Terror e racismo andam juntos em Lovecraft Country
Jurnee Smollett fala sobre a sua personagem Leti e os bastidores da série produzida por Jordan Peele.
Por mais louco que esteja esse 2020, você não vai se deparar com monstros cheios de tentáculos, olhos e textura pegajosa que surgem em Lovecraft Country. Já o principal vilão da nova sensação exibida aos domingos pela HBO está definitivamente à solta: a série de dez episódios assusta com criaturas de outro mundo, mas o mais aterrorizante é o racismo explícito da sociedade segregacionista norte-americana dos anos 1950, onde a história se passa, que continua tristemente presente no mundo real e atual.
Cada novo episódio de Lovecraft Country, que estreou em 16 de agosto, é recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público. Mesmo antes do lançamento, a expectativa já era grande por causa do nomes envolvidos nos bastidores: baseada no livro homônimo de Matt Ruff, a série tem Misha Green (da série Underground) como criadora e Jordan Peele (diretor dos filmes Nós e Corra!) e J.J. Abrams (um dos criadores de Lost) na produção executiva.
O ponto de partida da história é uma carta encontrada pelo veterano de guerra Atticus Black, assinada por seu pai desaparecido. Junto com o tio George (Coutney B. Vance) e a amiga Letitia Lewis (Jurnee Smollett), a Leti, ele parte numa jornada em busca do pai, que se revela mais perigosa a cada episódio.
O nome da série é uma referência ao escritor Howard Phillips Lovecraft, mais conhecido como H.P. Lovecraft, de quem o personagem Atticus é fã. Reconhecido por sua contribuição ao gênero do terror, precursor do chamado “horror cósmico”, que envolve alienígenas e outras criaturas bizarras, Lovecraft era também um racista notório – fato que acaba transparecendo em suas obras, onde o herói é geralmente um homem branco e as personagens do mal são pessoas miscigenadas e outras minorias. Uma das grandes sacadas do autor Matt Ruff e dos roteiristas é inverter o jogo: em Lovecraft Country, os heróis são negros e os vilões, supremacistas brancos.
Na entrevista a seguir, a atriz Jurnee Smollett, conhecida pelas séries True Blood e Underground, fala sobre racismo, colegas de elenco e de como referências familiares a ajudaram a construir sua personagem.
Jurnee Smollett: “Não queria ser a garota negra que morre na página 33”.Foto Divulgação/HBO
O que a atraiu neste projeto? E o que você sentiu ao ler o roteiro pela primeira vez?
Underground tinha acabado de ser cancelada e eles estavam tentando encontrar um lugar para a série. Eu sabia que a Misha [Green] estava trabalhando neste projeto. Quando ela acabou de escrever o piloto, me mandou informalmente para ler, como amiga. Eu estava recebendo propostas de outros showrunners. Mas já nas primeiras páginas senti saudade do estilo do texto, do brilhantismo dela. Então, quando cheguei à Leti no roteiro, à maneira como ela é apresentada, imediatamente senti que ninguém além de mim poderia interpretá-la. E pensei: “por que a Misha não me falou desse papel?” [risos].
Fiquei obcecada. Quando acabei de ler o roteiro, não conseguia dormir pensando na história. Eu me sentia muito atraída pelo espírito da Leti, uma mulher alegre e um pouco perturbada, com muitas contradições. Ela saiu de casa em busca de um lar, e tenta desesperadamente renascer e se livrar de como era.
Ela lida com esse sentimento de se sentir deslocada, que eu reconheço, porque sendo uma mulher americana negra tenho essa sensação. Era um projeto muito empolgante, essa ideia de recriar o gênero de uma maneira tão ousada me entusiasmou muito.
Você tinha trabalhado com a Misha Green em Underground. Como foi trabalhar com ela de novo em Lovecraft Country?
Foi muito empolgante, agora temos uma grande sintonia. Quando começamos a trabalhar juntas no piloto de Underground, eu não a suportava e ela não me suportava, nos odiávamos e brigávamos muito, porque nós duas temos personalidades fortes. Depois, aprendemos a linguagem do amor uma da outra e, ao longo das temporadas, nos tornamos muito próximas. Quando estávamos filmando Lovecraft, eu conhecia tão bem o estilo dela e ela conhecia tão bem o meu processo que a experiência fluiu muito bem.
