O mercado de revenda está em alta por consciência ou necessidade?

Pela pandemia, pela crise econômica ou pela vontade de ser mais sustentável, a compra e venda de peças de segunda mão atingiu números inéditos no país e no mundo. Entenda as causas desse crescimento.


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Ilustração: Mariana Baptista



Se você acompanha os tapetes vermelhos ou os looks de famosas pelo mundo e redes socias, deve ter percebido uma terminologia bem comum nos créditos das roupas: vintage. Sim, está rolando todo um momentinho nostálgico de recuperação não só de estilos, mas também peças do passado. O fenômeno, contudo, não se limita ao mundo das celebridades.

Nos últimos três anos, o mercado de resale cresceu 21 vezes mais rápido que o varejo normal. Em 2018, 56 milhões de mulheres compraram produtos de segunda mão nos Estados Unidos, 12 milhões a mais que em 2017. No mesmo ano, a Burberry seguiu com uma prática antiga e incinerou 37 milhões de dólares em roupas. Depois de algum burburinho na internet, revisou seus processos e firmou parceria com o The Real Real, site norte-americano de revenda de luxo. Na ação com a etiqueta britânica, os clientes que revendessem suas peças por lá ganhavam desconto na compra de um novo item. Gucci e Stella McCartney também entraram na onda e se associaram ao site da mesma maneira naquela época.

Acelere alguns anos. Pandemia de Covid-19, crise econômica, lockdown e quarentena quase no mundo inteiro. O varejo retraiu. O mercado de revenda, no entanto, cresceu. Em 2020, o NRF Retail’s Big Show, uma feira global que debate o futuro varejista, apontou o resale como uma das sete grandes tendências do ano. Só nos primeiros quatro meses de 2021, 29% dos compradores e 45% dos revendedores do The Real Real entraram no mercado pela primeira vez.

“Cerca de 40% dos nossos compradores disseram que escolheram nosso site como um substituto para o fast fashion, enquanto 43% comentaram que a sustentabilidade é um fator decisivo para que comprem conosco.” Sasha Skoda, diretora do segmento feminino do The RealReal

Segundo o relatório de 2021 da ThredUp, gigante estadunidense de revendas, nos últimos 12 meses, 42% dos millennials e dos gen-Zs consumiram resale e 33 milhões de pessoas compraram roupas de segunda mão, sendo que 76% delas planeja aumentar esse consumo nos próximos cinco anos. A projeção é que os números dupliquem nesse período, atingindo a marca de 77 bilhões de dólares e cerca 118,8 bilhões de revendedores só nos Estados Unidos.

Muitos associam o crescimento à vontade das novas gerações mudarem seus hábitos de consumo, se tornando mais sustentáveis. Há relatórios e pesquisas que apontam que 90% dos gen-Zs já compraram ou estão dispostos a comprar itens de segunda mão. “Gerações mais jovens abraçaram a revenda de luxo como nunca antes. Só no último ano, vimos um crescimento de 61% de compradores da geração Z”, diz Sasha Skoda, diretora do segmento feminino do The RealReal, em entrevista à ELLE Brasil.

Durante a pandemia, a adoção da revenda foi significativa. No The RealReal, foram 6 milhões de novos membros. “Cerca de 40% dos nossos compradores disseram que escolheram nosso site como um substituto para o fast fashion, enquanto 43% comentaram que a sustentabilidade é um fator decisivo para que comprem conosco”, completa Skoda. Em uma iniciativa para dar vida nova a roupas antigas, a empresa apresentou, em abril deste ano, sua primeira coleção de upcycling ao lado de marcas como Balenciaga, Dries Van Noten, Jacquemus e Stella McCartney.

O SECOND HAND DE LUXO NO BRASIL

O Brasil nunca teve uma cultura forte de brechó e revenda. Contudo, esse cenário vem mudando nos últimos anos com o surgimento de empresas com curadorias afiadas e serviço de loja diferenciado – tanto física quanto online. Um relatório do Sebrae sobre este mercado, publicado em 2019, aponta que, de 2010 a 2015, o número de brechós no país cresceu 210%.

Mais recentemente, o foco no resale de luxo ganhou players importantes – alguns novos e outros já velhos conhecidos da indústria de moda. O Roupartilhar, por exemplo, nasceu no começo da pandemia como uma ideia de Natalia Hohagen e Maria Chagas de criar uma rede de apoio a instituições de caridade através da venda de roupas de suas amigas.

O que começou como um grupo no Whatsapp, em que algumas pessoas doavam três peças de seu acervo, virou um negócio. O grande diferencial é a curadoria e a verificação de autenticidade de cada item vendido no endereço online, além da doação de cerca de 70% do lucro para instituições de caridade – até hoje, já foram doados 253 mil reais para 53 delas.

Look do site de revenda Roupartilhar.

