Os principais assuntos, tendências e coleções da semana de moda masculina de Paris

Com emoção e romantismo, as apresentações de inverno 2023 da Paris Fashion Week propõem uma abordagem diferente para as formas de representação do homem.


Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Maison Margiela, na Paris Fashion Week.
Maison Margiela. Foto: Getty Images



Faz quanto tempo que se discute a importância da desconstrução da masculinidade? Há quantas temporadas o suposto guarda-roupa feminino empresta peças para o suposto guarda-roupa masculino? E o unissex, hein? E a moda agênero? Falou-se tanto disso tudo em semanas de modas anteriores, nem sempre com compromisso real, frequentemente com intenção marketeira, que cansou. Ficou forçado, caiu o engajamento. Vida que segue.

Acontece que o assunto não morreu nem perdeu relevância. Ainda bem que we’ll always have Paris (nada como um bom clichê). Na Milan Fashion Week, vimos coleções focadas no design, na funcionalidade da roupa e, sobretudo, no lado comercial da coisa. Não que seja ruim, pelo contrário. É um tanto frio. Já na Paris Fashion Week, criadores mais sensíveis trouxeram algumas camadas extras para a análise em suas coleções de inverno 2023. A principal delas é o romantismo, tendência importante que não tem só a ver com o lado amoroso, mas com emoções em geral. E isso é algo que merece atenção.

Romantismo como tendência

O predicado emotivo não costuma fazer parte do léxico nem da sua construção social do homem. Quem sente e se deixa influenciar pelas emoções são as mulheres, diz a convenção patriarcal. Que ano é hoje? Trazer referências românticas e afetivas para plataformas de representação masculina é urgente, já dizia bell hooks. “A partir do momento em que meninos pequenos são ensinados que não devem chorar nem expressar mágoa, solidão ou dor, que devem ser duros, eles aprendem a mascarar seus sentimentos verdadeiros. Na pior das hipóteses, aprendem a nunca sentir nada”, escreveu ela, em Tudo sobre o amor.

Vamos tomar como exemplo inicial o desfile de moda masculina da Dior Men. O pano de fundo foi a transição e renovação de estilo na maison após a morte de Christian Dior e nomeação de Yves Saint Laurent como seu sucessor. Da primeira coleção do jovem Saint Laurent, vêm os cortes levemente evasê de alguns blazers, os ombros arredondados, golas e decotes bem abertos, as lapelas um pouco mais estreitas e as peles falsas de leopardo. Os chapéus meio pescador, meio marinheiro também são da estreia, bem como as lãs cinzas que dominam parte da apresentação.

Modelos no final do desfile de moda masculina inverno 2023 da Dior Men, na Paris Fashion Week.

Desfile da Dior Men inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Adrien Diran

No entanto, ficar preso à caça de referências, a mais nova obsessão nas redes sociais, é deixar o melhor passar batido. Já faz algumas temporadas que o diretor de criação Kim Jones olha para a alta-costura com intuito de atualizar os códigos da moda masculina (vide os bordados de flores, os jacquards, os tecidos com brilho acetinado). Mas se antes esse flerte couture parecia um tanto desajeitado, contrastante, agora chega harmonioso.

Não é aquele discurso batido de se apropriar de códigos femininos, é um ponto de vista sem muitas balizas. Tipo deixar fluir as emoções, sabe? Uma boa metáfora são as faixas de tecidos que se arrastam como cauda (momentinho recorrente nos desfiles da Paris Fashion Week), os ternos que se acinturam num abraço delicado, os coletes e casacos com matelassê e efeito acetinado. Tudo bem suave, bem natural, bem romântico, de um jeito nada piegas e pouco óbvio.

Na Saint Laurent, o diretor criativo Anthony Vaccarello também se mostra alinhado ao movimento. Sob a rotunda da Bolsa do Comércio, ele trouxe um pouco mais dos ombros marcados das temporadas anteriores (dos bem exagerados e geométricos as versões arredondadas, mais justinhas), blusas de seda com laços no pescoço e faixas que estendem até o chão, tricôs alongados com silhueta esguia e algumas interpretações do famoso Le Smoking.

Modelos no backstage do desfile de moda masculina inverno 2023 da Saint Laurent, na Paris Fashion Week.

Modelos no bacsktage do desfile de inverno 2023 da Saint Laurent, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

É uma aproximação com as coleções femininas sem essa de pedir emprestado. É desejo, é vontade, é emoção. Não precisa de explicação. É só usar, do seu jeito mesmo, e deixar no passado essa noção antiquada de roupa feminina e masculina. Sem contar que faz parte da história da maison, ainda que ao contrário.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Saint Laurent, na Paris Fashion Week.

