazer umas linhas, umas punchlines (frases de impacto nas rimas), uns refrões e um hit. Eu tive que tirar algo lá de dentro de mim, elaborar e traduzir isso sem perder efeitos da tradução.”
Músicas, como ele mesmo diz, com “penetração sanguínea no país”, que dialogam com o pop e que podem ser grandes sucessos ele tem. Elas são guardadas a sete chaves para um outro momento da vida. Sobre o presente, ele afirma. “Se eu puser um hit vou ser silenciado, o hit vai estar lá, a música forte, potente, mas ela não vai andar, porque algumas pessoas decidiram me botar no mute.”
E mesmo que o mundo conspirasse para que Dalasam gritasse em silêncio, uma das músicas deste novo álbum, “Braille”, belíssima canção sobre um relacionamento interracial, acumula mais 2,7 milhões de plays no Spotify, mais de 1 milhão de visualizações no YouTube e ganhou o Prêmio Multishow de melhor música no ano passado.
Rico Dalasam feat. Dinho – Braille [HORIZONTE SESSIONS]
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A partir do estrondo de “Braille” é possível voltar a mergulhar em seu disco, e perceber que há algo muito profundo aí. Sua fábula mostra as dores, o silenciamento, o racismo, o abuso, o afastamento e chega à última faixa, “Estrangeiro”, com o distanciamento saudável para o coração e para a saúde mental: “Fui. Por que acabou a fé? Não, porque acabou o amor.”
Na música, ele fala sobre os sentimentos, pessoais e gerais, que resolveu trazer. “É um vespeiro você falar desse lugar subjetivo das emoções pretas. São coisas extremamente dolorosas, socialmente já impostas com uma série de discussões que ainda são mal elaboradas na sociedade. Isso nem adianta o lado dos afetos e das emoções de pessoas pretas, nem educa e muito menos cura. Sempre fica nesse imbróglio.”
Dalasam vai mais fundo nesse sentimento. “Neste contexto de ser preterido, tem coisas muito básicas, como numa brincadeira na escola, como um trabalhinho em grupo, como um ‘desenhe seus amigos’ e você não está no desenho de ninguém. Essas coisas vão sendo plantadas ali. Aí vem a adolescência, que é quando escarnece as coisas, e você é taxado diretamente de feio, é taxado diretamente de uma série de coisas que são atribuídas a você, que estão extremamente ligadas ao racismo e à estrutura. E vem a vida adulta, quando isso ganha não só a sofisticação do que ela propõe, mas também encontra suas variáveis, porque é quando você consegue reencontrar outra vez seus pares, as coisas vão dando outros caminhos.”
Outra faixa que grita é “Não é Comigo”, um áudio de WhatsApp de 1 minuto e 34 segundos sobre a dor de um relacionamento em que uma das pessoas não é vista: “Se tiver uma festa de fim de ano da sua empresa, do seu trabalho, que cada um vai levar sua companheira, seu companheiro, você vai segurar o reggae de me levar? Não vai”.
Foto: Larissa Zaidan/Divulgação
O cantor fala sobre este sentimento. “No comum desse contexto, primeiro você passa por essa situação várias vezes sem mandar este áudio. Você vive, você tolera, você acredita que é uma via natural do mundo dos relacionamentos. Já é tão difícil viver um bom relacionamento, já é tá difícil conhecer alguém, que isso se desdobre, já é tão difícil uma série de coisas.” Ele acrescenta: “Quando as pessoas estão imersas numa relação, imersas no efeito da paixão, elas dão solução para as coisas, elas não querem confrontar. Ninguém se relaciona para ficar vivendo um conflito, se relaciona para tomar um sorvete, para falar um bom dia, para tomar um café da manhã junto, para assistir a um filme, para compartilhar a vida. Não para ficar em confronto e debate”.
Rico fala ainda sobre um outro ponto marcante em toda a sua carreira, sua preocupação estética. “Quando a sociedade não consegue absorver a sua existência, você precisa trazer códigos que sejam legíveis. Eu sempre tentei ser legível, nem sempre decodificável, mas sempre legível. Não dá para eu ser o mano que só botou a calça jeans e a camiseta branca e foi.” Ele fala também de suas referências. “Eu vou lá na berber music, no Egito, no Marrocos, num lugar muito longe, que não é o do design deste momento, da Prada, da Balenciaga, que é a emoção jovem. As pessoas estão esperando os Estados Unidos ou as maisons europeias. E vou a lugares que servem de pesquisa para esse universo. Ninguém vai nos conceitos do Norte da África, nas profundezas dos povos nômades, os tuaregues, as pessoas do deserto. E é onde a gente se identifica, de forma ancestral. Minha obra não é o dia do desfile, é o dia da pesquisa.”
Dolores Dala Guardião do Alívio, produzido por MahalPita, Dinho Souza, Rafa Dias, Pedrowl, Moisés Guimarães, Netto Galdino e Wallace Chibatinha, é um alento. Uma obra necessária e com discussões profundas. É a redenção de um artista que precisou recolher os cacos, profissionais e pessoais, para se reerguer de forma madura e grandiosa. É, para se alguém ainda tinha dúvida, o certificado do talento de Rico Dalasam, um nome que extrapola os rótulos e evolui a cada lançamento.
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