Roupartilhar.Foto: Divulgação

“Nos relacionamos apenas com marcas que têm sinergia com a gente. Não aceitamos grifes que tenham histórico de trabalho escravo ou que não utilizem materiais de procedência confiável. Não quero que seja só algo de alto luxo por um preço menor. Queremos fomentar uma moda ética e na qual a gente acredita”, diz Hohagen, que já foi buyer da Valentino e da NK Store.

Em outubro próximo, nasce o Roupartilhe, um braço em que qualquer pessoa poderá vender suas roupas, mas com a curadoria do Roupartilhar, como um marketplace. “Temos muita demanda de gente que nos procura para vender peças, unindo o fato de ganhar dinheiro e ainda destinar uma parte para uma instituição. Nessa nova plataforma, as pessoas poderão escolher quanto doar (de 3 a 60%) de acordo com sua necessidade”, explica a fundadora.

Os brechós online de luxo funcionam ainda como uma porta de entrada para pessoas com menos poder aquisitivo que curtem moda. É o caso de Amanda Adász, fundadora do núcleo criativo de cultura jovem Poppin. Aos 16 anos, ela conheceu a Limbo Projects, espaço de um de seus melhores amigos em que escolhia peças de grife garimpadas para ir em festas ou fazer editoriais. “Meus amigos e eu sempre quebramos esse estereótipo de que só determinado grupo pode usar marcas, colocando eleas na rua de maneira diferente e criando uma nova linguagem”, comenta.

Amanda Ad\u00e1sz.

Amanda Adász.Foto: Divulgação

Se em 2021, aos 22 anos, Adász começou a consumir mais peças de luxo de segunda mão por conta própria, foi devido a esse primeiro contato. “Refinei ainda mais meus gostos, comecei a investir mais, comprando coisas mais legais em ótimo estado. Amo comprar vintage, porque geralmente são peças que só você vai ter.”

A APOSTA DAS GRANDES MARCAS

Não demorou para que grandes grupos de moda se interessassem pela alta no mercado de segunda mão. Em outubro de 2020, A Levi’s lançou, nos Estados Unidos, a Secondhand, que revende jeans usados. No Brasil, a marca se uniu ao Repassa, uma startup de moda consciente e maior brechó online do país, em uma parceria, que tem como propósito dar mais ciclos de vida para 70% das roupas que ficam paradas no guarda-roupa dos brasileiros.

O Repassa foi oficialmente comprado pela Renner no começo de setembro, após um ano de flerte. “Quando a gente olhou o mercado, eles pareciam o parceiro perfeito. Já estávamos em parcerias comerciais desde o ano passado, com pontos de coleta das Sacolas do Bem (para serem preenchidas com itens que os consumidores desejam vender ou repassar) e, quanto mais os conhecíamos, mais nos aproximávamos”, conta Guilherme Reichmann, diretor de estratégia e novos negócios da varejista.

Segundo ele, o fato do Repassa cuidar de todo o operacional da revenda – da curadoria a produção de conteúdo e comunicação online – fez toda a diferença na decisão da compra. Na plataforma, as peças custam em média 90% menos de seu preço original. “Sabemos que existem gerações que já estão se adaptando com mais velocidade à compra de segunda mão, mas não acreditamos que vai ser algo restrito só a esse grupo, o consumo consciente vai atingir a população de um modo geral”, comenta Riechmann.

Troc.

Troc.Foto: Divulgação

Quem também entrou no jogo foi a Arezzo. O grupo comprou recentemente a Troc, plataforma de revenda que nasceu de uma inquietude da fundadora Luanna Domakoski, apaixonada por moda mas não pelas práticas completamente insustentáveis do mercado. “Nós apostamos no aculturamento do brasileiro em torno da segunda mão. Falamos de resale como uma oportunidade de ser mais sustentável, desmistificando o brechó como um lugar empoeirado cheio de roupa de defunto”, diz Domakoski.

Em 2017, a empresa foi criada dentro da sala de sua casa. Já no primeiro ano de negócio, houveram investimentos anjo. Em 2019, o grupo Reserva (hoje parte do grupo Arezzo) também apostou na Troc e, em dez meses, eles faturaram seu primeiro milhão. Antes dos três anos de loja, a empresa já valia 10 milhões quando, em 2020, a pandemia veio e os conceitos de consumo consciente ficaram mais fortes.

 

“É interessante como esse mercado se renovou e se atualizou, principalmente nos últimos anos”, explica Dudu Bertholini, atual diretor criativo da Troc. “O brechó sempre esteve muito ligado ao vintage, a peças com história, com tempo de vida maior. De repente, podemos renovar nossos guarda-roupas de forma mais contemporânea e incentivando as pessoas a aprimorarem seus estilos pessoais.”

Hoje, a startup contempla cerca de mil marcas, entre nomes de luxo, como Chanel, Gucci e Louis Vuitton, até marcas nacionais, como PatBo, Mixed e Animale. A curadoria, as fotos e a precificação de cada produto ficam nas mãos de uma equipe de mais de 50 funcionários de triagem – número que cresceu 300% no último trimestre.

