O fascinante mundo disfuncional de John Waters

Subimos na montanha russa que é conversar com o diretor, escritor e artista visual responsável pelos filmes mais camp e chocantes da história do cinema e, agora, estrela da campanha Pride da Calvin Klein.


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John Waters é uma dessas mentes absurdas cujas respostas são sempre surpreendentes. Nenhuma de suas falas chega perto do óbvio ou do senso comum. Na verdade, passa bem longe disso. Para quem não conhece o diretor, escritor, ator e artista aqui vai uma breve bio: nascido em 1946 em Baltimore, no estado norte americano de Maryland, nos EUA, ele fez carreira com um humor sarcástico, sujo, camp e, por vezes, até surrealista. Porém, a melhor maneira de descrevê-lo seja analisando sua obra. Principalmente os filmes Pink Flamingos (1972), Problemas Femininos (1974), Hairspray (1988) e Cry Baby (1990).

No peculiar mundo de John Waters, a sujeira é incrível, a disfunção é linda e o grotesco é posto em evidência com orgulho. Suas piadas, sempre carregadas de tom político, falam sobre o que o artista e cineasta ama, não o que odeia – por isso, são tão potentes. Ele ficou conhecido por criar um espaço seguro para quem não se encaixa com facilidade em um mundo como o nosso (ou como aquele de outrora) por meio de filmes, fotos, livros ou do próprio comportamento. A inclusão e celebração da comunidade queer em sua obra é histórica e merece reconhecimento, principalmente pelo pioneirismo.

Para ele, a beleza está em uma imagem inesquecível – seja por ser surpreendente ou grotesca o suficiente para nunca mais sair da sua cabeça. E a moda é parte essencial dessa construção estética, que, aliás, extrapola seu trabalho artístico. Para além do exagero escrachado e imundo dos longas mais famosos de John Waters, há seu próprio look-assinatura, marcado por bigode fino desenhado (literalmente) acima da boca.

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A atriz Mink Stole e John Waters.Foto: John Edmonds

No alto de seus 76 anos, Waters parece não querer parar. Em 2022, ele lançou Liarmouth, a feel bad romance, que conta a história de três mulheres de gerações diferentes de uma família que planejam confrontar ou matar umas às outras. Pós-pandemia, ele também está rodando os Estados Unidos com um show de spoken word – uma espécie de stand-up comedy – chamado False Negative e acaba de estrelar da campanha do mês do orgulho LGBTQIA+ da Calvin Klein, ao lado da atriz Mink Stole, que interpreta Connie Marbie em Pink Flamingos.

A marca estadunidense celebra famílias (mesmo que não de sangue) de ícones da comunidade que não têm medo de ser quem são – e, se tem uma coisa que Waters não tem, é medo. Como fica claro na entrevista a seguir:

Para começar, como você se sentiu ao ser convidado para estar na campanha da Calvin Klein?

Fiquei muito lisonjeado, mas quando pensei sobre, queria que eles tivessem me convidado quando eu tinha 20 anos, em 1961, e pesava 59 kg. Não é exatamente o look da Calvin Klein, mas teria sido mais fácil. Eu fiquei emocionado, pensei “é muito tarde ou muito cedo?”. Não sei. Fiquei feliz. É uma grande piada em que eu posso falar para as pessoas que agora sou um top model. (risos)

Você já tinha participado de alguns desfiles da Comme des Garçons, não?

Sim, fiz uns dois. É excitante fazer parte de algo do tipo!

E qual é seu relacionamento com moda?

A razão pela qual consigo trabalhos na moda é eu gostar de participar, sabe? Uso looks ridículos que compro para os meus shows (de Spoken word). As pessoas não me dão roupas. Quer dizer, às vezes eles me dão um desconto. Mas a única coisa que eu sempre brigo com os stylists é que eles trazem o que eles querem usar, não o que eu quero usar. São duas coisas diferentes. Eu não estou usando o que é ideal para alguém com 76 anos de idade. Acho incrível ter 23 anos, mas há uma certa moda e certa dignidade que é delicada. Quando você chega a certa idade, eu preciso andar nas beiradas desses limites.

