A moda precisa adotar a máscara para se manter viva

Por que a indústria não abraçou o acessório com a devida importância?


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2020 foi um ano curioso para a moda. Descontando-se (sem desmerecer a gravidade) as baixas vendas, a crise de matéria-prima, o desemprego gerado pelas lojas fechadas em quarentena e o pavor de um setor industrial que precisou rebolar muito para se adaptar a um planeta doente, pense comigo: nunca, na história da humanidade, o globo pensou em uníssono sobre uma única peça de vestuário: a máscara.

Passamos os últimos oito, nove, dez meses assombrados pela sua presença nas nossas vidas. Do tipo cirúrgicas ou simplezinhas, de pano amarrado, perenes ou descartáveis, estampadas ou com promessas de tecnologias antivirais, elas tornaram-se novas amarrações do nosso corpo e um alerta constante de que tem algo errado no ar — literalmente. Aprendemos na marra como lavar, como descartar, como vesti-las sem riscos de infecção. Nos ensinamos também a tirar selfies com ela no rosto, a sorrir com os olhos e reconhecer pessoas com as feições cobertas pela paranoia têxtil no caminho do supermercado.

Mas fizemos todas essas adaptações ao nosso modo de vestir, curiosamente, sem grandes incentivos da indústria têxtil criativa em larga escala.


Não é que a alta moda tenha pavor de máscaras, veja bem. Lembra quando teve um desfile inteiro de alta-costura de Martin Margiela com as modelos de rostos cobertos por tecidos cravejados de cristais? Ou do carnaval semimacabro de dezenas de máscaras diferentes da Gucci? Ou das balaclavas da Vetements? São três exemplos rápidos de uma série de criadores que vinham lidando recentemente com variações da mesma ideia.

Mas a presença do rosto dissimulado/decorado/protegido era um assunto que já estava no ar das passarelas e da arte têxtil da última década pré-pandemia. E vinha num crescente, muito por reflexo das discussões levantadas na vida aqui fora pelos protestos identitário-sociais — como o Black Lives Matters ou as manifestações campais em Hong Kong — e nas reflexões sobre governos ultravigilantes ou sobre a privacidade cada vez menor causada pelas redes sociais e os seus incentivos tóxicos pela exposição online. Ou até mesmo pelos filtros distorcivos dos stories e pelas estrelas do k-pop, que já usavam máscaras cirúrgicas muito antes de todos nós, ocidentais.

O zeitgeist do começo destes anos 2020 apontava claramente para a máscara. Havia esse desejo de moldar novas feições, proteger a identidade, criar novos personagens dos quais poderíamos nos despir. A moda vinha se preparando para enfrentar essa nova fronteira do rosto coberto e as suas possibilidades. Então chegou a pandemia do novo coronavírus, o momentum se confirmou e a indústria, como um todo, tropeçou.

É claro que o primeiro baque, lá no primeiro trimestre, foi uma confusão inevitável. Ninguém estava preparado para lidar com adaptações de semanas de moda sem público, a impossibilidade de shootings presenciais, o fechamento de fábricas e pontos comerciais, a vida se voltando às lives de Instagram e outras plataformas digitais. A vontade pelas roupas, em geral, se desvaneceu rapidamente por assuntos mais importantes — como sobrevivência. Mas agora, olhando-se em retrospecto, confirma-se o quanto a imagem de moda produzida em 2020 acabou o ano beirando o negacionismo em relação ao uso da máscara na vida real.

Não é uma desconexão difícil de se confirmar. Basta puxar da memória as semanas de desfiles, internacionais ou brasileiras, virtuais ou presenciais, e toda a produção de moda que vimos em 2020. Passarelas, videoartes, campanhas e lookbooks, editoriais e capas de revistas. Com exceção de alguns poucos designers mais vanguardistas ou de pequenas marcas que se engajaram realmente na proteção (até mesmo como fonte de renda), a adoção do rosto coberto foi mínima, como se não fosse um assunto que atingisse a todos nós.


No momento em que este texto é escrito, o mundo está à beira da marca de 80 milhões de infectados e fronteiras nacionais estão voltando a se fechar por conta de novas mutações do vírus. Mas um scroll no feed inteiro de 2020 das etiquetas que movimentam o mercado mostra que os grandes players da moda preferiram passar o ano se mantendo numa bolha estética perigosa de “eu não conto se você não contar”.

Faz sentido? Pouco. Já passamos faz tempo das discussões sobre se máscaras são ou não eficientes dentro dos métodos emergenciais de prevenção combinada contra a Covid-19; um problema que atravessa absolutamente todos os mercados em que a grande moda atende. Por mais que haja uma parcela de pesquisadores que advogue o uso apenas para indivíduos já doentes, estudos endossados pela Organização Mundial da Saúde e pelo Centro de Controle de Doenças dos EUA apontam que cobrir nariz e boca com materiais minimamente adequados pode ter eficiência de até 75% na filtragem das gotículas que carregam o coronavírus. Uma nova experiência, divulgada logo antes do Natal pela revista médica Royal Society Open Science aumenta essa porcentagem para 99% — valendo tanto para evitar que pessoas infectadas transmitam o vírus quanto para que as saudáveis não entrem em contato com a doença. Outros gráficos mostram que o uso da proteção por uma parcela alta da população, idealmente de 80%, poderia ter resultado mais eficiente num grande centro urbano do que um lockdown rigoroso, o que evitaria exponencialmente o número de casos fatais.

