Moda lixo? Entenda o ‘trashion’ e a estética da destruição
Modelos de tênis destruídos da Balenciaga reacedem debate sobre os limites da criação de moda e o uso da sujeira como elemento de estilo.
Você deve ter visto o tênis da foto aí no alto flanando pelas redes nesta semana. Ele é a versão publicitária que divulga uma linha de tênis da grife espanhola Balenciaga, posta à venda por até US$ 1,8 mil em sua versão de cano alto, e foi detonado por internautas com o mesmo afinco do estilista Demna Gvasalia em destruir o desenho da peça. Trata-se, na verdade, do que há de mais recente no conceito de “trashion”, acrônimo de trash (lixo) e fashion (moda).
A celeuma em torno do tema ganhou contornos dramáticos nos últimos meses. Primeiro, veio a bolsa que parece um saco de lixo no desfile da grife em março, depois, as botas sujas de tinta branca e, agora, o tal sapato da coleção Paris Sneakers. A marca já havia esboçado o uso da sujeira na versão do Triple S, de 2018, todo feito de couro e náilon, que saía pelo preço de US$ 780. A diferença é que, nos novos tênis, os rasgos e a sujeira estão em primeiro plano, e as fotos promocionais só aumentaram ainda mais o ruído ao exibir essas peças destruídas em um nível que beira o escárnio.
Mas, e daí? Comecemos pela parte de baixo. Do ponto de vista mercadológico, a ideia de destruir calçados, apesar de ampliada pela Balenciaga, não pode ser creditada à marca. Tampouco à Gucci, que aderiu à ideia, em 2019, quando lançou seu Screener Sneaker, feito com a mesma técnica de tornar cada produto único em um processo de “detonação controlada” realizada em suas fábricas da Itália. Tornar “lixo” os tênis de luxo é a alma de outra italiana, a Golden Goose, há mais de duas décadas.
Modelo Screener Sneaker, lançado pela Gucci em 2019, também apostou no visual da sujeira.Reprodução
Fundada em Veneza no início do ano 2000, a marca mantém dezenas de milhões de interações no Tik Tok e rende uma receita anual aproximada de 266 milhões de euros vendendo o trabalho dos “seneakermasters” (mestres dos sneakers), que aprendem essa forma de arte em cima do couro no ateliê da marca. Uma estrela identifica os tênis, que custam uma média R$ 3.500 e são vendidos no Brasil desde o ano passado, por meio da operação conjunta da Golden Goose e o grupo Iguatemi.
Segundo explicou seu CEO, Silvio Campara, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, o tipo de destruição varia, mas se concentra no couro, amolecido para garantir o efeito, e no lixamento nas solas de borracha. A diferença é que, com o processo calculado, não há novo desgaste em cima do desgaste de fábrica, mantendo o visual “para a vida inteira” –aliás, essa foi a descrição usada pela Balenciaga para vender a ideia do sapato detonado.
“Se você olhar bem, os sapatos tradicionais mudam em seis meses. Compra-se uma perfeição que não dura”, disse Campara a este repórter ao explicar as motivações da grife.
Prateleira repleta de tênis detonados da Golden Goose, grife italiana que desde o início dos 2000 estimula seus artesãos a desenvolver métodos para detonar as peças de forma calculada.Divulgação Golden Goose
TRASH CHIQUE
Entender as ideias por trás da Golden Goose de que “se a vida não é perfeita, por que temos de buscar uma perfeição que simplesmente não existe nas coisas de verdade?”, ajuda-nos a compreender os meandros do “trashion” e o sucesso tramado na suposta sujeira. Quer dizer, suposta para alguns. A título de curiosidade, todos os limites do bom senso já foram cruzados pela PRPS, grife nova-iorquina que decidiu, em 2017, cozinhar lama para tingir uma calça jeans de US$ 425. Jogo sugo, mesmo.
Calça suja de lama cozida lançada pela marca PRPS, que foi posta à venda pela Nordstrom, em 2017, por US$ 425. A peça integra uma coleção repleta desse tipo de “tinta”.Reprodução
É que o lixo é moda desde a semente do movimento punk, cuja principal estilista, Vivienne Westwood, chocou a Londres dos anos 1970 quando colou nos membros do Sex Pistols o visual trash que era fotografia da cidade degradada, repleta de lixo pelas ruas. Ossos de galinha, cordas de descarga, picho, tachas e o tartã escocês preencheram a iconografia da contestação. Assim como hoje, poucos engoliram as ideias naquele tempo, mas o estilo se perpetuou com a fusão das “sujeiras” estética e musical do punk.
Uma das primeiras criações da principal estilista do punk, a inglesa Vivienne Westwood, a camiseta “Chicken Bone” foi criada em 1971 e tinha ossos de galinha costurados para formar a palavra “rock”.V&A Images/Victoria and Albert Museum London/Reprodução
Quando o consumo de massa enlatou o visual dos punks, vieram os jeans detonados, destruídos com rasgos, borrifos de tinta e lavagens. Um dos precurssores da desconstrução calculada foi Helmut Lang, que nos anos 1990 reconstruiu modelagens, furou suéteres e machucou as calças alterando o minimalismo correto demais da escola belga.
