Você realmente sabe quem é Andy Warhol?

Retrospectiva na Tate Modern, em Londres, reforça identidade queer e aspectos políticos ofuscados na produção do artista de muitas faces, que redefiniu a arte do século 20.


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Oartista que desejava ser uma máquina certamente falhou em uma etapa decisiva desse processo: nunca foi capaz de produzir uma versão homogênea e padronizada sobre si mesmo. Não que isso fosse possível ou de fato almejado por Andy Warhol (1928-1987). Se a construção de sua autoimagem era tão importante quanto o conjunto da obra – ou mesmo sua melhor síntese –, o resultado foi também um emaranhado de versões ambíguas, impactando em leituras às vezes superficiais sobre o artista mais influente do século 20.


Uma retrospectiva em cartaz na Tate Modern, de Londres – que reabre no dia 27 deste mês após a quarentena – busca rever alguns dos mitos sobre Warhol, um deles sobre sua suposta assexualidade. A exposição coincide com o lançamento este ano de uma nova biografia sobre o artista – Warhol: a Life As Art, do crítico de arte Blake Gopnik, que também desmistifica Warhol enquanto um assexual voyeurista, compilando histórias de sua vida íntima na cena gay de Nova York.

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Autorretrato, Andy Warhol, 1986. Acervo Tate.
© 2020 The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc. / Licensed by DACS, London.

É verdade também que muitas das suposições sobre Andy Warhol foram construídas a partir das declarações dadas por ele mesmo. O documentário Andy Warhol, Portrait of an Artist (1973), de Lana Jokel, reúne um bom apanhado de suas falas lacônicas e enigmáticas respondidas em um tom quase robótico que adotou em entrevistas. Como quando afirmou ter feito as caixas de Brillo Box “porque era mais fácil” do que uma escultura original; ou ao definir o que é arte apenas como “uma palavra mais curta para artista”.

A famosa frase “eu quero ser uma máquina” é outro exemplo que parece fazer todo sentido para o artista que dizia querer eliminar qualquer traço de individualidade, buscando na repetição formas de se despersonalizar até desaparecer – outro desejo citado por ele com frequência. Mas essa é também uma das contradições de sua obra. A busca pela padronização nunca era de fato concretizada – em suas serigrafias, embora a imagem fosse a mesma, cada uma era diferente da outra; as falhas eram incorporadas ao processo de reprodução mecânica como jamais aconteceria em uma produção industrial. Essa mesma ideia acabou alimentando uma visão de Warhol como uma figura blasé e esvaziada de emoção, desinteressado pelas questões do mundo (“Não me envolvo com política”) ou por sexualidade (“Sexo é tão abstrato”) – apesar desses temas estarem presentes em sua obra de maneira nem um pouco indiferente. Na autobiografia From A to B and Back Again – The Philosophy of Andy Warhol (1977), embora a palavra sexo apareça 59 vezes, há várias menções que sugerem um interesse abstrato no assunto, em frases como “sexo é mais excitante na tela do que entre lençóis” ou “é engraçado pensar em sexo e nostalgia.”

Uma das interpretações para a perpetuação da ideia de um Warhol assexual é a de que essa seria uma forma de ocultar sua identidade queer – talvez incentivada até pelo mercado de arte, como sugerem os curadores Gregor Muir e Yilmaz Dziewior no texto que apresenta a retrospectiva na Tate. Em 2020, no entanto, a estética queer não só está explícita como é um dos pilares da mostra.

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A performer Wilhelmina Ross retratada por Andy Warhol em 1975, na série Ladies and Gentlemen. Coleção particular italiana.© 2020 The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc. / Licensed by DACS, London.

O envolvimento de Warhol com a cena queer de Nova York aparece logo no início da mostra, com os famosos desenhos homoeróticos feitos nos anos 1950, quando ainda era um ilustrador e designer gráfico. O conjunto de fragmentos íntimos de corpos e cenas de sexo é visto junto ao filme Sleep (1963) – cinco horas de uma noite de sono sem corte do poeta John Giorno, que foi também seu amante. Outro ponto forte desse recorte é a sala com 25 pinturas da série Ladies and Gentlemen (1975), com retratos de figuras da comunidade trans de Nova York, como a ativista Marsha P. Johnson e a performer Wilhelmina Ross.

Os outros dois enfoques da mostra apresentam Warhol enquanto imigrante e o seu interesse por temas como morte e religiosidade – Andrew Warhola, seu nome original, cresceu em um gueto de uma comunidade eslava em Pittsburgh, numa família de católicos ortodoxos. A escolha dos três recortes revela uma abordagem curatorial identitária e mais biográfica. Mas no caso de Warhol, para quem a identidade era também um artifício, é impossível traçar qualquer separação entre arte e vida. Em um trecho de sua biografia escrita por Victor Brockris (Warhol: The Biography, 2003), outra de suas frases indica o quanto a fabricação de si era uma produção artística constante: “Às vezes é tão incrível chegar em casa e tirar meu terno de Andy.”

Houve quem criticasse o recorte explicitamente identitário da retrospectiva – para a crítica do The Guardian, Laura Cumming, os curadores forçam a barra em tentar fazer de Warhol um “ativista queer.” De fato, pode haver um esforço exagerado em apresentar sua obra a partir de discursos muito contemporâneos a todo momento. Ao mesmo tempo, a estética queer está diretamente relacionada com a fabricação de identidades que tanto marcou a produção do artista – talvez seu trabalho mais definitivo.

A exposição Andy Warhol foi inaugurada no dia 12 de março e teve que ser fechada cinco dias depois por causa da pandemia de Covid-19. Reabre na segunda-feira, 27, e continua em cartaz na Tate Modern até 15 de novembro. Para fazer um tour pela mostra com os curadores, clique no vídeo abaixo.


Andy Warhol at Tate Modern – Exhibition Tour | Tate

Foto na abertura da reportagem: Divulgação Tate Modern

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