O que a moda pode aprender com o Projeto Sankofa?
Ao estrear na SPFW com o objetivo de racializar o evento, iniciativa mostra como a indústria pode cultivar valores de coletividade e união.
Em fevereiro deste mesmo ano, os coletivos Pretos na Moda e Vetor Afro-Indigena na Moda (VAMO) anunciaram uma parceria com a São Paulo Fashion Week. Nomeada de Projeto Sankofa e gerida por Rafael Silvério e Natasha Soares, ela tem como objetivo racializar a maior semana de moda da América Latina. Como? Inserindo oito marcas de pessoas negras para se apresentarem durante três temporadas.
Trata-se de algo bastante urgente e tardio na trajetória do evento. Ao longo de seus 26 anos de história, a SPFW apresentou pouquíssimas marcas comandadas por profissionais negros. Na edição de 2020, por exemplo, só três de 31 marcas eram de pessoas negras. Na mais recente edição do evento, contudo, o cenário começou a mudar e o mérito é primordialmente do projeto. Entre os dias 23 a 26 de junho, acompanhamos as apresentações digitais de Meninos Rei, Ateliê Mão de Mãe, Az Marias, Naya Violeta, Santa Resistência, Mile Lab, TA Studios e Silvério.
Ao longo desses quatro dias, vimos coleções não só inspiradas, mas potencializadas pela ancestralidade que acompanha cada criador. Foi comum entre as etiquetas participantes, por exemplo, as referências às religiões de matrizes africanas. Na Meninos Rei, dos estilistas Céu e Júnior Rocha, Exu é parte central do processo criativo e das imagens do filme fashion. Enquanto na Ateliê Mão de Mãe, de Vinícius Santana, Iansã e Obaluaiê dão o tom. Fogo e elementos do candomblé também se misturam na coleção de Naya Violeta, a primeira grife do centro-oeste a se apresentar na SPFW. E, na Mile Lab, Milena Nascimento se inspira na presença da força ancestral no corpo periférico para materializar a coleção, que nomeou de Baobá.
Meninos Rei na SPFWFoto: Bruno Gomes
“Fico vendo o quanto essa indústria terá que correr para compreender nossa linguagem e dialeto”, fala Milena. Ao mesmo tempo, a participação na SPFW serviu como uma espécie de autoentendimento para a estilista. “Pude perceber o que é a Mile Lab e entender que temos a responsabilidade de representar as vozes da quebrada, das ruas. Isso exige bastante força, mas sinto que tenho essa capacidade por estar num lugar como o Sankofa. Não é sobre individualismo e competitividade, é sobre unir forças para transformar esse mundo”, compartilha.
Vinicius também reforça a coletividade do projeto. Ele cita o incentivo e o apoio psicológico prestado pelo Sankofa como um ponto essencial para conseguir profissionalizar seu negócio. “Tem sido um divisor de águas para nós”, compartilha. ”A gente começa a enxergar futuras gerações que vão se espelhar na gente.”
Ao mesmo tempo em que inspirações para o futuro surgem, o olhar para o passado também é essencial. Foi o que Az Marias, de Cíntia Felix, fez ao se inspirar na força da guerreira angolana Nzinga, realeza do antigo Reino de Matamba. “O Projeto Sankofa é um grande refresh que a moda brasileira vem pedindo, com novas marcas, novos fazeres e perspectivas de impacto socioambiental através”, diz ela. Depois da sua estreia, o engajamento nas mídias de sua etiqueta aumentou e já existem alguns clientes aguardando a pré-venda.
Na Santa Resistência, a estilista Mônica Sampaio olhou para outra mulher inspiradora: Elizabeth de Toro, princesa de Uganda e uma das primeiras mulheres negras a cursar direito na Universidade de Cambridge. Mônica diz que sua estreia foi além de suas expectativas. ”Como é o maior evento de moda da América Latina, conseguimos uma maior visibilidade e muito mais pessoas tiveram interesse em conhecer a marca e quem está por trás dela”, compartilha. ”Recebemos muitas críticas positivas, mas uma me chamou atenção em especial ao frisar que a inspiração em Elizabeth de Toro deu um novo tom de sofisticação à marca Santa Resistência. Então, soube que o objetivo tinha sido alcançado e que tinham entendido minha proposta.”
Naya Violeta na SPFWFoto: Nathalia Takeuchi e Andreia Takeuchi
Gisele Caldas diz que o Sankofa foi um divisor de águas. Participar de uma semana de moda com sua marca, TA Studios, era seu objetivo para os próximos anos, mas tudo foi adiantado com a estreia de sua coleção, que buscou inspirações na cultura Iorubá. ”Agora, observo os elogios e os olhares e é interessante perceber que o trabalho foi entregue e as pessoas entenderam”, diz a estilista, que considera essa assimilação o retorno mais importante no momento.
Na Silvério, de Rafael Silvério, a escuridão deu à luz das criações. O estilista buscou compreender qual o potencial de estar nas sombras. Após a estreia, ele diz que teve o triplo de engajamento nas redes sociais. Quanto às vendas, afirma existir uma estratégia de conversão de visibilidade em comércio em desenvolvimento. O sentimento, no geral, é de felicidade, pois ”a maioria da mídia entendeu a mensagem que eu queria passar”, diz.
As apresentações desta primeira etapa se encerraram no último sábado, mas o Sankofa estará presente nas duas temporadas seguintes do evento, em novembro e no início de 2022. É difícil resumir uma ação que está em curso, ainda mais quando se mira em questões raciais – algo que não tem uma abordagem única. Ainda assim, é possível afirmar que as criações dessa temporada foram ricas em referências e ofertaram uma nova perspectiva para a indústria e para a SPFW, que pode ser um tanto alienada.
A crescente visibilidade dos profissionais negros nesta edição, proporcionada pelo projeto, foi uma fala recorrente entre os entrevistados. Todos acreditam que o espaço da SPFW deve ser ocupado e, desde que o mundo é mundo, pessoas negras criam mecanismos para que suas histórias não sejam apagadas. A pergunta que paira, porém, é: a SPFW estaria disposta, ou iria, racializar o evento se não fosse o Projeto Sankofa? Se não fosse o esforço de pessoas negras, teriam-se buscado as ferramentas necessárias por conta própria para que isso ocorresse? Claro que é impossível responder, pois ninguém é senhor do tempo. Mas vale o exercício das possibilidades.
Az Marias na SPFWFoto: Rodrigo Ladeira
Até hoje, boa parte da moda é baseada no egoísmo e na competitividade, seguindo uma hegemonia branca, racista e classista. Tudo secreto, quando não, opaco. Porém, ao olhar para o Projeto Sankofa, podemos aprender que precisamos do oposto. A coletividade e o acolhimento são os verdadeiros pilares de um sistema que se diz baseado na criatividade. Sem isso, tudo desmorona em dado momento. Nas falas das marcas, afeto, aquilombamento, parceria, amizade são recorrentes. São também, qualidades raras de ouvir em um backstage tradicional, apesar de valores essenciais se falamos genuinamente de regeneração.
Olhar para a potência do Sankofa é respeitar quem veio antes, honrar quem vive no agora e semear um caminho e uma moda mais bonita, em todos os sentidos, para quem virá depois.
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