O auge e a queda da sapatilha: como esse sapato tão amado virou cringe?
O modelo é um básico da moda, salvou os pés das mulheres em 2010, mas ficou acessível "demais". Por que há quem ache o calçado cafona?
Lembro bem do dia que comprei a minha primeira sapatilha. Era 2006, ainda estava no Ensino Médio, e queria usar o sapato que estava nos pés das personagens Marissa Cooper, da série The OC, e Blair Waldorf, de Gossip Girl. Aos 17 anos, era a primeira vez que abria mão do tênis para usar um sapato mais social. Aquela sapatilha, preta com um laço preto na ponta, me acompanharia na faculdade e meus primeiros estágios.
A minha história não é incomum. Pouco antes de 2010, a sapatilha, criada nos anos 1950, estourou. Havia cores e acabamentos diferentes, para todos os gostos. Era o sapato favorito das jovens que deixavam os tênis de escola em busca de um estilo mais corporativo. Surgiram até marcas só focadas nesse modelo, como a Anacapri, do grupo Arezzo. Um clássico da moda, ela era o sapato que aparecia nos pés de todos. E esse talvez seja um dos motivos pelo seu declínio. Em 2021, a sapatilha surge entre os itens “banidos” pela geração Z. É cringe.
Não se sabe ao certo quem inventou o sapato sem salto. “Maria Antonieta usava sapatos baixos, por exemplo”, fala Valeska Nakad, coordenadora do curso de Design de Moda da Faculdade Belas Artes, em São Paulo. Mas o acessório como conhecemos hoje tem uma autora: Rose Repetto, designer com origem italiana, radicada na França. Inicialmente, ela criou o sapato rasteiro e maleável para o seu filho, o bailarino Roland Petit.
Sapatilha Repetto.Foto: Divulgação
Brigitte Bardot.Foto: Reprodução
Audrey Hepburn.Foto: Reprodução
“Em 1956, ela fabricou outra versão para Brigitte Bardot usar no filme E Deus… criou a mulher“, conta Valeska. O modelo chamado Cendrillon, Cinderela em francês, foi parar no figurino da atriz, combinado a calças de barra curta e camisetas listradas. Um visual muito francês, que se popularizou nos próximos anos. Modelos semelhantes também foram adotados por Audrey Hepburn.
Desde então, a sapatilha é considerada um básico essencial a todo guarda-roupa. Assim como o vestido preto e a camisa branca. Em uma época em que o tênis ainda não existia no visual do dia a dia, ela era a única opção ao sapato de salto alto. “A sapatilha sempre teve esse apelo de ser muito confortável, mas manter a elegância”, comenta Valeska. O jogo virou em 2006, quando o modelo surgiu na passarela de grifes como Céline e Valentino. A versão bicolor da Chanel, com a ponteira preta, também ressurgiu e virou item de desejo. E assim, o mundo lembrou que, além de básica, ela pode ser muito estilosa.
Por mais que a sapatilha nunca tenha deixado seu posto de item essencial de moda, o acessório ganhou novo fôlego em um momento em que as blogueiras de moda começaram a fazer sucesso na internet. “Foi o primeiro sapato que foi assunto de um monte de conteúdo sobre ‘como usar'”, comenta a consultora e criadora de conteúdo Carla Lemos, autora do livro Use a Moda a seu Favor.
Chanel, verão 2006.Foto: Divulgação
Valentino, verão 2006.Foto: Divulgação
“Em todo Pinterest, blog que você entrava, tinha dicas de como combinar a sapatilha com calça, saia. Para sair no fim de semana, para ir ao trabalho.” A imagem do calçado estava em todo site especializado. “O cinema e a TV sempre foram muito importantes para trazer tendências de moda, mas a internet torna isso muito mais rápido”, fala Valeska.
Porém, não foi apenas uma questão de influência, mas de timing. A sapatilha se tornou revolucionária quando embarcou em um momento importante para a história da moda: a flexibilização dos códigos de vestimenta, principalmente no ambiente profissional.
