Kerby Jean-Raymond, fundador da Pyer Moss e escolhido para transformar a Reebok

Aos 33 anos, o fundador da Pyer Moss, que vem desenvolvendo um trabalho extremamente relevante e necessário, dominou as notícias da indústria no último mês.


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  • No início de setembro, Kerby Jean-Raymond lançou, em uma parceria com o grupo Kering, o projeto Your Friends in New York, visando a capacitação de jovens talentos da moda e arte.
  • Poucos dias depois, foi eleito como o melhor estilista de moda masculina do ano, pelo CFDA Fashion Awards.
  • Fechou setembro sendo anunciado como o novo diretor criativo da marca esportiva Reebok, com a qual já fez algumas colaborações nos últimos anos.
  • O estilista, que teve um mês e tanto, tem 33 anos, é filho de imigrantes haitianos e cresceu no bairro de Flatbush, no Brooklyn, em Nova York.
  • Desde os 12 anos, sonha em se tornar um designer mas, entre uma vida conturbada, acabou se formando em administração e cursando ainda um semestre de direito.
  • Sua vida mudou em 2013 quando, depois de Rihanna ser fotografada usando uma peça de sua assinatura, lançou oficialmente a sua marca, a Pyer Moss.
  • Acompanhe a sua trajetória abaixo.

Origens

“A minha intenção ao abrir um negócio era criar a família que eu não tive”, disse Kerby Jean-Raymond em entrevista ao site Surface. Filho de imigrantes haitianos, o jovem teve uma infância e adolescência violenta, mas mesmo que a sua história apontasse para caminhos contrários, Kerby fugiu de todas as estatísticas.

Aos sete anos, a mãe do designer faleceu em uma viagem ao Haiti, quando a casa em que ela estava pegou fogo. Acreditando que o menino não conseguiria lidar com a perda, a família preferiu não contar a notícia e, até mesmo, o colocava no telefone com a sua tia que fingia ser a mãe. Kerby só ficou sabendo três anos depois, quando um amigo da família falou que a sua mãe estaria “queimando no fogo do inferno”. Já o seu pai, por sua vez, trabalhava como motorista de táxi e eletricista, instalando caixas de cabo ilegais nas casas de “todos os traficantes locais”.

Crescendo, então, com o seu pai e a sua madrasta, com a qual tinha uma relação conturbada, em Flatbush, bairro do Brooklyn, Kerby decidiu que queria ser um designer aos 12 anos, quando se apaixonou pelo Nike Air Worm, tênis assinado pelo jogador de basquete Dennis Rodman. No ano seguinte, conseguiu o seu primeiro emprego na rede de tênis Ragga Muffin, precisando falsificar documentos já que a idade legal para o trabalho era a partir dos 14.

Enquanto isso, o haitiano-americano também cursava o High School of Fashion Industries, escola pública de ensino médio no bairro de Chelsea. Logo em seu primeiro semestre, Kerby quase foi expulso após jogar uma embalagem de corretivo em seu colega de classe, mas se explicou à professora dizendo que se sentia frustrado e precisava de mais coisas para fazer. Ela, então, o ajudou a conseguir um novo emprego ー um estágio não remunerado com a estilista Kay Unger. Visitando fábricas, recolhendo tecidos e aprendendo na prática sobre corte e costura, essa acabou sendo a real escola de moda para ele.

Kay deu para Kerby um pequeno capital inicial para que ele lançasse a sua linha própria e, aos 15 anos, o garoto fundou a sua primeira marca, a Mary’s Jungle. O dinheiro, no entanto, não deu para muita coisa e, logo, concluiu o ensino médio e ingressou na Hofstra University, onde cursou administração e formou-se em 2008. Depois dessa primeira faculdade, matriculou-se na Booklyn Law School. Como, ao longo de sua infância viu boa parte de sua família sendo deportada para o Haiti, surgiu o interesse em ser advogado de imigração. Porém, Kerby não concluiu nem mesmo o primeiro semestre, e foi depois dessa rápida tentativa que ele, de fato, começou a concentrar os seus maiores esforços na moda.

Abençoado por Riri

A partir daí, por alguns anos, fez trabalhos como freelancer para nomes como Marc Jacobs, Theory e Kenneth Cole, e, em paralelo a isso, ainda mantinha também um trabalho na Audi, onde diz ter feito muito dinheiro mas nenhuma felicidade. Tudo mudou quando uma amiga estava em seu apartamento e viu alguns dos croquis que fazia em seu tempo livre e o incentivou a lançar as suas peças próprias. Só depois de muita insistência Kerby cedeu.

