As mudanças no dress code corporativo durante a pandemia

Com o avanço da vacinação e retorno às atividades presenciais, as roupas que escolhemos para trabalhar passam por uma série de reformulações e entendimentos.


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Ilustração: Victoria Lobo



Que a pandemia mudou muito dos nossos hábitos não é novidade. E a maneira como nos relacionamos com nossas roupas não passou incólume por esse processo. Começamos a dar mais valor aos itens realmente essenciais do nosso guarda-roupas, descartar outros supérfluos e entender melhor o que realmente faz sentido para nossa personalidade ou qualquer projeção dela que queremos mostrar para o mundo.

Agora, com o avanço da vacinação e a flexibilização das regras de distanciamento social, toda uma outra reeducação de vestir começa a se fazer necessária – principalmente nos ambientes de trabalho. Faz sentido – e é desejado – voltar a usar salto alto e saia lápis? Ternos são de fato indispensáveis em ambientes corporativos, ainda mais nas regiões mais quentes do país?

Tais questionamentos vão além da roupa. Em uma pesquisa da empresa de coworking WeWork e da consultoria Workplace Intelligence, feita nos Estados Unidos, 53% dos entrevistados afirmaram que ainda desejam trabalhar de casa por três ou mais dias da semana. Outro estudo, realizado pela consultoria Korn Ferry no mesmo país, mostra que 70% dos profissionais acreditam que o modelo remoto é a melhor opção e que voltar a uma rotina presencial será “difícil” e “estranho”. Mais da metade (55%) declara que a ideia de retornar ao escritório cria estresse, sendo que 58% não se sentem confortáveis em falar com suas chefias para continuar em casa, pois acreditam que isso poderia prejudicar as suas chances de promoção.

 

Todos esses pontos têm impacto direto no que se entende por roupa de trabalho e também sobre os códigos e regras de vestimenta de algumas empresas.

Fatores de mudança

Foi nos anos 1990 que o termo casual friday ganhou popularidade. Trata-se daquele dia da semana em que gravatas e saltos altos podem ser abdicados por um look mais confortável e, como o nome já indica, casual. Porém, com a evolução e transformação das atividades profissionais, elementos tidos como tradicionais (como o terno e tailleur) foram, aos poucos, caindo em desuso. Com o boom das empresas de tecnologia nos últimos anos, o fenômeno ganhou ainda mais força – e incentivo fashion.

Nas passarelas e nas redes sociais, o streetwear ganhava adesão em velocidade e volume acentuados. Surgiu a onda do athleisure, e itens esportivos, funcionais e, sobretudo, confortáveis se tornaram essenciais no repertório de quase toda a marca – do alto luxo às gigantes do fast fashion.

Em 2019, a Goldman Sachs já havia tornado o uso de ternos optativo e, em março deste ano, o chefe executivo do banco, Jamie Dimon, apareceu em uma entrevista não de terno, mas com uma camisa pólo.

Parece bobagem, mas são sinais de mudança importantes para o registro da relação entre roupa e sociedade. Por exemplo, com a possível duração a longo prazo dos modelos de trabalho híbrido (meio remoto, meio presencial), a necessidade de ter um guarda-roupa mais robusto, com peças de lazer e outras de trabalho, começa a perder sentido.

“As pessoas estão mais preocupadas em garantir que a mensagem transmitida pelas roupas se conecte às suas próprias personalidades.” Juliana Berthe

“Antes, tinha muito a lógica de roupa de trabalho e a do final de semana. Agora, essa separação é menor”, explica Zeh Henrique Domingues, fundador da Soul Básico. Segundo ele, uma mesma peça precisa ser capaz de cobrir as duas áreas. Na coleção de estreia da marca na SPFW, Domingues, que trabalhou por anos na parte corporativa da moda, apresentou jaquetas que se transformam em colete, camisas que, a depender de como os botões são posicionados, criam mais ou menos camadas sobrepostas, e calças dupla face.

