As calcinhas estão à mostra e essa não é uma má notícia

Com alças escapando pelo cós ou incorporadas à própria peça, a parte de baixo da roupa íntima não quer ficar mais escondida.


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Foto: Getty Images



Recentemente, o trecho de um episódio de Degrassi, série adolescente dos anos 2000, foi ressuscitado nas redes sociais. Na cena, a personagem Manny passeia em um shopping com a sua amiga quando declara que vai mudar seu visual. Ela se depara com uma calcinha fio dental azul brilhante e compra sem hesitar. Mais tarde, aparece caminhando com toda confiança pelos corredores do colégio, exibindo a nova aquisição que escapava pela cintura-baixa da calça, enquanto a câmera mostra os rostos perplexos dos colegas.

“Cultural reset”, dizia um tweet viral sobre o assunto. Em tradução livre, “redefinição cultural”, aquele momento em que algo grande acontece na cultura pop ao ponto de modificar a forma que as pessoas veem ou fazem algo. Embora possa parecer bobo, o trecho do seriado pode ter sido a primeira vez que aquela geração de adolescentes percebeu como a roupa também passa pela sexualidade. Nas passarelas, Jean Paul Gaultier e Tom Ford já haviam defendido a ideia antes e, em seguida, nos palcos, Britney Spears e Christina Aguilera também o fizeram.

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Gillian Anderson em after party do Oscar 2001.Getty Images

Mas a história da calcinha fio dental é, na verdade, muito anterior ao seu sucesso nos anos 2000. A peça faz parte do vestuário básico de todas as culturas humanas há milhares de anos por oferecer proteção com a menor quantidade de material. Ela foi a precursora das roupas íntimas. Porém, quando se fala do item fetichizado na cultura ocidental, o seu aparecimento pode ser creditado ao político Fiorello La Guardia.

Era a década de 1930, e Nova York recebia visitantes de todo o globo para a sua Feira Mundial. Foi aí que o então prefeito da cidade exigiu que os dançarinos burlescos, homens e mulheres, se cobrissem em respeito aos turistas. Em um movimento atrevido, eles vestiram calcinhas fio dental. A peça cobria o suficiente para acatar a regra do aparentemente pudico Sr. La Guardia, mas ainda exibia o máximo de pele possível.

Depois de algumas décadas sendo considerada uma espécie de marcadora cultural do entretenimento erótico, a calcinha fio dental chegou às lojas de varejo no início dos anos 1980. A partir daí, foi ofertada apenas às mulheres, mas demorou mais um tanto até ser exposta publicamente, o que não é bem uma surpresa. Ao longo do tempo, uma peça de roupa adquire significados diferentes. Há toda uma complexidade envolvida: qual é sua função, o que diz sobre a pessoa que a usa, em qual contexto entrou e saiu de moda.

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Hailey Bieber no MET Gala 2019.Getty Images

No caso em questão, a calcinha fio dental nunca saiu de moda, só esteve disfarçada nos últimos anos. Ou pelo menos até 2019, quando Hailey Bieber apareceu no MET Gala com um vestido rosa, de Alexander Wang, cujo decote nas costas expunha a sua roupa íntima. No mês seguinte, Alexa Demie surgiu em um evento de divulgação de Euphoria usando algo semelhante 一 um visual que a sua personagem, Maddy, certamente, aprovaria. Poucos dias depois, durante a temporada masculina de verão 2020, Bella Hadid cruzou a passarela da Versace revelando a lateral de sua calcinha, levantada até a cintura.

Agora, todas, da estrela em ascensão Julia Fox a Beyoncé e Dua Lipa, estão à frente do movimento. Elas aparecem totalmente vestidas, mas com uma pitada da calcinha à mostra, um vulto de suas sexualidades como um aceno inconsciente para os primórdios do fio dental lá nos palcos burlescos.

Essa pode parecer uma daquelas tendências que só celebridades ousariam usar. Mulheres entenderão. Enquanto estamos na segurança de nossos quartos, pode ser tentador optar por um um visual com uma calcinha à mostra. Porém, quando se trata de encarar as ruas, a história é outra.

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Supriya Lele, verão 2021. Divulgação

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Balmain, verão 2022. Divulgação

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Chanel, verão 2022. Divulgação

Por sorte, há uma nova onda de estilistas empenhada em reescrever as regras. Supriya Lele é um exemplo. Temporada após temporada, a designer anglo-indiana tem incluído em suas coleções calças e saias com recortes no quadril ou cordões na cintura, imitando a aparência da calcinha escapando pelo cós. É como se o fio dental estivesse incorporado à roupa, criando uma imagem mais discreta e confortável, mas não menos sexy. As gigantes do luxo Givenchy, Balmain e Chanel também já apresentaram suas versões.

Para um pequeno pedaço de tecido, a calcinha está exercendo bastante poder. Desde o seu último auge, a cultura foi alterada a partir de algumas emendas expressivas, outras nem tanto. Ainda possuímos uma relação complicada com o que diz respeito à roupa feminina socialmente aceita. Existem limites ambíguos e um tanto arbitrários que tentam podar até onde, quando e como mulheres podem ser e se sentir sexys.

No entanto, à medida que reinventamos os códigos da sexualidade em nossos próprios termos, a lingerie não é mais só uma ferramenta sedutora. Na verdade, os desejos alheios pouco importam. Rihanna já havia nos ensinado isso. É assim que a calcinha fio dental passa a ser usada pelo prazer pessoal e não pelo prazer do olhar masculino.

Talvez você não goste da hipocrisia que é a calcinha feminina desaprovada, enquanto os homens estão isentos do julgamento, mesmo quando as suas calças caem abaixo de suas cuecas. Talvez você goste do conforto da nostalgia. Talvez você não dê a mínima. Seja lá qual for a razão, o ponto é que a calcinha à mostra está implorando para se tornar popular novamente. As tantas versões já incorporadas às roupas ou com referências sutis a um fio dental podem ser a confirmação de que ela irá conseguir. Quando menos esperar, você pode estar usando enquanto pensa: “Oops… I did it again”.

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