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Foi assim lá na vida dos anos 1950 e 1960, com as novas formas de representação e lugar da mulher na sociedade, e aconteceu de novo nos anos 2000. Nessa época, as empresas começaram a afrouxar a obrigatoriedade do salto alto e terno. “As millennials estavam entrando no mercado de trabalho, queriam se mostrar mais adultas, mas estavam preocupadas com o conforto. A sapatilha preencheu esse espaço”, diz Carla.
O fato de ser um produto razoavelmente acessível também importa aqui. “Ela tem um design simples, que não requer maquinário muito elaborado para ser produzido. É um sapato fácil de se fabricar”, diz Valeska. Com a mesma fôrma, é possível fabricar sapatilhas em diversas cores, mudando apenas um detalhe ou outro. Para completar, rolou um avanço da tecnologia de materiais que barateou o processo. “E aí lascou”, comenta Carla.
Se antes a sapatilha estava nas lojas da Repetto e em passarelas de grifes de luxo, a partir de 2010, ela estava preenchendo paredões ou penduradas em cabides de lojas populares por toda a parte. “Havia modelos sendo vendidos por 10, 15 reais”, comenta Valeska. Ela cabia no bolso das classes mais baixas e, principalmente, no estilo de vida delas. As minhas sapatilhas pretas me acompanhavam pelas minhas jornadas de mais de duas horas de transporte público que eu enfrentava da minha casa até o meu emprego. Não sei se faria o mesmo de salto alto. “E era um calçado fácil de ser transportado, então a mulher podia fazer todo o caminho de sapatilha e trocá-la por um outro sapato quando chegava ao trabalho”, fala Valeska.
A sapatilha virou, então, o que se chama pejorativamente de carne de vaca. “Quando você vê pessoas de fora do circuito de luxo usando alguma coisa, a reação é sempre rejeitar”, diz Carla. Não é um movimento novo. A história da moda é toda construída na lógica de substituição e renovação de acordo com uma série de marcadores sociais. É aquela história de que toda tendência morre com sua saturação.
E, mais uma vez, o timing foi decisivo para a história da sapatilha. Enquanto a popularidade do calçado caía, os tênis esportivos ganhavam mais notoriedade. À medida que a moda ficava mais e mais confortável, eles deixaram de ser um artigo extremamente casual ou exclusivamente esportivo. Com a maior flexibilidade das vestimentas, eles não eram mais calçados restritos à academia ou à prática de esportes. Não só por incentivo de marcas como Adidas e Nike, mas também pela forte atuação de etiquetas de luxo. Muitas começaram a investir em sneakers exclusivos, edições limitadas e a preços bem elevados.
Atualmente, os tênis não saem dos pés dos jovens que estão entrando no mercado de trabalho. Os modelos Air Jordans, da Nike, por exemplo, são uma uma febre entre os zennials. A sapatilha, por sua vez, foi renegada. Em um post no Twitter, a criadora de conteúdo Carol Tchulim pediu para que os seguidores mais jovens dissessem o que eles consideravam cringe: a sapatilha foi citada, junto com a calça skinny.
Disseram que ficou “cafona”, coisa de quem é básico demais. Esquecem, no entanto, que, no Brasil, onde 24 milhões de pessoas vivem com um quarto do salário mínimo de 1.100 reais, nem todo mundo tem poder aquisitivo para comprar um tênis Nike que pode custar até 900 reais.
Mesmo com muita gente torcendo o nariz, Carla Lemos e Valeska Nakad dizem que o acessório continua sendo usado. “Ela aparece com outros designs”, fala a coordenadora da Belas Artes. A slingback e a mule sem salto são as primas mais modernas do item. Em 2016, o calçado, com design de Phoebe Philo, também voltou para a passarela da Céline, agora sob direção criativa de Hedi Slimane. Também esteve presente nas coleções mais recentes da Gucci, Saint Laurent, Prada, Chanel e, claro, na Zara também. Lojas como C&A, a Renner e até a Arezzo nunca desistiram do modelo e os mantêm à venda. E com certeza há uma Anacapri bombando no shopping mais perto da sua casa. E isto não deve mudar tão cedo.
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