Amor proibido da avó inspira patchwork imagético de Jorge Feitosa

Memórias da matriarca que se apaixonou aos 80 anos guiam quinta coleção do estilista para a Casa de Criadores e sintetizam preservação da Sulanca em Santa Cruz do Capibaribe (PE).


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Quando um estilista explica as referências de seu desfile não é raro haver muita conversa para boi dormir. E, por isso, às vezes é preferível olhar direto para a roupa do que cair no conto do vigário, no papo do criador que não necessariamente traduziu o que queria na coleção e procura vencer na lábia.

Só que quando Jorge Feitosa, 42, define o que inspira a sua mais recente apresentação na Casa de Criadores, fica difícil resistir. “Ela tinha 80 anos de idade quando se apaixonou”, ele começa. E quem não se permitiria ouvir uma história como essa?

O estilista se refere à Dona Constantina, sua avó materna, a quem ele dedica o filme com os 9 looks que construiu nesta temporada. “Foi um amor romântico. Ela tinha 80 anos quando se apaixonou por um senhorzinho, um dos vereadores da cidade. Ela ia à Câmara de Vereadores só para encontrá-lo, mas sempre em vão. Ele não dava bola, porque era casado”. E, bem, talvez seja importante contar que ela também era.

O caso foi o horror da família. Todos se envergonharam profundamente porque “ela parecia uma adolescente”, colecionava os santinhos de candidatura do político e fugia para se declarar. Havia fuxicos na cidade sobre o que estava rolando com Dona Constantina e foi necessário até mesmo a convocação de uma reunião formal com o tal do vereador só para ele dizer que nada daquilo vingaria. Constantina, porém, seguiu apaixonada.

“E eu lembro que, no meio disso tudo, inventaram que minha avó estava louca. Internaram ela em um hospício, um dos últimos manicômios que existia por ali”, relembra Feitosa.

Com o devido cuidado para não culpar as escolhas passadas, o estilista recorreu apenas à própria memória, de quando vivenciou tudo aquilo por volta dos 20 anos de idade. A história retida às próprias lembranças é uma maneira de prender o ocorrido em um lugar seguro. Talvez, assim, seja mais fácil aceitar que, de fato, houve relação entre aquela paixão e a internação, como outros familiares poderiam negar.

“Lembro a calaram, ela e o amor dela. A lembrança que tenho é a de que minha avó ficou um bom tempo ali, ainda que me digam que tenha sido três dias. E eu recordo que ela voltou machucada, psicologicamente e fisicamente machucada. Demorou para os efeitos dos remédios passarem. E, quando voltou, já não era mais a mesma. E eu tenho para mim, quando puxo na memória, que morreu logo em seguida.”

Se a memória é o jeito que a gente tem para editar os fatos, Feitosa se dá um pouco de liberdade nessa história para interpretar o ocorrido no presente e, assim, entregar um final merecido a avó.

Voltemos à sua nova coleção. O filme Vote no Amor é dividido em três partes: romance, manicômio e redenção. Nele, a modelo Deuza Goulart, aos 77 anos de idade, empresta seus cachos rosas à interpretação de Dona Constantina. “Minha avó tem uma redenção nessa nova história, transformando tudo em amor próprio, juntando os retalhos que sobraram e se remontando. Ela renasce”, explica.

Essa baita memória poderia ser esmiuçada em um estudo riquíssimo de coleção, algo muito detalhado. Há, inclusive, a produção de uma bolsa com o nome da avó, em que cabides no lugar das alças tentam lembrar o jeitinho caprichado que ela costumava se vestir. No entanto, a história parece servir a um propósito mais delicado e, sem dúvida, muito importante. Recuperando a memória, Jorge Feitosa assinala a identidade da marca, neste quinto desfile para a Casa de Criadores, que é a preservação da Feira da Sulanca.

A família inteira do estilista é formada por costureiros, inclusive a avó em questão, que fazia cobertas de retalhos. A reunião de tecidos costurados não é algo novo no trabalho de Feitosa e nem é para o mundo. Afinal, todos reconhecem um patchwork de longe.

Essa mesma técnica, porém, é aprendida e preservada na região em que ele nasceu, a cidade de Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco, onde a fonte de renda para muita gente é a feira. E ela pode e deve ser valorizada enquanto tecnologia brasileira por reunir memória, improviso, preocupação sócio-ambiental, além de um estudo de formas e cores bastante plural dentro da moda.

Esses “ajuntamentos” de tecidos que podem ser lidos como algo regional é o mesmo patchwork que grifes internacionais caem de amores neste mesmo momento. O olhar limitante, porém, segue a tratar a sulanca brasileira como um mero artesanato, um lugar que vende colcha de tecido.

A técnica nas mãos desse estilista é executada com precisão em até 16 tecidos estampados que foram alinhavados em uma mesma peça, sendo uma dessas estampas desenvolvidas em parceria com a Lunelli. Os looks têm modelagens nada aprisionadas, que se diversificam com o tempo e são bem cosmopolitas.

Os desdobramentos comerciais, apresentados no meio do filme, entre uma parte e outra da história de Dona Constantina, podem ser vistos por quem assiste como deslocados do todo, mas inegavelmente mostram a técnica em roupas possíveis, práticas e urbanas. E o que mais um designer poderia mostrar senão uma consequência prática e pouco literal de um conceito que é bastante rico?

A história, às vezes, vale a pena. Neste caso, não só empresta o pano de fundo à coleção como também localiza a origem do tipo de roupa que esse estilista faz, com recortes, misturas de cores e texturas. E também serve como recado. Brincadeiras à parte com o vereador, Jorge Feitosa aproveitou a deixa pra soltar também um poeminha: “quem vota com amor não vê a dor”.

Que sirva para 2022 e também como voto de confiança para o designer. A escolha pelo amor pode parecer simples, mas também é revolucionária.

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