Para a consultora de estilo Juliana Berthe, o uso de cores é outra grande mudança dos últimos tempos e que, com a retomada do trabalho presencial, gera dúvidas e interesse. “Antes, o preto era muito usado por executivas, já que é uma cor fácil. Hoje, há desejo por roupas mais coloridas”, diz. “É muito comum, na parte de bate-papo inicial com as clientes, elas pedirem para aprender a usar mais cores, inclusive as vibrantes.”

Contrariando as expectativas e máxima pró-conforto, Berthe diz perceber certo alívio em algumas pessoas ao voltar a usar salto alto. Porém, a consultora identifica um forte desejo pela substituição do scarpin por tênis, mocassim e modelos com salto quadrado.

 

“Tenho tênis de vários tipos e cores, que conseguem acompanhar looks com blazer ou jaqueta, o que equilibra a imagem”, fala Adelini Gusmão, executiva de recursos humanos. “Optei também por comprar slip ons mais descontraídos e com salto no formato de bloco para dar mais conforto e mobilidade”, continua ela que, antes da pandemia, era adepta de scarpins. A empresa na qual trabalha planeja voltar às reuniões presenciais em 2022.

O comprimento das calças também apresenta diferenças. “Está mais curto, assim você consegue usar com diferentes tipos de sapato”, explica Berthe. A consultora acredita que a tela do Zoom e a constante autoconsciência gerada por ela trouxe mudanças na maneira como queremos ser vistos. “As pessoas estão mais preocupadas em garantir que a mensagem transmitida pelas roupas se conecte às suas próprias personalidades. Vejo muita gente usando o ‘se vestir’ para se divertir e se expressar melhor. Há uma procura maior por mistura de estampas, texturas e cores, mesmo em ambientes antes predominados por cinza e preto.”

Segundo Rafaella Caniello, estilista da Neriage, a redução do convívio social presencial diminuiu (ao menos um pouco) a expectativa de olhares terceiros sobre o que é vestido – o que não quer dizer que não haja preocupação com a estratégia de comunicação. “As nossas inspirações passaram a ser muito mais internas, coisas do nosso dia a dia. Já era um movimento que acontecia e, com a pandemia, isso foi agressivamente acelerado”, opina.

 

O combinado não sai caro

A flexibilização do dress code é, há algum tempo, motivo de orgulho para muitas empresas que investem numa imagem mais progressista e moderna. A área de tecnologia talvez seja o melhor exemplo. Berthe lembra de um evento de uma empresa do setor de tecnológico, em 2019, no qual foi anunciado um novo código de vestimenta que permitia o uso de chinelos.

Para a coordenadora de recursos humanos Erika Jardim, a revisão do dress code, em um contexto em que experimentação e conforto são desejados, precisa se bancar. Principalmente quando não há especificação do que é permitido ou não, ao contrário do exemplo dos chinelos. “Aí você pode ir do 8 ao 80, do terno à sandália rasteira com moletom. Variação que, na verdade, pode não atender à real expectativa da empresa. Muitos dizem que ‘não’ tem regras quando, na verdade, têm uma, só que mais flexível”, continua.

Neste momento de revisão e modelos híbridos, algumas empresas têm buscado consultores de estilo para montar um novo manual. Juliana Berthe diz que tem participado de alguns processos. Porém, mesmo com regras claras, a quebra de protocolos sempre existe. “Quando isso acontece, procuro equilibrar o que é adequado e me esforço em entender o porquê disso. Assim, evitamos entrar em julgamentos e colocar as pessoas em caixas limitantes”, explica a coordenadora de RH.

Em áreas mais conservadoras, por exemplo, uma mulher com decote ou um homem de saia no escritório são percebidos com desconforto no ambiente corporativo. “Em vez de perguntar para a funcionária o motivo dela ter ido com aquele decote, procuro entender, com o diretor que fez a reclamação, por qual motivo aquilo lhe incomoda”, continua.

