Com filme de terror e minidoc, Margiela é destaque na alta-costura

John Galliano reforça a importância da emoção numa temporada focada em técnica e materialidade.


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“Desde criança e até hoje, nada me anima mais do que estar ao livre numa noite de lua cheia”, diz John Galliano, meio apaixonado, meio macabro, no vídeo de apresentação do inverno 2021 da Margiela Artisanal, linha de alta-costura da Maison Margiela. Nos últimos 16 meses de pandemia, a fuga para a natureza se tornou um destino bastante comum para quem pode e muito desejado por quase todo o resto. Era quase como se a reconexão com a natureza fosse uma espécie de cura espiritual, salvação mística ou apenas uma reparação dos impactos de nossas vidas urbanas (em nós mesmos e no meio ambiente).

Ok, tudo isso tem lá seu sentido. Mas pouco foi dito sobre nossa pequenez ante as forças da natureza. Até agora, pelo menos. O efeito que o clima, o mar, a lua, o sol, o calor, o frio, a terra, o ar e a água têm em nosso psicológico foi algo bastante presente no processo criativo de Galliano nesta estação. Em suas próprias palavras é “a ideia de como nos sentimos durante essa pandemia, e termos sidos colocados de joelhos pelo poder da mãe natureza”. Não custa lembrar que, ao que tudo indica, esse vírus não foi criado em laboratório.

Já as peças da Margiela Artisanal, sim. Ou quase. Antes de falar especificamente sobre elas, vale ressaltar que essa linha nasceu com o intuito de elevar e ressignificar materiais banais ou considerados baratos demais para a alta-costura. Sabe a ideia de upcycling? É isso. E já era antes de muita gente sequer ter consciência sobre o que se trata. Voltando, esta coleção é toda trabalhada para simular o efeito da natureza e do tempo sobre as roupas.

Uma das peças mais emblemáticas é um casaco de inspiração renascentista, quase monástica. Ele é todo feito de retalhos e pedaços de lenços, gravatas, camisa, e tecidos domésticos encontrados em brechós e lojas de caridade. Tudo com estampas azuis e brancas. Outra é um vestido feito de cacos de espelho, usado sobre uma camiseta branca meio puída, já meio amarelada, tipo aquelas que temos há anos no armário.

Recortes de jornais antigos com notícias sobre a morte do rei George V foram costurados sobre feltro ou algodão azul. Forros e avessos viraram vestidos, jaquetas e itens de alfaiataria. Algumas peças foram esgarçadas ou encolhidas propositalmente, e quase tudo foi lavado ou tratado com enzimas para desbotar e retomar a tonalidade original de cada material.

Segundo Galliano, essas roupas expressam o turbilhão de sentimentos que nos acometeram nos últimos meses: ansiedade, apego, medo, revolta, conforto, segurança, liberdade e mais tantos desejos mil, muitas vezes antagônicos e simultâneos. Para ilustrar essa ideia, ele criou um filme de terror de quase 1h de duração, dirigido por Olivier Dahan (o mesmo do longa de 2007 nomeado ao Oscar, Piaf Um Hino Ao Amor). O vídeo ganhou até exibição em um cinema de Paris nesta quinta-feira, 07.07.

Desde que se formou na Central St. Martins, em Londres, o estilista britânico mostra especial aptidão pela construção de narrativas em seu trabalho. Seus desfiles sempre contaram com um quê teatral bastante excepcional. Agora, livre dos limites da passarela, ele pôde, finalmente, dar vida aos personagens que guiam seu processo criativo.

Esta foi uma das coleções mais pessoais que Galliano já mostrou na Margiela – e não só pela semelhança com sua coleção de 1984 sobre a Revolução Francesa. O romantismo, as referências históricas, o drama, o lado obscuro, o mistério, o deboche, a subversão tudo faz parte de suas paixões já destiladas em trabalhos prévios.

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E se você não quiser gastar uma hora do seu tempo assistindo ao filme inteiro, recomendamos muito os quase 15 minutos iniciais. Neles, numa vibe de documentário, o estilista explica todo seu processo criativo e a execução dos principais looks da coleção. As falas e as imagens de bastidores são aqueles lembretes do por quê gostamos (ou gosto, no caso deste que vos escreve) de moda.

Nesta temporada de alta-costura, falou-se muito sobre o foco na roupa, na materialidade, no fazer e no design. Foram pontos importantes nas principais coleções apresentadas nos últimos dias. Visualmente, os looks da Margiela Artisanal podem parecer muito distantes do mood da semana. Porém, os processos que resultaram naquelas peças são o melhor exemplo da importância de todos os elementos citados acima, para muito além do pragmatismo.

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No início do vídeo, Galliano conta como a coleção nasceu de conversas e experiências pessoais de alguns membros da equipe. Fala também de como é importante observar, entender e respeitar os materiais com que se trabalha, e como eles reagem às experimentações feitas sobre e com eles. Técnica é de suma importância, mas é apenas um dos fatores numa equação que envolve emoção, instinto e visão criativa.

Uma crítica comum à moda de hoje é sobre a comoditização, como tudo virou um produto sem alma, calculado e programado para gerar lucro e nada mais. É uma realidade incontestável e quase imutável, porém existem brechas. E a alta-costura é uma delas, apesar de todos os pesares de elitismo e exclusividade.

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Desfile presencial é tudo, lembrar da importância do toque e de tudo mais que só se percebe ao vivo e a cores também. Porém, ter acesso ao que está por trás e entender como emoções, paixões e tantos outros sentimentos influenciam um processo técnico e matemático, faz toda a diferença. Não tem preço, até porque ele seria impagável. Mas a inspiração tá aí, né? E moda não é só produto.

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