Você acha que a moda está ficando menos transgressora e mais careta?

Não, acho que a moda, ou parte dela, é supertransgressora. Inclusive, acho que os desfiles estão ficando mais transgressores. As pessoas estão mais propensas a correr riscos ridículos. E acho que quando você é jovem, você nunca fica bobo em um look. Quando você envelhece, no entanto, é quando você mais precisa da moda. Quando você é superjovem, você pode ir a um brechó, comprar algo que custa cinco centavos e ainda ficar perfeito. Quando você tem 70 anos, não consegue mais fazer isso. Eu não compro mais em brechós! Eu pago muito dinheiro para parecer pobre. (risos)

“Orgulho significa que você não liga se alguém descobrir com quem você transa. E não é algo para ficar pirando sobre.”

Quais são seus estilistas favoritos?

Calvin Klein, que conheci pessoalmente, e Rei Kawakubo (da Comme des Garçons). Também gosto do Yohji (Yamamoto), Issey Miyake. Adoro Dries (Van Noten) e Walter Van Beirendonck. E GAP, curto as cuecas deles. No shooting, foi divertido, porque tentei achar uma maneira de mostrar as cuecas da Calvin Klein enquanto as usava sem morrer de vergonha. Então nós encontramos um jeito. Você pode ver minhas cuecas Calvin Klein em algumas das fotos!

Para alguém que trabalha com a comunidade LGBTQIA+ há tanto tempo, o que orgulho significa para você?

Orgulho significa que você não liga se alguém descobrir com quem você transa. E não é algo para ficar pirando sobre. Não é algo que as pessoas têm a ver. Não acho que ser gay significa ser melhor que alguém – mas acho que é um bom começo.

Mas acredito que orgulho gay é sobre saber que você é como todo mundo, então, você não precisa só andar com outros homens gays. Você pode andar com héteros. Eu nunca fui separatista. Adoro lésbicas, trans, adoro sair com todo mundo junto, até com héteros! Para mim, essa mistura gera a conversa mais excitante que se pode ter.

Em uma entrevista você disse que, agora, todo mundo quer ser outsider e, alguns anos atrás, ninguém queria. Como você vê essa mudança? Em teoria, isso pode até ser verdade, mas é só passear dois segundos no Instagram ou no TikTok e você vê que todo mundo quer se encaixar…

Um outsider costumava ser algo que ninguém queria ser, todos queriam que a gente se encaixasse. Agora, tanto Trump quanto Obama se descrevem como outsiders. Então, decidi que quero ser um insider e fazer coisas malucas como eu fiz com Hairspray, que foi visto por mais pessoas do que nunca. Para mim, é a coisa mais idiota. Até racistas idiotas gostam de Hairspray, porque eles não enxergam a mensagem, já que ela foi inserida no filme com humor. E aqui nós temos dois homens cantando uma música de amor um para o outro, Edna e Tracy, em uma peça escolar. Acho que foi isso que eu quis dizer. Você tem que se infiltrar. Para realmente ter sucesso, você precisa ser uma espécie de cavalo de Troia e acho que a moda nos ajuda a fazer isso.

Qual é sua parte favorita da juventude atual? Você ainda se inspira nos jovens?

Sim! Adoro o gosto musical deles, que é algo que sempre irrita pessoas mais velhas. Adoro a ideia dos hackers, mas eu fico me perguntando se existe uma moda para hackers. O que eles usam? Eles são apenas pessoas más sentadas no escuro o tempo inteiro? Fico me perguntando se a Calvin Klein deveria fazer uma linha pensando neles. Acho que seria interessante.

Você já teve vontade de ser estilista e criar roupas?