A Pyer Moss nasceu, então, em 28 de janeiro de 2013. A precisão da data se dá porque foi nesse dia que Rihanna foi fotografada usando uma jaqueta feita pelo estilista. Na época, Kerby ainda nem mesmo tinha lançado oficialmente a sua etiqueta, mas, precisando aproveitar o buzz causado pelas imagens da artista, que já circulavam por toda internet, o estilista organizou tudo no mesmíssimo dia.

Entre as difíceis decisões que precisou tomar rapidamente, constava a escolha do nome da marca e, para essa, escolheu homenagear a sua mãe. O seu nome de batismo era Vonya Moss, mas quando ela se mudou para os Estados Unidos nos anos 80, precisou de um green card e, na intenção de facilitar o processo, adotou o sobrenome de sua prima, Pye. Na última carta que recebeu de sua mãe, ainda na infância, ela havia assinado como Pyer e, então, Kerby decidiu fazer uma combinação de seu nome haitiano com o seu nome americano, resultando em Pyer Moss.

Moda, política e arte

A vivência, história e valores de Kerby refletem totalmente o trabalho que ele desenvolve à frente da marca. “O meu objetivo ao criar coleções é basicamente voltar a nos incluir na história”, afirmou em entrevista ao Highsnobiety. Ao transformar a passarela em uma plataforma de justiça social, o designer aplica a sua vertente política em suas criações e, nessa, vem levantando debates relevantes, promovendo críticas sociais e celebrando a cultura negra.

Com um espírito contestador, no seu Verão 2019, por exemplo, a coleção imaginava “como seria a vida de pessoas negras caso elas não tivessem sido molestadas”. Em um look monocromático branco, vestido por um modelo negro, apareceu o questionamento “see us now?” (em tradução livre: “você nos vê agora?”). Já em uma camiseta, com parte do lucro revertida para exonerar pessoas negras erroneamente condenadas, foi bordada a frase “stop calling 911 on the culture” (em tradução livre: “pare de ligar para o 190 denunciando a nossa cultura”).

A sua mente criativa e o seu valor pela cultura permitem declarações complexas sobre a sociedade, mas também sobre as suas mais íntimas memórias. Como um contador de histórias, no Inverno 2017, Kerby homenageou o seu pai em uma coleção intitulada “My Father as I Remember”. A dose equilibrada de ativismo e afeto resultou em uma necessária conversa sobre imigração, mas também sobre perdão, reconexão e reconhecimento.

Sem falsas modéstias, Kerby não nega o título de artista. Inicialmente, sendo chamado dessa forma por Kennedy, sua irmã, o designer achava precipitado, mas, logo, concluiu que a sua abordagem não linear e colaborativa pode sim ser enquadrada dessa forma. Desde então, posiciona a marca como “um projeto de arte que atua no espaço da moda”. Dessa forma, passou a pensar em suas roupas como peças de arte colecionáveis e em cada coleção, como uma instalação que apresenta uma tese.

Desafiando o sistema

E a sua coragem não fica apenas na passarela. Ao longo de sua carreira, Kerby já mostrou como não tem medo de assumir riscos ao desafiar o sistema para defender aquilo que acredita. Prova disso é que, em 2019, o haitiano-americano seria um dos homenageados na BoF 500, lista do Business of Fashion que anualmente nomeia as 500 personalidades mais relevantes para a moda. Naquele ano, os presentes no evento eram recebidos por um coral gospel negro, ao qual Kerby respondeu em uma carta aberta divulgada em suas redes: “Isso é uma merda insultuosa”.

O estilista revelou que, dentre os nomes da extensa lista, havia sido um dos selecionados para ser capa e discursar no evento. Para isso se tornar possível, Kerby encontrou a equipe do site em uma série de reuniões e, somente meses depois, a plataforma decidiu desconvidá-lo. Essa situação já havia o deixado chateado mas, mesmo assim, resolveu prestigiar o evento, já que continuava integrando o time dos 500. “Cheguei por volta das 22h. Imram (fundador do Business of Fashion) pegou o microfone e disse algo como ‘eu quero chamar algumas pessoas que nos inspiram’ e convidou uns 20 nomes a subirem no palco como ‘líderes da diversidade e inclusão’. Eu havia sido excluído”, escreveu em seu texto.

Esse momento ainda veio acompanhado novamente do coral gospel negro e também de danças típicas do cantor Kirk Franklin. “Foda-se essa lista e foda-se essa publicação. Não se apropriem dos espaços seguros para negros. Isso é uma coisa nossa. Homenagem sem empatia e representação é apropriação. Explorem as suas próprias culturas, religiões e origens. Ao aplicar o nosso e nos excluir, vocês provam que nos vêem como tendências. Nós vamos morrer negros, e vocês?”, questionou.