Desfile da Saint Laurent inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

Grace Wales Bonner, ao referenciar personalidades negras que fizeram sucesso por e em Paris também esbarra no lado passional. São nomes como o da dançarina e ativista Josephine Baker, o do escritor James Baldwin e de Sanyogitabai Holkar, esposa de um marajá indiano. Como a estilista, são todos estrangeiros em busca de inspiração ou de algum ideal de vida na capital francesa, sempre em constante diálogo com seus lugares de origem.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Wales Bonner, na Paris Fashion Week.

Desfile da Wales Bonner inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

Dá para ver isso no caimento fluido dos ternos tradicionais, mas nem tanto, na leveza das camisas, nas decorações com carga ancestral e nas estampas de pinturas. É um combo de elementos locais com outros pessoais, memórias e saudades.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Wales Bonner, na Paris Fashion Week.

Desfile da Wales Bonner inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

“Modéstia elaborada” foi como Rick Owens descreveu sua mais recente coleção, inspirada nos trajes da era Vitoriana. Se antes dava para dizer que o estilista tinha uma moda quase agressiva, agora seria exagero. Os modelos vinham cobertos com capas, casacos de couro de ombros contidos (mesmo quando marcados), silhuetas alongadas, não muito afastadas do corpo, e uma cartela de cores dominada por preto, com alguns escapes de cor. Lembra aqueles rompantes emocionais que tentamos esconder a todo custo, e falhamos miseravelmente. Para que, né?

Modelos no final desfile de moda masculina inverno 2023 de Rick Owens, na Paris Fashion Week.

Desfile de Rick Owens inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Take me dancing tonight

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Dries Van Noten, na Paris Fashion Week.

Desfile de Dries Van Noten inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Dries Van Noten combinou seu passado clubber na Bélgica, com sua aptidão e técnica para cortar alguns dos sobretudos (peça-chave do inverno 2023) e alfaiataria mais desejáveis da estação, com seu gosto por botânica, traduzia em formas, cores e padronagens leves, fluidas e românticas até. De um jeito bem peculiar, fala sobre crescimento, amadurecimento, descobertas e paixões.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Dries Van Noten, na Paris Fashion Week.

Desfile de Dries Van Noten inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Na Maison Margiela, John Galliano colocou pedaços de flyers entre as camadas de tule dos chapéus ou carregados junto às bolsas que os modelos apertavam contra o corpo. Quem já viveu um tantinho deve lembrar que um bom flyer era a garantia de entrada na boate da vez. Quem ferveu outro tantinho sabe do potencial catártico das festas, da noite, da música, da pista, da dança.

Especialmente no fim dos anos 1990 e começo dos 2000, a cena clubber foi marcada por uma grande abertura e experimentação identitária e sexual. Era vale tudo, desde que te fizesse feliz. Gênero, sexualidade e outras normas sociais eram sempre barradas no baile. Galliano traduz bem isso, luxuosamente, com aquela profundidade de referências históricas, corte e costura dos mais intrincados e belos. Muito belos. Daí o mix de mil e uma referências, elementos, estilos, culturas e épocas.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Maison Margiela, na Paris Fashion Week. Detalhe de bolsa com flyer.

Desfile da Maison Margiela inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

A coleção é uma espécie de continuação ou versão prêt-à-porter do inverno 2022 de alta-costura, chamado de Cinema Inferno, um mix de teatro com set de filmagem cinematográfica e roteiro baseado na história de amor de um casal em fuga. Aparentemente, o enredo teve final feliz – e alguns filhos. O que essas crianças vestiriam foi o mote inicial do processo de criação.

Tem umas heranças dos looks de seus pais, como a paixão por misturar roupas e detalhes de épocas diferentes, com destaque para a moda estadunidense dos anos 1950, com seus laços, tons pastel e compostura. Do faroeste, vêm os casacos e trench-coats com efeito sujo e envelhecido e as peças feitas de cobertores. Tudo combinado com bermudas tipo samba-canção, camisetas com estampa do Mickey decoradas com rendas e babados

Lá na alta-costura, a apresentação carregava uma boa carga de experiências e memórias pessoais de John Galliano. Aqui também, em especial para seus anos clubber em Londres – período bem formativo para sua carreira. Tinha até elementos da sua primeira coleção, apresentada em 1984, com elementos do movimento dos Incroyables, aquele grupo de pessoas extravagantes que não se conformavam com a sobriedade da primeira república francesa, após a revolução.

Criança Interior

Os ritos de passagem da infância para adolescência e para vida adulta têm sido objeto de estudo de estilistas chegados ao aspecto sociocultural da moda. Rei Kawakubo já falou algumas vezes sobre isso em coleções da Comme des Garçons. Na Prada, Miuccia e Raf abordam o tema indiretamente desde que começaram a trabalhar juntos. Mas foi Virgil Abloh, na posição de diretor artístico da linha de moda masculina da Louis Vuitton, quem conseguiu interpretar a questão de maneira mais enfática e pop.