Eu poderia ser. Tenho várias ideias. Acho que Rei Kawakubo é provavelmente a estilista mais influente da minha época, porque todo mundo trabalha com desconstrução agora. Todo mundo faz roupas e coisas quebradas e rasgadas, o que era muito radical quando ela fez pela primeira vez. Ao mesmo tempo, a Calvin Klein inventou a história do branding e agora todos os produtos no mundo precisam disso. E ele fez isso com humor e para chocar de alguma forma. O que ele fez com suas campanhas publicitárias chocou todo mundo. Jovens surpreendendo pessoas mais velhas – e é isso o que faz a moda funcionar.

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A drag queen Divine, em cena de Pink Flamingos.Foto: Divulgação/Midnight Movies

Você acha que as pessoas estão com medo de chocar hoje em dia?

Quando eles tentam, é muito óbvio. Tento usar o choque para prender a atenção e, logo depois, comento sobre coisas políticas que podem surpreender as pessoas. É fácil ser transgressor, só que é preciso de um brilho. Quando alguém fala “ah, isso é tipo um filme do John Waters”, eu geralmente não gosto do filme. Ele não é tão espirituoso e também não está mudando nada. Então, depois de Pink Flamingos, eu nunca tentei copiar essa fórmula. Sabia que eu tinha ganhado. Para sempre.

Você se considera mainstream depois de todos esses anos e sucesso?

Não sei se é o caso de que eles não conseguem se livrar de mim, então, precisam me aceitar. Pode ser isso. Também acho que o público estadunidense e o humor mundial mudaram completamente. Nós estamos rindo de nós mesmos com mais facilidade, mas também sobre tudo que está errado. Às vezes, o melhor remédio para a dor é a risada.

O humor tem limites?

Depende. É muito mais fácil fazer piadas sobre negros se você é negro, é muito mais fácil fazer piadas sobre gays se você é gay, ou sobre trans se você é trans. Mas acredito que você pode, sim, cruzar essa linha. Eu me safei de muita coisa. E eu acho que o motivo de eu não ter sido cancelado é porque eu faço piada das coisas que eu amo, não do que eu odeio.

Você usa bastante a internet, Instagram, TikTok? Como é sua relação com as redes sociais?

Não, não uso. Quer dizer, estou online o tempo todo, mas quero ser cada vez mais difícil de acessar. Porque eu divulgaria minhas ideias? Não teria nenhum material para os meus shows. Não entendo quem divulga todo seu material nas redes sociais. É assim que ganho meu dinheiro! E também não estou interessado no que você almoçou. Eu tenho amigos, não estou procurando mais amigos. Especialmente quando são pessoas que não se esforçam para te encontrar, que não te buscam no aeroporto, não te ligam, não vão com você em restaurantes. Essa é uma maneira preguiçosa de ser um amigo.

O que ainda te surpreende depois de todos esses anos?

As únicas coisas que me chocam ultimamente são ruins. Pessoas burras, comédias românticas ruins. O que me choca não é bom. Se vi algo bom e ultrajante? Não. E procuro por isso todos os dias, te prometo.

Sinto que todo mundo já fez todas as perguntas que poderiam ser feitas para você. Tem alguma pergunta que ninguém nunca fez, mas você adoraria responder?

Outro dia, quando eu estava fazendo meu show de spoken word, me fizeram uma pergunta nova. Me perguntaram como eu evitava ter câncer. Achei inédito, eu tenho 76 anos e fumo, então, respondi sobre parar de fumar. A audiência começou a rir. Na verdade, tinham me perguntado como eu evitava ser cancelado e eu entendi errado. Mas quando achei que a pergunta era sobre câncer, eu pensei: bem, finalmente uma pergunta nova. Mas minha favorita foi quando uma menina disse: “meu pai me contou que ele quase foi para casa com você depois de uma festa”. E eu respondi: “oh, noite poderosa!”

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