A REVENDA DO STREETWEAR

A prática de revenda de itens preciosos é um pouco diferente no streetwear. Se em brechós de luxo você encontra peças com preços muito menores do que em lojas oficiais, no mercado de moda de rua a história é bem diferente. Com coleções pequenas, drops espaçados e colaborações entre grandes players do mercado, é cada vez mais difícil conseguir colocar as mãos nos tênis e roupas mais desejados do momento assim que lançados. E é aí que entra o papel de quem revende tais produtos.

Em sua grande maioria são peças novas e dentro da caixa, por preços muito acima do que o varejo comum. Segundo a apuração da reportagem, os modelos mais básicos chegam a custar no mínimo 100% a mais do que o preço original, podendo atingir 5 ou 6 vezes o valor em itens mais raros.

“Não acredito que tenha nenhum consumidor que ama esse mercado. Todo mundo quer tentar comprar o tênis e não consegue, aí precisa ir para a segunda opção, que são esses sites. Quando não tem jeito, vou atrás e considero comprar de resale”, comenta a diretora de arte e influenciadora Ully Correa. “Tem uma coisa de entender o timing, o que está em alta e comprar antes de todo mundo. Vi uma galera usando o New Balance 530 há uns dois anos lá fora e, aqui, não tinha em lugar nenhum. Entrei em contato com o reseller e, como não era um tênis hypado na época, saiu em conta.”

A Asap Cult nasceu cinco anos atrás como uma plataforma de conteúdo criado por Rafael Osório sobre o mercado de streetwear e logo se transformou em uma loja online. “Sempre gostei muito de skate, me amarrava na Supreme e, na época, não tinha ninguém que comercializasse essas roupas aqui. Lancei o site com um estoque de vestuário, vendendo Supreme e Palace”, lembra.

Seu trabalho era, de tempos em tempos, viajar para comprar os itens mais quentes do momento e vender no mercado nacional. Por volta de 2017, com vários lançamentos de marcas como Nike, Adidas e Yeezy chegando no Brasil, ele voltou o olhar para os sneakers. De 2018 para 2019, os tênis já ocupavam 75% do seu estoque.

Loja de The Game Collective.

The Game Collective

De lá para cá, o mercado continuou a crescer, mesmo durante a pandemia. Ou melhor, principalmente durante a pandemia. A The Game Collective, loja de revenda de Felipe Ribeiro, aumentou seu faturamento cinco vezes durante a crise sanitária. Seu estoque foi multiplicado por seis. “Para mim, três fatores sincronizados são importantes para esse boom: a revolução digital acelerada, já que quem não sabia comprar online, aprendeu; a questão de não poder gastar na rua, em rolês, ou viajar, que fez com que as pessoas gastassem mais online e o TikTok, que ajudou a viralizar esse mercado”, explica Ribeiro.

Ele abriu a loja em 2016, depois de fazer um intercâmbio na Califórnia. Pouco antes da pandemia, estava viajando de dois em dois meses, sempre perto dos drops internacionais importantes. Hoje, a TGC também é revendedora de marcas de streetwear nacionais como Piet e Pace e importa modelos através de colaboradores em Nova York, Paris e Portugal.

CONSUMO EM MEIO A CRISE

A crise econômica pela qual o país vem passando, desde antes da pandemia, também é um fator determinante para as pessoas começarem a se voltar a esse tipo de consumo. “Frente uma desvalorização tão forte, com tudo custando um valor absurdo, você começa a ter como alternativa comprar de segunda mão e vender o que está no armário para ganhar um dinheiro”, explica Marina Colerato, do site Modefica e colunista da ELLE. “É muito importante lembrar que estamos falando de uma sociedade em processo extremo e constante de pauperização e queda de consumo. As pessoas deixam de ir ao shopping para comprar em brechós onde cinco peças saem por 5 reais.” Por isso os números crescem.

Enquanto muitos atribuem o crescimento do mercado de revenda ao aumento de consciência sustentável, na prática, não é exatamente isso que acontece. “As pessoas entram em lojas como o Brecholeiras e o Encontro de Brechós (no Rio de Janeiro) procurando Farm e Zara. Há as entendidas de moda que procuram marcas gringas e as desavisadas que procuram a calça jeans que viram na novela por um preço bom”, diz a antropóloga Carol Delgado, dona do Puxadinho, espaço que cria debates de apropriação sobre moda e beleza. “Em nenhum desses lugares as pessoas entram para salvar o mundo.”

Apesar da geração Z se mostrar mais propensa a comprar itens de revenda, a realidade é que o TikTok e outras redes, muitas vezes, estimulam o consumo desenfreado e a saturação de tendências. O resultado: pessoas comprando sempre mais. “Não temos dados para dizer que as novas gerações estão consumindo de forma mais consciente. Quando a gente olha as tendências de mercado, vemos que não, principalmente quando falamos de forma mais totalizadora. Nichos extremamente pequenos estão com essa mentalidade responsável. Ao mesmo tempo, vemos o crescimento de fast fashions completamente descomprometidas. O que aumentou é a narrativa de sustentabilidade, não necessariamente a prática”, finaliza Colerato.

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