Você é fã de ficção científica e de terror? Como você se sentiu com relação a esse projeto, considerando que não costumamos ver pessoas negras à frente desse tipo de série?
Terror, ficção científica, thriller são gêneros que eu cresci amando, como todo mundo. Eu me lembro de ter visto O Silêncio dos Inocentes aos 10 anos em uma festa do pijama da minha irmã com as amigas – eu dormi na sala com elas porque eu achava legal [risos]. Eu me lembro do Hannibal e dessa capacidade de usar o terror de modo efetivo. Mas como artista me sentia excluída desse gênero. Não é que não tenha recebido propostas ou tido a oportunidade de interpretar papéis, mas muitas vezes esses gêneros nos anulam como artistas negros. Muitas vezes eu gritei para o meu empresário que não queria ser a garota negra que morre na página 33, que é o destino que muitos roteiristas traçam para os nossos personagens nesses gêneros. Então, era muito frustrante me sentir excluída de algo de que eu era fã. Além disso, eu não queria sacrificar minha integridade artística e fazer uma coisa que não me estimulasse do ponto de vista criativo.
Ao longo dos anos, eu me entusiasmei muito com pessoas como o Jordan Peele. Ver agora a Misha reinventando esse gênero de maneira tão radical, colocando os negros como protagonistas em um gênero do qual sempre fomos excluídos, é realmente emocionante para mim.
Como foi trabalhar com o Jonathan Majors [que interpreta Atticus Black]? Parece que vocês tinham um ótimo relacionamento.
Tínhamos apelidos entre nós: “trovão e relâmpago”, “Atticus trovão Freeman”, “Letty relâmpago Lewis”. Ele é o meu parceiro no crime. Nós realmente aprendemos muito um com o outro nesse processo. Entramos em sintonia um com o outro. É claro que você entra sabendo que é um projeto pesado, mas sinceramente você só faz bem se o seu parceiro também fizer. Havia uma determinação em apoiar o outro. Não tínhamos conversado sobre isso, mas acho que nós dois sentimos a mesma coisa. Para mim, ele é um artista fenomenal. Foi uma alegria trabalhar com ele.
A série se passa na década de 1950, nos Estados Unidos regidos pela legislação segregacionista, mas às vezes parece muito atual. O que você acha disso?
Eu sinto que a história é muito ancestral. Os nossos heróis estão em uma missão para derrubar a supremacia branca, o racismo é um espírito demoníaco. Vemos que eles estão envolvidos em uma guerra espiritual e os riscos são altos. O Lovecraft era um mestre do terror, mas também era racista. O triste do racismo estrutural que vigora no nosso país desde 1619 é que essa série poderia se passar em qualquer dia, mês ou ano desde 1619 e, lamentavelmente, os temas que abordamos continuam sendo relevantes. Como nação, ainda não curamos nem enfrentamos o racismo sistêmico, é preciso desintegrá-lo. É triste que esses temas da série sejam atuais, mas você poderia me dizer uma época em que não seriam?
O relacionamento da Leti com a irmã, Ruby [interpretada por Wunmi Mosaku], é bastante duro. Como você lidou com isso no papel?
Eu sou muito próxima dos meus cinco irmãos e entendo essas diferenças nas dinâmicas, a frustração com a família às vezes, em situações em que você quer dizer: “Não, me vejam como eu sou. Parem de ver meus erros e as besteiras que eu fiz no passado, e simplesmente me vejam como eu sou agora”. Existe um amor fraterno que nunca será destruído.
