Crocodilo da discórdia: por que amamos odiar Crocs?

Entenda como a febre dos anos 2000 superou os haters e, décadas depois, ganhou as passarelas e os pés de artistas como Justin Bieber e Ariana Grande.





Parece que foi ontem quando, em 2005, “Grey’s Anatomy” estreou nos Estados Unidos. Se ficaram em nossas cabeças aqueles médicos belíssimos vivendo peripécias amorosas nos corredores de um hospital de Seattle, também não saíram do inconsciente os protagonistas inesperados da produção de Shonda Rhimes, os crocs. Verdadeiros sobreviventes do ciclo de tendências, eles retornaram absolutos aos pés.

Calçados pelos profissionais da saúde que corriam para lá e pra cá ao tocar de um bipe, os da série eram de borracha, tinham o bico arredondado que aumentava a proporção dos pés e uma alça atrás para lhes deixar firmes. Simples demais, claro, porque foram projetados para velejar e, logo, prezavam mais a funcionalidade do que a estética.

“Foram lançados para ser uma alternativa aos tênis, oferecendo conforto aliado à alta tecnologia, sendo bactericida. Além disso, o material oferece isolamento térmico”, explica o professor do curso de Design de Moda da Faculdade Belas Artes, em São Paulo, Otávio Pereira Lima.

Assim como na série, as peças foram adotadas na labuta da vida real, tanto por profissionais da saúde quanto pelos de gastronomia, que precisavam do viés asseado dos sapatos. Ávida por novidades, a moda logo fez com que a Crocs ganhasse a ribalta. Primeiro, vieram os fãs, depois, os haters, e, como é de praxe nesse sistema, o ostracismo.

Em 2020, porém, virou item de luxo pelas mãos da Balenciaga e foi parar no tapete vermelho do Grammy 2022, nos pés de Justin Bieber. A história de altos e baixos mostra que, às vezes, por mais odiosas que possam parecer algumas tendências de moda, elas existem para questionar nossos padrões de escolha. Mas, por que exatamente isso rolou com os sapatos de crocodilos?

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Justin Bieber e Hailey Bieber na cerimônia de entrega dos Grammy 2022, em Los Angeles. Ele usa Crocs da coleção da grife em parceria com a Balenciaga.Axelle/Bauer-Griffin/FilmMagic/Getty Images

Anos dourados

No início do século, os crocs estavam em todo lugar. De acordo com o jornal “The Guardian”, até George W. Bush tinha um par do calçado do crocodilo. Vieram, ainda, camisetas, chaveiros e óculos de sol com o logo da empresa norte-americana. Crianças, adolescentes e pessoas que buscavam conforto eram os principais consumidores. Fashionistas e o mercado de moda, no entanto, torciam o nariz para eles.

“A primeira reação não podia ser diferente: ‘que sapato feio!’”, relembra Carla Lemos, consultora e autora do livro “Use a Moda a seu Favor”. “Houve matérias que diziam que quem usava Crocs é porque havia desistido da vida, que não tinha senso de estilo, não tinha bom gosto. O que estava na moda era o saltão com meia-pata, peep-toe. A sapatilha era alternativa para um sapato confortável, que tinha referência da Repetto e da Chanel, enquanto Crocs era o pavor, anti-tudo que era tendência. A marca ia contra o pessoal que queria montação.”

A cantora Ariana Grande aderiu aos crocs em selfie publicada em 2019 no Instagram.

A cantora Ariana Grande aderiu aos crocs em selfie publicada em 2019 no Instagram.Ariana Grande/Instagram

Surgiu uma espécie de polarização e, sabemos, o que a internet mais gosta é uma “treta”. A daquela vez era entre os fãs e haters de Crocs. Surgiram páginas na internet apenas para reclamar e pedir o fim dos calçados do crocodilo. Uma delas era a “I Hate Crocs” (“eu odeio Crocs”, em tradução livre). O item chegou a ficar no 22º lugar na lista de “50 piores invenções do mundo”, da revista Time, em 2010. A referência em uma das revistas mais influentes do mundo só fez aguçar os sentidos dos fãs.