A questão é que a adoção da máscara no dia a dia, com restrições ou não de circulação nas ruas, é um caso de consideração — não só consigo, mas com o mundo ao redor. E daí entram os exemplos de sociedades orientais, como japoneses e taiwaneses, nas quais o uso de máscaras durante as temporadas de gripe há tempos se tornou um hábito de responsabilidade pessoal e social. Ou da Índia e da Tailândia, locais onde o uso virou um paliativo contra a alta concentração de poluição nas maiores cidades. A ética/estética do cidadão protegido já estava por aí — pode não ser uma imagem agradável, mas é o que temos para hoje. E com as previsões das vacinas promovendo uma imunização real apenas no final de 2021 para 2022 (ou possivelmente além, no caso da nossa realidade brasileira), as máscaras não vão desaparecer tão cedo das nossas caras. Pelo contrário: como os orientais, deveríamos já pensar em adotá-las como uma opção perene.

Enquanto manifestação cultural, a moda tem certas obrigações a devolver para a sociedade. É dela o papel não só de olhar para frente, mas também para os lados — e a partir disso, fazer essa marcação temporal do que é viver sob uma pandemia. Analisando o seu histórico de imagens, é fácil notar como essa indústria foi atingida, reagiu e absorveu grandes aflições da humanidade: as crises das guerras mundiais, a emancipação feminina, o 11 de setembro, o começo da epidemia da AIDS, a luta do movimento negro, etc.: tudo isso influenciou a criação de novas silhuetas, o uso de tecidos e cores, novas influências estéticas, jeitos de fotografar e até mesmo poses e olhares de modelos.

O que aconteceu em 2020? Vimos a humanidade se dar as mãos por uma provação que é tão local quanto global. Ao mesmo tempo, o mainstream da moda construiu discursos de “vai ar tudo certo” e manteve a sua imagética numa realidade paralela, onde algum certo parece já ter dado. Como se, na próxima temporada, a grande tendência fosse voltar ao normal. É um caso de miopia histórica ou pouco querer ao absorver esse momento?

Pois essa tal “volta ao normal” depende, além de decisões governamentais, de ações individuais. E é aí que esse mundinho criativo tem outro legado importante a desenvolver no meio o qual atinge, que é aproveitar o seu potencial educativo — e, sim, persuasivo. Gurus do retail e birôs de tendências já vinham falando que o mercado precisa tratar os seus consumidores como indivíduos e não como números de cartões de crédito. Estávamos caminhando para uma produção mais inclusiva e sensível, mesmo que por razões financeiras. Mas o que esses indivíduos precisam agora, para manter tanto a sanidade quanto uma aspiração de compra qualquer, é de uma indústria criativa que se conecte e os ajude a atravessar estes tempos sensíveis. E isso não se faz só de hashtags, mas de conexões com o real aqui fora: é preciso adotar o código do rosto protegido como uma presença trivial e não só em campanhas de conscientização feitas por obrigação.

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Kengá BeachwearFoto: Divulgação

É nesse momento que a moda já deveria ter usado todo o seu poder de penetração no inconsciente coletivo — e é onde ela vem tropicando miudinho. Muito se preocupou, durante 2020, com o que se veste dentro de casa. Inventaram-se pijamas bacanudos, apostou-se em tecidos confortáveis, avatares modelados em computador, roupas para o infame keyboard dressing na luz fria do computador. Mas ignorou-se que, na realidade, há uma multidão para quem manter-se em casa foi o verdadeiro luxo inalcançável.

É para essa gente que a criatividade da indústria tem deixado de olhar. O mundo dos sonhos da moda, essa sua válvula de escape de imagens aspiracionais, tinha força maior quando a vida normal mais ou menos funcionava. Mas agora a nossa maior aspiração é desligar o Zoom e tocar em outro ser humano, ou basicamente manter-nos vivos. Consumir imagens de mulheres poderosas em cenários paradisíacos com a última modelagem de vestido vaporoso não diz nada para quem há meses enxerga o seu bairro apenas pela janela — quando não há um prédio logo na frente. É uma visão desconectada do agora, que só reafirma um certo elitismo dessa produção, que vinha sendo vencido, agora remodelado para uma crise pandêmica.

Muito se diz que a moda é uma fábrica criadora de desejos. Stylists e diretores criativos já defenderam que, num momento de crise como esse, naturalmente as imagens produzidas acabam servindo como um contraponto, uma fuga. E eles não estão errados, precisamos de fugas criativas. Mas é preciso achar um limiar entre criar desejo e alimentar devaneios. 2020 já mostrou para as pessoas que, trancadas em casa em meio a uma pandemia, elas precisam cada vez menos da moda. Agora ela é que precisa se adaptar e provar o seu valor ao lado das pessoas, não acima. Ou a moda, como nós, veste a máscara na prática ou também corre o risco de ser vítima da pandemia em 2021.

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