PREVIEW SPFW: o enfim reinado de Meninos Rei
Céu e Júnior Rocha conversam com a ELLE sobre família, fé e a força motriz de fazer moda no Brasil.
Quando Mariene de Castro entoou Canto das Três Raças, na passarela da Meninos Rei, durante a edição 53 da SPFW, os convidados presentes sentiram. É que, minutos antes, havia sido exibida uma série de vídeos denunciando o genocídio da comunidade negra, entre notícias das mais dilacerantes. Ali, os diretores criativos Céu e Júnior Rocha não estavam apenas transformando a dor em roupa, mas principalmente a beleza, a sabedoria e a fortaleza de um grupo inteiro.
Desde que foi integrada ao evento, em junho de 2021, a marca baiana se tornou uma das mais esperadas a cada temporada. “Como qualquer pessoa que trabalha com moda, sempre tivemos o sonho de estar na São Paulo Fashion Week. Tem sido um aprendizado absurdo”, conta Céu, entre os tecidos e cores de seu ateliê, localizado no bairro de Itapuã, em Salvador.
De início, a Meninos Rei fez parte do Projeto Sankofa, uma iniciativa gerida por Rafael Silvério e Natasha Soares, que durante três temporadas incluiu ao line-up oito empresas de pessoas negras. O objetivo era notório: racializar uma semana de moda formada por estilistas em sua maioria brancos. “Infelizmente, o projeto chegou ao fim. Infelizmente mesmo porque, para mim, deveria ser vitalício”, opina Céu.
Foto: Divulgação
Agora, no line-up oficial, prepara um show e tanto para esta quarta-feira,16.11. Com Jojô Toddynho e Deborah Secco no casting, a marca promete valorizar as culturas locais subjugadas, incluindo ritmos baianos como o pagode e o arrocha. A ideia acabou se desenrolando e culminando no tema “Onde nasce a arte”. Júnior explica: “Há crianças e jovens com destinos traçados por uma sociedade desigual, mas que, na arte, conseguiram enxergar uma ferramenta de salvação”.
Céu e Júnior foram um destes. Criados no subúrbio ferroviário de Salvador, os irmãos dizem ter tido um olhar especial para a autoexpressão. “Com uns 11 ou 12 anos, já íamos para a rua comprar tecidos e fazer as nossas próprias roupas”, relembram. Eles rasgavam jeans, pintavam camisas e, no período de São João, faziam até as suas próprias bandeirolas. “Todos os vizinhos sabiam: os filhos de Graci e Edson eram os que se vestiam diferente.”
O gosto por corte e costura veio de casa. A dupla cresceu assistindo às suas avós e tias, todas costureiras, juntando retalhos, cortando pedaços e montando o patchworking antes da técnica sequer ser popularmente nomeada. “Elas eram perfeccionistas. Você sabia que havia vários tecidos, mas não parecia. À mão, conseguiam alcançar uma simetria e um acabamento divino”, conta Júnior.
Embora a descrição do estilista seja sobre as suas familiares, poderia ser também sobre o próprio trabalho. “Às vezes, parece que estou vendo vovó, que estou vendo tia Zezé aqui comigo”, diz Júnior, emocionado. Na Meninos Rei, como a realização de uma família inteira, ele e seu irmão estão à frente de um processo quase matemático, reformulando tecidos vindos do continente africano, principalmente de Guiné-Bissau, para criar padronagens únicas. O resultado é, de cara, identificável.
Foto: Victor Alquezar-Senac
“Alcançamos um nicho muito forte. A mistura da cor e estampa com ousadia se tornou nosso DNA”, comenta Céu. Entre os códigos afro-brasileiros e diaspóricos, não há muito espaço para tendências eurocêntricas. “A nossa inspiração vem daqui. Já tive a oportunidade de viajar, mas meu lugar é no Brasil. Quero falar sobre o nosso povo, a nossa raiz, a nossa favela”, diz Júnior, que ainda revela o sonho de realizar um desfile na tradicional Feira de São Joaquim, localizada na cidade baixa de Salvador.
Se depender do vigor dos estilistas, não irá demorar para acontecer. No entanto, pontuam a atribulação de empreender em um mercado não só desestruturado, em que falta matéria-prima e mão de obra, mas também racista e xenofóbico. “Por que a gente tem que se acostumar com o sacrifício? Por que com as marcas brancas tudo acontece de forma diferente?”, questiona Céu. Ele explica que o processo precisa ser prazeroso e já não dá mais para desfilar no São Paulo Fashion Week, por exemplo, na base de tanta dificuldade.
Justamente por reconhecerem o trabalho árduo feito dia após dia, os irmãos aproveitam cada oportunidade de suas carreiras para elevar os seus. “Tem muita gente boa em Salvador com o trabalho invisibilizado. Usamos a nossa projeção como munição de palco e voz”, diz Céu. Júnior complementa contando das parcerias que a marca já realizou com criativos negros e nordestinos, incluindo Luana Rodrigues e Telefunksoul, e da intenção de criar uma cadeia colaborativa, contratando costureiras de bairro e doando retalhos.
Foto: Antônio Brandão
Diante do sucesso da Meninos Rei, os estilistas passaram a sentir uma cobrança quanto ao lugar que residem. “Vou ficar meses falando com a minha mãe por telefone? De forma alguma!”, brinca Júnior sobre a possibilidade de se mudar para São Paulo. Céu também não gosta da ideia: “A gente quer comunicar para esse mercado de que somos baianos, vamos ganhar grana, vamos pagar uma educação massa para nossa sobrinha, mas não vamos para o lugar deles porque acham que devemos ir”.
Há nos irmãos uma vontade motriz de realizar. No entanto, para isso, subvertem o caminho comum e o fazem em seus próprios termos. Com convicção, assim como deve ser, eles reconhecem os seus dons: “O nosso trabalho é um serviço social, transforma vidas. Não estamos brincando de fazer moda”, afirma Céu. Quando são perguntados de onde vem a firmeza bonita de se ver, que lhe parecem intrínseca, a resposta é rápida: “Da nossa fé, do nosso orixá. É esse solo que nos dá força para acordar e dizer ‘vamos vencer’. E é assim que estamos indo para mais uma São Paulo Fashion Week”.
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