Mais do que por sua estética, os crocodilos também eram criticados por estarem em todo lugar. A saturação do design fez com que ter um Crocs te transformasse em alguém “básico” demais. E houve uma época em que, caso gostasse de moda, a pessoa queria ser tudo menos básica. Vale dizer, porém, que esse nem foi o maior vilão da marca. Por mais sem sentido que possa parecer, foi a qualidade de ser durável demais o calcanhar de Aquiles da peça.

O influenciador Bryan Boy posa com os crocs da parceria entre a grife e a Balenciaga durante a \u00faltima semana de moda de Paris, em mar\u00e7o.

O influenciador Bryan Boy posa com os crocs da parceria entre a grife e a Balenciaga durante a última semana de moda de Paris, em março.Vanni Bassetti/Getty Images

Do brejo ao hype

Em 2007, a Crocs vendeu 50 milhões de pares de calçados e atingiu um lucro de US$ 168,2 milhões. Isso, sem nunca ter sido um produto barato. O modelo clássico custa por volta de R$ 200, o equivalente a 18% do salário mínimo de R$ 1.100. No auge da popularidade dos crocodilos, o comércio ficou lotado de produtos falsificados, enquanto a durabilidade dos calçados originais limitava a demanda por novos pares. O resultado da conta foi que a marca encerrou 2008 com um prejuízo de US$ 185,1 milhões e, em 2009, quase pediu falência. Para continuar no mercado, ela precisava mudar.

“No reposicionamento de marca, a Crocs decidiu atacar exatamente seu ponto fraco de não ser fashionista”, afirma Carla Lemos. Foi quando as parcerias começaram. Primeiro, com artistas como Justin Bieber, Bad Buny e Post Malone. Era uma maneira de acrescentar valor de moda, tornar-se colecionável e, por meio de edições especiais e exclusivas, combater a falsificação.

A maior jogada, porém, foi se aliar à alta-costura. Em 2016, foi lançado um par de Crocs com estampa de mármore e minerais com assinatura de Christopher Kane. No ano seguinte, os crocodilos foram repaginados pela Balenciaga em um salto plataforma. “O mercado dá uma criticada, mas pensa: ‘será que, talvez?’. [Esse pensamento] abre possibilidades. Mesmo quem torcia o nariz começou a pensar em usá-lo”, diz Carla.

O par, feito por Demna Gvasalia, era vendido por US$ 850, ou 17 vezes mais do que o valor dos crocs clássicos. A colaboração se esgotou em apenas três horas. Agora, ter um par não é mais coisa de “gente básica”, mas de quem está ligado –e tem dinheiro para gastar– em itens exclusivos. É uma estratégia semelhante à empreendida pela Supreme.

“Quando a marca de luxo reativou a função e inovou em sua estética, atingiu diretamente um público que gosta de inovações no mercado de moda. Veja, por exemplo, a parcela de jovens que utilizam o calçado nos dias de hoje”, pontua o professor Otávio Pereira Lima.

Celebridades como Ariana Grande e Pharrell Williams já publicaram imagens usando o calçado, assim como estrelas do k-pop, que influenciam bastante a geração Z. “A high-fashion deu uma validação e, não tem jeito, as coisas precisam tê-la. A aprovação de uma grife como a Balenciaga, ou de um rapstar como Justin Bieber, faz toda a diferença na mudança do comportamento de consumo das pessoas. E, cada vez mais, a moda está indo para o caminho de peças com funcionalidade.”

A pandemia também incentivou essa retomada. Segundo relatório da plataforma de buscas Lyst, os crocs ficaram, em 2020, entre os 10 itens mais procurados do mundo e tiveram um aumento de 48% nas vendas em comparação a 2019. É que, no confinamento, o consumidor procurava um calçado que pudesse ser higienizado com frequência.

“O consumo neste momento pós pandêmico está direcionado para a aquisição de produtos que sejam confortáveis, práticos e tenham um forte apelo emocional ligado ao ‘bem-estar caseiro’”, complementa o professor da Belas Artes.

“Essa é a grande magia da moda neste século, de pegar qualquer coisa e dar o seu jeito. É o bom e velho styling que deixa qualquer estética interessante. Esse é o legal do movimento da rua”, comenta Carla Lemos.

E ela acrescenta: “não adianta o mercado de moda falar que gosta ou não gosta, porque quem vai decidir é quem está na rua. Como diz o ditado, tudo é feio até a Rihanna usar. E até ela já apareceu usando Crocs.”

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