Para ele, o olhar de uma criança é o que há de mais puro. Uma visão e entendimento de mundo livre de pressões e moldes sociais. Suas últimas coleções (Virgil morreu em novembro de 2021) trouxeram representações potentes do assunto, com recorte especial para a comunidade negra e outras minorias. As apresentações seguintes, executadas pela equipe de criação da marca e com colaborações de nomes próximos do designer, como o stylist Ibrahim Kamara, voltaram à temática como forma de homenagem e preservação do legado do designer.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Louis Vuitton, na Paris Fashion Week.

Desfile da Louis Vuitton inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

Para o inverno 2023 não é diferente. No centro da passarela, tinha uma casa cenográfica, quase como a do inverno 2022. Antes do desfile, um vídeo cheio de stop motion, dirigido por Michel e Olivier Gondry, retrata o crescimento de um garoto, do nascimento à vida adulta. No filme, ele está sempre acompanhado de uma bolsa com efeito metalizado, onde guarda tudo que há de mais precioso ao longo de sua trajetória.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Louis Vuitton, na Paris Fashion Week.

Desfile da Louis Vuitton inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Divulgação

E aí aparece Rosalía cantando em cima de um carro amarelo, como o de brinquedo do protagonista quando criança. Durante o show, os modelos caminham pelos cômodos da casa fictícia, interagem com os objetos de cena e seguem para o catwalk tradicional em frente aos convidados.

As roupas são uma extensão de tudo que Virgil apresentou em suas coleções mais recentes. Os ternos de modelagem larga, inspirados na silhueta clássica do streetwear e da cultura hip hop – agora completamente fechados, com lapelas levantadas, decoradas com broches (tendência de styling para ficar de olho). As jaquetas e calças utilitárias, tipo workwear, e os jeans com o monograma da Louis Vuitton. As peças com pegada lúdica, como as cobertas por envelopes ou folhas de um caderno ou diário. E a aproximação com a arte, dessa vez traduzido numa parceria com o artista e designer Colm Dillane, da KidSuper.

Nas redes, muita gente falou que a apresentação foi mais um show da Rosalía do que um desfile. Pode até ser, mas dada a falta de novidade e ausência de um diretor de criação, foi uma saída fácil para causar buzz. Tinha também a reclamação de que não dava para ver as roupas. No vídeo, era difícil mesmo. Para quem estava lá, nem tanto.

O problema maior é a repetição. Desde a morte de Virgil, a Louis Vuitton está estagnada. Estação após estação, é o mesmo assunto abordado de maneiras diferentes e as mesmas roupas com variações de styling. Tudo bem, ainda não tem um diretor de criação e, no fundo, são os acessórios que importam – as bolsas de agora são bem maravilhosas. Ainda assim, é tipo matemática: a ordem dos fatores não altera o produto. E esse produto pode, muito em breve, não interessar os consumidores.

Reducionismo?

Em entrevistas após o desfile, o diretor de criação da Loewe, Jonathan Anderson, falou de reducionismo. Quem viu as fotos vai achar esquisito. Tinham casacos de cobre e estanho moldados com proporções exageradas para simular o movimento de um tecido comum. Outros, de lã e com ombros arredondados, foram feitos por chapeleiros com as mesmas estruturas e técnicas de produção do acessório. Tudo bem afastado do corpo e rígido.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week.

Desfile da Loewe inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Mas pensa bem: a passarela era toda branca, superampla, com apenas alguns telões com obras do artista Julien Nguyen (a pira dele é reproduzir digitalmente técnicas clássicas de pintura). No styling, menos era mais. Os looks de maior impacto tinham uma ou duas peças. Era a camisa de seda prensada (no caso, martelada) com asas de anjos e um sapato. Um casacão, uma bota e, vez ou outra um short tipo underwear ou calça com jeitão de ceroula (elas estavam por toda parte nesta temporada).

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week.

Desfile da Loewe inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Como Jonathan falou, a apresentação tem a ver com uma vontade de reduzir qualquer ruído ou interferência externa para permitir que a roupa possa provocar sensações capazes de mudar nossa relação com elas. Não é um processo concluído, está em andamento e, às vezes, pode ser desconfortável. Ainda assim, não é uma versão atualizada do minimalismo dos anos 1990, muito menos do modernismo.

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week.

Desfile da Loewe inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

Tem um fator humano e emocional que faz toda a diferença. Não à toa, teve muita gente interpretando o desfile pelo lado do contraste entre íntimo e público. A casa dura que esconde a intimidade frágil. O homem forte por fora, o menino ingênuo por dentro. Será que essa armadura ainda é necessária?

Modelo no desfile de moda masculina inverno 2023 da Loewe, na Paris Fashion Week.

Desfile da Loewe inverno 2023, na Paris Fashion Week. Foto: Getty Images

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