Nem só de ‘Working Girl’ se faz um closet

Mais seguro, confortável e a melhor opção em um contexto pandêmico, o trabalho de casa também apresenta uma série de impactos na saúde (física e mental) e nas relações de trabalho. “Para a grande maioria representa, antes de tudo, maior sobrecarga, controle e menores salários, ou seja, maior precarização”, afirma Vera Lúcia Navarro, socióloga do trabalho e professora associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em Ribeirão Preto (interior de São Paulo).

Tal noção vai de encontro à uma cultura que vangloria a estafa, proveniente de “alguns perfis de jovens profissionais urbanos, executivos e que almejam (ou têm) empregos bem remunerados”, segundo a socióloga. Desse mesmo recorte, partem, dentre outros fatores e atores, os movimentos sociais de se desconectar e buscar uma suposta simplicidade de vida. O direcionamento por mais conforto e menos estresse é refletido, dessa forma, na roupa executiva.

 

“Quando falamos da história das mulheres em um campo remunerado e fora de casa, comumente chegamos em uma teoria feminista, branca, privilegiada e estadunidense que desconsidera a existência e o trabalho de mulheres pretas que atuavam nas suas residências naquela época.” Carol Barreto.

“Agora há uma maior procura por peças confortáveis, certeiras – clássicas – e que durem mais tempo”, opina Juliana Roitman, estilista da IDA. A marca cresceu desde o início da pandemia focada em conforto, versatilidade e silhuetas mais soltas, com forte apelo em tricôs e no entendimento da malha por uma perspectiva de alfaiataria, o que lhe confere maior requinte.

Um sucesso da IDA são as calças pantalonas e cenouras com cós de elástico, apostas para os próximos tempos. Até mesmo os tecidos planos (com menor elasticidade e historicamente associados à alfaiataria) vão continuar sendo recorridos, segundo a estilista, mas com modelagens e formas de costura que permitam maior maleabilidade. “Principalmente nas partes de baixo”, complementa.

Além do escritório

Para Carol Barreto, professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da UFBA, que também já atuou em graduações, pós e cursos técnicos de design de moda, é importante não perder a perspectiva de que há pluralidade mesmo em um recorte estreito como o mundo corporativo. “Podem existir escolhas que aproximam uma advogada negra, por exemplo, da sua cultura original ancestral. Se essa mulher é de axé e precisa estar com vestes em tecido branco ou em capulana, já é uma estética que está fora do conjunto de elementos visuais que compõem o que é compreendido como roupa corporativa”, afirma.

O grupo entendido por ‘mulheres no mercado de trabalho’ e o seu histórico são fácil e unicamente associados às que ingressaram nos escritórios a partir dos anos 1970, com ternos à la Donna Karan, Anne Klein e Ann Taylor. “Quando falamos da história das mulheres em um campo remunerado e fora de casa, comumente chegamos em uma teoria feminista branca, privilegiada e estadunidense que desconsidera a existência e o trabalho, também remunerado mas subalternizado, de mulheres pretas que atuavam nas suas residências naquela época”, pontua.

Grandes revoluções dificilmente emergem do corporativismo. “A imagem de pessoa intelectual, o que se considera uma postura ideal de uma mulher em um local de trabalho e as posições destinadas a nós nesse ambiente estão conectadas a uma matriz produtora de desigualdade macro, que é o patriarcado”, explica.

Um dos maiores símbolos do poder corporativo, o terno, ilustra bem isso. “A matriz definidora da roupa corporativa vem de um recorte do século 19, quando há a queda da aristocracia europeia e os homens, que até então expressavam o seu poder econômico com perucas, maquiagens e saltos, passam a utilizar a indumentária que conhecemos como terno”, diz. Na transição do século seguinte, é criada uma versão para as mulheres, o tailleur – blazer e saia. “É um redesenho que aparece a partir de uma referência, que também referenda, do quanto a imagem de trabalho está ligada à masculinidade”, finaliza.

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