Mesmo assim me fascinou explorar a animosidade e os ressentimentos entre elas porque as duas estão tentando se recuperar da separação mãe-filha que sofreram. A Leti estava obviamente afastada da mãe de um modo diferente da Ruby, mas as duas se ressentem muito porque a mãe não foi como elas precisavam. Infelizmente na época houve muitos motivos que a fizeram não ser a mãe de que as duas garotas precisavam. Mas as feridas ainda estão abertas, e elas estão processando isso de modos diferentes. Leti rejeita, foge, tenta encontrar aquilo de que precisa em outro lugar. Ruby tem que lidar com essa confusão, tem muita roupa suja para lavar. Daí vem muita tensão e muito ressentimento, já que Ruby não pode fazer as mesmas escolhas da Leti. Basicamente, a Leti não pode ser confinada. Eu adorei trabalhar com a Wunmi. Ela é uma atriz tremendamente talentosa.
Foi bonito ver a Leti e a Ruby cantando juntas. Como foram os ensaios e as gravações?
Nos ensaios, a Wunmi e eu realmente nos divertimos. Nós estávamos nos dedicando muito e procurando fazer tudo certo, aí a Misha chegou e disse: “Meninas, divirtam-se! Pensem na Beyoncé e na Solange no palco do Coachella”. Nós rimos e dissemos: “Ok, vamos lá!”. Sinceramente, nós nos divertimos muito juntas.
É verdadeiro explorar as diferentes nuances da relação entre irmãs. Você ama e odeia a outra ferozmente, então, pode subir no palco e se lembrar da infância, de quando dançavam e cantavam na igreja. Essa memória está no seu corpo.
“O racismo é um espírito demoníaco e esse nível de terror no nosso país não é ficção. É real.”
Leti era muito independente e obstinada para uma mulher dos anos 50. Você sentiu essa resiliência ao interpretá-la?
Sem dúvida eu sentia que tinha que explorar esse desafio e sua capacidade de romper com padrões. Ela me despertava muita curiosidade. Ela fez uma escolha clara ao rejeitar tudo que sua mãe representava. Ao mesmo tempo, rejeitava as pressões sociais, os comportamentos que a sociedade esperava de uma mulher negra em 1955. Ela corria o dobro dos riscos sendo mulher e negra. Havia mulheres como ela e é por isso que hoje temos a referência da Lorraine Hansberry, que disse: “Não, eu devo usar a minha voz. Não pedirei permissão para para isso”. Também nos inspiramos na Althea Gibson, que disse: “Eu adoro jogar tênis e, custe o que custar, me tornarei a melhor”. Nós evoluímos a partir destas mulheres resilientes.
Por isso eu digo que a história da série é muito ancestral. Eu conheço essas mulheres, elas são a minha mãe, a minha avó, a minha tia. Eu cresci ouvindo histórias sobre a minha avó, que participava de concursos de beleza. Ela foi a primeira Miss Negra de Galveston, no Texas, e criou quatro filhos sozinha, limpando casas de brancos. Mas todos os dias ela se levantava com a dignidade de qualquer outra Miss, se vestia, passava a roupa e arrumava o cabelo para ir trabalhar limpando as casas dessas famílias que a desprezavam. Mas ela não permitia que eles roubassem sua dignidade. Para mim, crescer ouvindo isso me aproximou da Leti, do modo como ela vai lutar, espernear e gritar para manter sua dignidade. E isso é algo que eu admiro muito no DNA dos nossos ancestrais. É por isso que estamos aqui.
O que você espera que Lovecraft Country deixe para o público?
É muito difícil para um artista dizer ao público como a arte deve impactá-lo porque essa é a beleza da arte: ter um impacto diferente em cada um de nós. No entanto, acho que uma das coisas que Lovecraft Country promove é a exploração dos segredos obscuros das famílias. A história é essencialmente essa: uma narrativa familiar. Acho que todos nós vamos reconhecer membros das nossas famílias nessa história.
Os monstros da série são assustadores, mas podemos dizer que o racismo e a polícia representam monstros na série também. O que os monstros simbolizam para você?
Eu não posso contar muita coisa, mas acho que o que eles representam vai mudando. O racismo é um espírito demoníaco e esse nível de terror no nosso país não é ficção. É real. Eu sinto isso. Os monstros representam várias coisas, mas no seu pior aspecto eles representam o pior dos Estados Unidos. Não quero falar muito porque haverá uma evolução desses monstros.
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