Arranjos fora do comum sustentam uma boa causa

Em seu ateliê, Kety Shapazian cria composições vibrantes com folhagens, flores e tinta para viabilizar o trabalho voluntário da filha Gabriela nos campos de refugiados.


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Foto: Divulgação



“Eu não vendo flores para quem gosta de arranjo convencional”, avisa Kety Shapazian logo no começo da conversa. Nem precisava: uma rápida olhada no Instagram do seu ateliê Flores para os Refugiados já deixa claro que o trabalho de Kety passa longe do lugar comum. São composições ousadas, em que texturas diversas e cores vibrantes transformam cada arranjo em um acontecimento. Folhagens ganham camadas de tinta cuidadosamente aplicadas com spray. Algumas são ainda recortadas e se misturam a flores secas, capim dos pampas, galhos de algodão e outros elementos. A inspiração para as criações pode vir das mais inusitadas fontes: da fachada das casas à direção de arte da série Sex Education, de fotos ao azulejo do banheiro que aparece em uma cena de Stranger Things, tudo atiça a criatividade dessa jornalista que enveredou pelo design floral há quatro anos.

A história por trás da empreitada é tão original quanto as criações de Kety. Em 2016, ela e a filha Gabriela, então com 16 anos, resolveram ajudar um casal de refugiados sírios que haviam conhecido pelo Facebook. Como a moça estava grávida, organizaram um chá de bebê em casa – dessa forma, as pessoas que ajudaram o casal via rede social poderiam conhecer os sírios pessoalmente, e vice-versa. No dia do evento, Kety foi presenteada com um pequeno arranjo de flores. Veio o estalo: “Eu olhei para aquilo e falei ‘vou vender flor'”, relembra ela.

No início, Kety até tentou o mundo tradicional da floricultura, montando buquês clássicos, enrolados no papel kraft. Mas não era por ali seu caminho. Pesquisando referências da área, como Sophie Parker, Brittany Asch, Emma Weaver e Manu Torres, a paulistana viu que o design botânico podia ir muito além e começou sua busca por uma identidade única. “O que é bom gosto? Criatividade? Beleza? Para mim, é bem claro. Não sei definir, mas eu vejo no meu arranjo”, diz.

Mulher sentada na mesa em seu atelie

Kety Shapazian em seu ateliê: inspiração vem de casas a cenas de séries.Foto Divulgação

O plano B da jornalista, no entanto, não se resume apenas a uma mudança de carreira. Os arranjos foram também a maneira encontrada por ela para viabilizar o trabalho humanitário que a filha Gabriela faz com refugiados que atravessam as fronteiras da Europa. Desde 2015, Gabriela passa boa parte do ano atuando como voluntária no acolhimento de pessoas que arriscam as vidas em travessias de barco para conseguir entrar em países como Grécia e Turquia. Em campos superlotados para refugiados, ela dá aulas para adolescentes, ajuda na cozinha e participa da montagem de bibliotecas e outros projetos. “O Flores para os Refugiados não existe sem o trabalho da Gabi e ela, por sua vez, não consegue ajudar ninguém sem o Flores para os Refugiados.” Por causa do visto, Gabriela entra e sai da Europa com frequência. Este ano, com o fechamento das fronteiras, ela se viu impedida de voltar para o seu trabalho pela primeira vez. Agora está em São Paulo esperando o pico da pandemia passar no Brasil e seu visto ser aprovado novamente.

Flores do chão ao teto

Os arranjos são todos montados no ateliê de Kety, lotado de flores secas pendentes do teto. “Aqui é o reino da fantasia, minha Disney, minha magia”, define ela. Algumas flores e folhagens são comprados já secos no Ceagesp, outros passam por esse processo no ateliê. E outros, ainda, vêm de lugares improváveis. “Trabalhar com planta fez mudar meu olhar para o lixo”, conta Kety. Moradora de Alto de Pinheiros, ela frequentemente encontra itens promissores em meio aos restos de poda dos casarões do bairro. “Meus vizinhos colocam no lixo coisas que ficariam incríveis penduradas no ateliê, pintados, nos arranjos.”

Para fazer as montagens, Kety só conta com a ajuda de Marcio Ferraz, seu braço direito, que começou como motorista do ateliê e hoje já cria suas composições. Tanto os arranjos secos quanto frescos podem receber tinta e serem remodelados – alguns ganham formas e texturas que até causam surpresa quando se descobre que são plantas recortadas, e não outro tipo de material. Variam tamanhos e preços: os arranjos vão do P ao GG e custam de R$ 250 até R$ 800 – os mais caros chegam a um metro e meio de altura. Os frescos duram até duas semanas, já os do tipo seco são uma decoração sem prazo de validade.

 

Quando atende encomendas, Kety procura saber gostos e referências dos clientes. Só fica arrepiada quando alguém mostra uma foto de algo que ela fez lá atrás e diz “quero um arranjo assim.” A florista não gosta de ficar parada no tempo nem quando a referência é ela própria.

Durante a pandemia, o Flores para os Refugiados passou a oferecer uma nova opção: o envio de arranjos secos desmontados para o Brasil inteiro. É literalmente uma caixa de surpresas, que permite várias combinações — você pode fazer um buquê, três arranjos ou ainda usar os elementos individualmente. Como define Kety, um arranjo é um quebra-cabeça com infinitas possibilidades de ser montado. Assim como a vida. “E se eu não tivesse dado importância para aquele arranjo em 2016, o que eu faria hoje? A vida é feita também de estar aberto às possibilidades”, diz ela. “Naquele milésimo de segundo eu abracei uma ideia, essa ideia maluca de vender flor. Estamos abraçados até hoje.”

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