Ele acabou influenciando a mesa de corte de uma geração inteira de estilistas, do britânico Alexander McQueen ao brasileiro Caio Gobbi. O nome “trash chique” passou a ser adjetivo recorrente em textos de estilo, na esteira do visual degradado das modelos “heroin chic”, dando nome à famosa decadência com elegância. A beleza bebeu da fonte e os cabelos desgrenhados, repicados ou lambuzados com cera, acompanharam o visú. Pintou-se uma transgressão que logo foi questionada.
A primeira metade dos 2000 trouxe um retorno à simetria, tanto no guarda-roupas quanto na exploração do ideal de beleza, que passou a privilegiar o aspecto saudável, curvilíneo e corado. O teor de assepsia descobriu barrigas torneadas, ressaltou bustos e, ainda que tenha deixado os jeans rasgados intactos como signos de estilo, a destruição da década em nada se assemelhava à sujeira ou ao julgamento de que algo estava fora de lugar.
A modelo Jamilla Strand usa jeans destruídos durante a semana de moda de Paris, em março de 2022, e mostra como o visual detonado nunca saiu de moda.Jeremy Moeller/Getty Images
VERDADES INCOVENIENTES
Outro fenômeno teve papel decisivo na “fashionfobia” do novo século e é uma das causas da ojeriza de parte da audiência ao que lhe parece estranho, a internet. Ela democratizou a informação e tirou do escuro a falta de cuidado de uma parte da moda com o planeta e com quem produz o estilo. Os retalhos têxteis acumulados em lixões de tecidos nas regiões desertificadas e em países pobres, a queima de estoque excedente das marcas de luxo, o trabalho análogo à escravidão. Sobram exemplos e a moda enfrentou, e ainda precisa enfrentar, todos eles, os monstros do século passado que mantêm sua máquina.
Sob o slogan “não é caridade, é trabalho”, Vivienne Westwood foi ao Quênia criar peças ao lado de artesãos locais para dar vida nova ao lixo têxtil descartado no país e chamar a atenção para o descarte. A renda do itens de luxo foi toda revertida para os trabalhadores da capital Nairóbi.Divulgação
A própria Vivienne Westwood usou seu histórico de transgressão para questionar a descartabilidade das coisas e os efeitos do trabalho mal remunerado. Em 2011, ela se juntou à ONU, à Organização Mundial do Comércio e ao portal Yoox para criar a Ethical Fashion Africa Collection, resultado de um projeto desenvolvido em conjunto com a população de Nairóbi, no Quênia. Eles criaram bolsas feitas a partir de itens descartados pela indústria e parte das fotos promocionais de Jurgen Teller foram ambientadas em meio ao lixo, numa lembrança do quão tóxica a moda pode ser para o planeta e para as pessoas.
Essas questões são ampliadas pelo noticiário. A começar pela pandemia. Segundo relatório da Oxfam Brasil, os 1.000 maiores bilionários do mundo recuperaram suas perdas financeiras em apenas 9 meses do ano de 2021, mas, de acordo com o mesmo estudo, os mais pobres devem levar mais de uma década para voltar ao nível de segurança econômica pré-pandêmica.
Então, como explicar um tênis de mil dólares que parece brincar com a conta bancária das pessoas num mundo em que se cata lixo para sobreviver? Mais. Como tratar de aspectos estéticos vinculados à destruição quando uma guerra se desenrola na Ucrânia, vizinha à meca do luxo Ocidental? Reside aí uma das questões prementes sobre o sistema da moda, porque, como costuma dizer Maria Grazia Chiuri, da Christian Dior, ela não trata mais apenas de beleza e feiura, mas de privilégios. Logo, aponta-se o suposto mau gosto de quem paga alto pelo lixo luxuoso.
BODE EXPIATÓRIO
Indo ainda mais fundo na equação, a moda, entre todas as vertentes da cultura, anda servindo quase como bode expiatório do que há de mais podre, com o perdão do trocadilho, no lixão de coisas, fatos e situações que castigam a realidade.
É bonito admirar o trabalho dos designers que tornaram estilosos os apartamentos moderninhos decorados com madeira de demolição, paredes descascadas e o padrão acimentado da escola brutalista. É bonito, também, reconhecer os artistas plásticos que usam o lixo como ferramenta de contestação –impossível não lembrar de “Lixo Extraordinário”, que acompanha a obra de Vik Muniz a transformar em arte o cotidiano de um aterro sanitário carioca. Quando se trata de transpor para o vestuário essas mesmas ideias, mesmo embebidas de discussões atuais, mas conduzidas por estilistas, o tribunal prefere gritar “não”.