O stylist Jason Boden, os apresentadores do reality, Tan France e Alexa Chung, e Kerby se reunem em uma roda.

Kerby Jean-Raymond deixou o set de filmagens do reality Next in Fashion após se sentir desconfortável.Reprodução

No início deste ano, Kerby também se posicionou sobre mais um caso, em que se sentiu ofendido e desconfortável. O estilista foi chamado para ser um dos jurados convidados do quarto episódio de Next in Fashion, competição de moda da Netflix. Na gravação, o conflito surgiu quando os jurados fixos do programa apontaram que não gostaram do trabalho apresentado por duas estilistas negras, mas Kerby havia gostado e não queria eliminá-las. “Eu estou vendo o que está acontecendo aqui e não posso continuar. Chamaram o estilista negro para eliminar os competidores negros”, contestou antes de deixar o set de filmagens.

Tem que respeitar

Por mais excludente que essa indústria consiga ser, ninguém apaga o talento e potência de Kerby. Apesar da marca já ter sete anos e, antes de lançá-la, ela já possuir um longo currículo, foi nos últimos anos que conquistou o seu espaço e passou a ser globalmente reconhecido. “Levei 18 anos para me tornar ‘um sucesso da noite para o dia’ da moda”, ironizou em entrevista à CNN sobre os que acreditam que o seu caso foi repentino.

O haitiano-americano acaba de conquistar um feito inédito: uma parceria com um grande conglomerado sendo uma marca independente. Com o apoio do grupo Kering, Kerby apresentou, em setembro, o projeto Your Friends in New York, visando capacitar os novos criadores da moda e arte. “Quando me encontrei com o Kerby, fiquei impressionado com a sua perspectiva de criatividade, inovação, negócios e questões sociais. O que me chamou atenção imediatamente foi a sua vontade de inventar um modelo novo e singular, libertando-se das restrições comuns do sistema de moda”, afirmou François-Henri Pinault, presidente e CEO do conglomerado, em comunicado.

Em 2018, Kerby já havia sido indicado na categoria de novos talentos do CFDA Fashion Awards, premiação que o conselho realiza anualmente para celebrar os nomes da moda norte-americana. No ano seguinte, pulou de nível e foi indicado como estilista de moda masculina, porém, novamente não ganhou. Até que, neste ano, finalmente, foi o vencedor pela mesma categoria que já havia concorrido em 2019. “Meus pais ainda não vão entender”, escreveu em seu Instagram celebrando o prêmio.

As quase desistências

Porém, entre as vitórias, Kerby já passou por algumas situações que o fizeram pensar até mesmo em desistir. Para o verão 2016, ele havia preparado uma coleção sobre a brutalidade policial. No entanto, a discussão antirracista levantada atiçou movimentos supremacistas brancos que, por semanas, o perseguiram com ameaças de morte. Além disso, viu seis de seus maiores compradores abandonando a marca, colaborando, assim, para que a coleção fosse um fracasso comercial. Após esse caso, o designer entrou em uma tristeza profunda e chegou a enviar uma carta para a sua equipe avisando que encerraria a Pyer Moss. No entanto, demorou 36h para voltar atrás da decisão e, ainda entre a tristeza, retomar as atividades.

Dois anos antes, no início de 2014, em uma tentativa de acelerar a empresa, o designer também já tinha vivido um outro momento complexo. “Ainda não entendia muito bem sobre negócios, peguei dinheiro de investidores e permiti que eles subfinanciassem a marca, obtivessem muito capital e me atraíssem para negócios ruins. Isso me custou muito tempo, muito dinheiro e me deixou extremamente frustrado e depressivo”, contou em entrevista à CNN. Na ocasião, Kerby conseguiu voltar a ter o pleno controle da Pyer Moss com a ajuda de um negócio fechado com a Reebok.

A soma de forças com a Reebok

Ao longo desses anos, a parceria com a Reebok se tornou ainda mais forte. Neste meio tempo, o designer fez algumas colaborações com a etiqueta esportiva e, nessa última semana, foi anunciado como a liderança criativa da marca em todas as categorias. “Agradeço a oportunidade de revigorar a Reebok com novas ideias, ao mesmo tempo que me concentro em trazer um senso de propósito social para o nosso trabalho”, afirmou Kerby em comunicado divulgado.

“Kerby é um visionário da moda com uma abordagem ousada que se estabeleceu como um líder e um ativista apaixonado. Estamos extremamente entusiasmados com o impacto que ele terá na Reebok, do ponto de vista do design e do propósito, e por ele trazer a sua voz e direção única para a marca de forma mais ampla”, disse Matt O’Toole, presidente da empresa. Os produtos assinados por Kerby tem lançamento marcado para 2022.

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