Talvez ajude fazer uma leitura do contexto da Balenciaga para, ao menos quem se presta a ouvir e ler a moda, tirar suas próprias conclusões. Não se trata aqui de julgar a beleza dos tênis, mas o massacre virtual não leva em conta que a tesoura de Demna Gvasalia concentra esforços na destruição. A moda “apocalíptica” foi vertida na passarela do designer ainda em 2019, quando, em meio a um teatro inundado, ele começou a explorar o que usaríamos no fim dos tempos.
O convite do último desfile da marca, fio condutor dessa coleção que inclui os tênis sujíssimos, era um iPhone destruído. Remetia ao caos, ao desastre e ao descarte. O conceito dentro da caixa de vidro onde os modelos desfilaram, em meio a uma tempestade de neve, tratava das temperaturas extremas provocadas pelo aquecimento global que, no dia da apresentação, ganhou paralelo com a crise de refugiados da Ucrânia.
É importante lembrar que Demna Gvasalia é um ex-refugiado, da Geórgia, de onde foi forçado a migrar após a invasão russa à sua Abecásia natal, nos 1990. A ideia não parece tão distante do que vemos acontecer no mundo, não é?
Modelo desfila coleção de inverno 2022 da Balenciaga, na semana de moda de PAris, em março de 2022. Entre os acessórios explorados por Demna Gvasalia, havia esta bolsa em formato de saco de lixo.Balenciaga/Divulgação
Aos moldes do que fez Karl Lagerfeld em sua coleção para a Chanel inspirada no “supermercado”, desfilada em Paris, em 2014, tornando fashion a banalidade de um pote de margarina com emblema grifado, Gvasalia também testa os limites do que pode ser considerado luxo nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, resgata toda a sujeira e a destruição que foram moda há pouquíssimo tempo no relógio cronológico das tendências e dão a tônica no noticiário.
SOBE O SOM, DJ!
Agora, toca Ramones aí. A banda americana fez o modelo All Star, da Converse, um sucesso de vendas quando tornou a peça o ponto de atenção em seu uniforme oficial. Os tênis não estavam nada limpos, precisamos lembrar, e isso virou um detalhe reproduzido até o início deste século por estudantes de diferentes estratos sociais.
Os modelos All Star, da Converse, foram popularizados pelos Ramones. E, sim, as peças costumavam aparecer bem sujas!Reprodução
Mais recente ainda, o grunge, nos últimos suspiros do século 20, transpôs a sujeira dos acordes e das letras para o guarda-roupas. O visual de Kurt Cobain, do Nirvana, carregava na roupa surrada e folgadona toda a funcionalidade da moda daquele tempo, adicionando o desprezo calculado da costura pelas regras vigentes.
Para voltar aos dias de hoje, olhe para baixo e analise o estardalhaço fashion criado em cima dos calçados veganos da Vert Shoes. O legal hoje parece ser deixá-los sujos, como memória do viés sustentável de sua produção resistente aos baques do tempo. Na última semana de moda de Paris, aliás, era difícil não ver no metrô e nas ruas abarrotadas de gente alguém que não usasse esses tênis em sua versão internacional, com a etiqueta Veja, tingidos da sujeira acumulada do dia dia.
LIXO DO FUTURO
Por falar em sustentabilidade, o “trashion” hoje remete também ao “upcycling”, mais especificamente o reúso de materiais que iriam para aterros sanitários. A Kitecoat, um dos destaques da Cartel 011 e da multimarcas de moda sustentável Bemglô, produz jaquetas feitas com o náilon dos aparelhos de velas, kitesurf e pipas descartadas.
Modelos de jaquetas da Kitecoat, grife carioca que recicla restos de equipamentos de kitesurf para criar roupas.Divulgação
No lado de cima do globo, o estilista Zero Waste Daniel, sediado no Brooklyn, em Nova York, ganhou em 2019 uma página inteira do The New York Times com sua moda produzida a partir dos restos de roupas, retalhos e artefatos encontrados nas latas de lixo, ou de luxo, nova-iorquinas. O título da reportagem assinada pela diretora de moda do jornal, Vanessa Friedman, alfineta os conservadores do estilo e faria corar a patrulha anti-lixo de hoje: ‘o futuro é trashion’.
É próprio das novas gerações, para quem a Balenciaga e toda a moda sempre direcionaram sua lupa, questionar a realidade e fazer das roupas objetos palpáveis dessa contestação. A moda como indústria, seja ela a de luxo, seja a do ultra fast-fashion onde reina a varejista Shein, apenas imprime com diferentes formas, métodos de produção e, por fim, preços, essas aspirações.
Claro, é preciso debater e tratar com urgência os efeitos colaterais desse sistema. Soa raso , porém, e, em alguns casos, cínico, emular uma fobia fashion e apontar os dedos apenas para a superfície na tentativa de desvirtuar o que pulsa no núcleo dessa roda: o poder inquestionável da moda em materializar como alguém enxerga os fatos e tenta mostrar-se, ou moldar-se, ao mundo.
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